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O pacote anticrime, o acordo de não persecução penal e sua infindável lista de perguntas (sem respostas!)

Este brevíssimo artigo não tem o objetivo de esmiuçar detalhadamente nenhuma das diversas alterações trazidas pelo pacote anticrime, mas sim, levantar questionamentos referentes, especialmente, ao acordo de não persecução penal

quinta-feira, 5 de março de 2020

Atualizado às 12:40

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O ano começou com a entrada em vigor da, talvez, mais esperada e midiática lei dos últimos tempos, a lei 13.964/19, conhecida popularmente por pacote anticrime.

A assombrosa curiosidade popular em torno de uma lei talvez seja a responsável por tirar do foco alguns pontos relevantíssimos e que possuem o condão de alterar de forma vigorosa o ordenamento jurídico, pois o que a grande massa popular deseja é apenas saber se a pena máxima a ser cumprida por um condenado no regime fechado subiu de 30 para 40 anos ou se agora os presos famosos não terão mais direito à "saidinha". 

Na realidade a lei 13.964/19 vai muito além dessas questões populistas, pois ela introduz no ordenamento pátrio importantíssimas inovações, tais como (i) o acordo de não persecução penal (objeto deste artigo); (ii) transforma um crime de ação penal pública incondicionada em condicionada à representação da vítima; (iii) agasalha e transforma em dispositivos legais entendimentos já pacificados na jurisprudência (como, por exemplo, a suspensão da prescrição na pendência de embargos de declaração ou quando os recursos especiais e extraordinários não são admitidos), regimenta de forma detalhada a delação premiada, entre outras alterações. 

Este brevíssimo artigo não tem o objetivo de esmiuçar detalhadamente nenhuma das diversas alterações trazidas pelo pacote anticrime, mas sim, levantar questionamentos referentes, especialmente, ao acordo de não persecução penal. 

O acordo de não persecução penal é previsto pelo artigo 28-A. Referido dispositivo legal, plasticamente, em um primeiro momento, parece ser extremamente detalhista, preciso, minucioso. Mas, uma leitura mais atenta demonstra que, na realidade, o acordo de não persecução penal traz mais dúvidas que certezas, traz mais questionamentos que respostas.  

O primeiro ponto que se pretende pincelar é o seguinte: a lei diz que o Ministério Público só irá propor o acordo quando não for caso de arquivamento do feito. Na prática, contudo, se seguir a sistemática da transação penal prevista no artigo 76 da lei 9.099/95 (que também tem essa mesma premissa) não foi isso que ocorreu. Infelizmente, na praxe forense, não se analisa, com acuidade, se é ou não o caso de arquivamento, se tem justa causa pra ação penal, viabilidade do processo criminal e, sim, se propõe, de forma automática, a transação penal. Tudo leva a crer, assim, que o mesmo ocorrerá com o instituto do acordo de não persecução penal, o que irá causar (como ocorreu outrora) o esvaziamento dos casos passíveis de arquivamento que deveria ser promovido pelo titular da ação penal. 

Talvez, se fosse incluído no dispositivo legal um requisito simples de que o órgão ministerial fosse obrigado a apresentar uma manifestação expressa e fundamentada, expondo claramente os motivos pelos quais entende que não é o caso de arquivamento dos autos e, por isso, está propondo o acordo no caso em questão. Infelizmente, o legislador não teve essa preocupação e prudência. 

O segundo ponto é a existência no dispositivo que trata sobre o acordo de não persecução penal de expressões absolutamente genéricas, sem conteúdo pragmático algum. Por exemplo, o que significa, concretamente, a expressão segundo a qual o acordo será proposto "desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do delito"? Quando, então, ele não será suficiente? Quais elementos concretos servirão para mostrar que, no caso específico, o acordo não será suficiente para reprovação e prevenção do crime?

Ainda, afirma o artigo 28-A que o acordo não poderá ser proposto se "se houver elementos probatórios que indiquem conduta criminal habitual, reiterada ou profissional". A pergunta que se faz presente com a leitura é: qual será a base concreta da qual poderá o Ministério Público extrair essas informações? De onde o parquet retirará o argumento de que determinado investigado tem uma conduta criminal habitual? 

E o que é conduta criminal profissional? 

Por óbvio que as expressões abertas, vagas e genéricas (como sói acontecer com leis esparsas, promulgadas no afogadilho e que possuem como objetivo final afagar a população que suplica pelo fim da impunidade) abrem um flanco, um enorme leque para a discricionariedade, para que o acordo não venha a ser proposto para determinada pessoa investigada, mas sim para outra em situação idêntica. 

Outra questão tormentosa reside na celeuma referente a quais crimes passíveis de se propor o acordo. A lei diz expressamente que, dentre outros requisitos, o acordo poderá ser proposto quando a infração previr pena mínima inferior a 4 anos. Todavia, silencia-se sobre uma relevantíssima questão: quando existir mais de um crime, cada um, isoladamente, com pena mínima inferior a 4 anos, tal acordo poderá ser proposto? Ou será seguida a lógica pacificada pelo Supremo Tribunal Federal com relação à transação penal, que a pena deverá ser somada? 

Mais uma vez, o legislador perdeu a oportunidade de detalhar os requisitos de tão importante instituto, incluindo, por exemplo, se o caso, uma trava quando existente mais de um crime, cada um, com pena mínima de 4 anos. Tal questão, certamente, por anos, será tormentosa entre os operadores do direito até que a jurisprudência se sedimente em um ou outro sentido.  

Finalmente, talvez o ponto mais controvertido deste instituto resida na temida necessidade de assunção de culpa pelo investigado para realizar o acordo1. Este requisito talvez seja o que mais se distancie da transação penal que, expressamente, afirma que não é necessária a confissão para que o benefício seja proposto e efetivado. 

Considerando a necessidade de assumir a culpa pra realizar o acordo e pensando em situações concretas (que com certeza existirão), indaga-se: como ficarão os casos em que houver o descumprimento das medidas firmadas no acordo ou o mesmo não for homologado? Qual a garantia que o investigado terá de que, depois de confessar a prática do crime, esta confissão não será usada contra ele no oferecimento de uma denúncia? É certo impor essa confissão? Qual é o sentido de confessar um delito se o acordo, quando devidamente cumprido, não gerará reincidência?

Infelizmente essa garantia não há. A lei, mais uma vez, silencia-se e, porque não dizer, afronta de forma contundente o princípio da presunção de inocência. 

Concluindo, o pacote anticrime tráz mudanças boas, mas muitas perguntas ainda permanecem sem respostas. O legislador perdeu uma ótima e importante oportunidade de realizar uma mudança mais justa, mais democrática. O vácuo existente entre a lei e a aplicação da mesma na prática é grande e só o tempo dirá como a jurisprudência se comportará na análise dos casos concretos. O futuro é incerto, as respostas ainda não existem, e os operadores do direito terão uma batalha hercúlea pela frente. Avante.

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1 Este requisito é objeto da Adin 6304 ajuizada pela Abacrim (Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas), que contesta a constitucionalidade da referida exigência legal. 

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t*Naiara de Seixas Carneiro Caparica é advogada do escritório Cláudia Seixas Sociedade de Advogados.

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