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A proteção ao consumidor no mercado de aviação civil em meio à pandemia do novo coronavírus

O vírus já impactou diretamente os consumidores que têm viagem agendada para o exterior, especialmente para regiões altamente afetadas pela doença. Essencial, diante disso, avaliar qual a extensão da proteção consumerista em face desse panorama

segunda-feira, 16 de março de 2020

Atualizado às 11:28

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Amedrontador para alguns, superestimado para outros; independentemente da interpretação que se faça, o fato é que o novo coronavírus está alterando significativamente a rotina das pessoas em todo o mundo, seja pelo risco da doença, seja em razão das medidas de controle de sua disseminação.

Até o momento da redação deste artigo, o Brasil assiste à situação com leve distanciamento (o que tende a mudar nos dias seguintes), já que são poucos os infectados, sem mortes confirmadas. No entanto, o vírus já impactou diretamente os consumidores que têm viagem agendada para o exterior, especialmente para regiões altamente afetadas pela doença. Essencial, diante disso, avaliar qual a extensão da proteção consumerista em face desse panorama.

O primeiro ponto diz respeito ao cancelamento ou à remarcação das viagens programadas. Tem o consumidor essa prerrogativa, em face do caráter extraordinário desses eventos? A regra disposta no art. 11 da resolução 400/16 da ANAC é que o consumidor pode desistir da compra de passagens aéreas no prazo de 24 horas, desde que a data da compra tenha sido feita com 7 dias ou mais de antecedência em relação ao dia do voo. A hipótese, contudo, está longe de se enquadrar na regra geral, já que se está de uma situação de ordem pública de caráter extremamente excepcional.

Com efeito, o art. 6º, V, do Código de Defesa do Consumidor, prevê a possibilidade de revisão de cláusulas contratuais em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosa, e o inciso VI do mesmo artigo ainda estabelece que a prevenção de danos compõe um direito básico do consumidor. Esses são alicerces legislativos que induzem à compreensão de que o consumidor faria jus à alteração da passagem, sem qualquer ônus. Do contrário, ele estaria exposto a uma condição de alto risco à sua integridade e à saúde pública.

Apesar disso, a questão deve ser delicadamente enfrentada pelo Judiciário. O intento de proteção aos consumidores não pode culminar num fardo impossível às companhias, com risco de colapso do setor aéreo, tendo em vista o seu potencial de afetar o mercado em larga escala. O que está em jogo transcende aos interesses puramente individuais e deve-se evitar, na medida do possível, o aprofundamento dos efeitos colaterais da doença - como crises econômicas.

No âmbito das recomendações administrativas, chama a atenção a divergência entre os PROCONs de alguns Estados e a ANAC. Enquanto a agência se manifesta no sentido de que o passageiro precisa seguir as regras tarifárias e eventualmente negociar com a companhia, o programa de defesa aos consumidores, corroborado pelo MPF, refere que os passageiros teriam direito de alterar a passagem sem custo. Todavia, até o momento da elaboração deste artigo, não se tem notícia de sentenças proferidas pelo Judiciário.

O ideal, em primeiro lugar, é que o consumidor procure entender as políticas adotadas pela companhia escolhida e tente negociar a troca das passagens. Evidentemente, não pode ser ele obrigado a manter a contratação original sob as mesmas condições. No entanto, existem algumas questões pontuais que certamente vão surgir durante essas negociações: quem escolhe a data? Pode o consumidor cancelar a passagem e se ver ressarcido, ou apenas a troca é uma opção válida? E se a foi a companhia quem cancelou o voo?

Em decisão bastante recente proferida pela 1ª Vara Cível do Foro Central da Comarca de Porto Alegre (RS)1, foi deferida uma liminar determinando que uma agência de viagens reagendasse, sem custos, a viagem de um grupo de pessoas com destino a Roma. A agência, que pretendia reagendar os voos para abril, se viu obrigada a aguardar o fim do surto2 para, então, marcar nova data junto aos seus clientes. Ou seja, em relação às datas, as companhias não podem, de maneira abusiva, impor que as remarcações se deem em um período específico, ainda mais em época tão próxima ao pico do surto. A política correta seria oferecer um prazo mais longo para a escolha do consumidor - como 6 meses a 1 ano.

Por outro lado, não parece correto que as empresas se vejam obrigadas a efetuar o ressarcimento de todo aquele que, em razão da pandemia, não desejar mais viajar na data programada. Se é verdade que o contrato deve ser revisto em suas cláusulas em razão do evento extraordinário, também o é que ele ainda tem sua força vinculativa. O cancelamento sem custos, por ora, deve ser entendido como medida ultima ratio, apenas em casos extremos, jamais sendo a regra para essas relações consumeristas.

Isso não isenta as empresas de adotarem comportamentos probos com relação aos seus clientes. As altas multas para o cancelamento das passagens, que costumam ser regra no setor aéreo, por exemplo, têm de ser flexibilizadas no cenário pandêmico, sob pena de se deixar o consumidor com todo o peso da situação de crise. Para evitar uma situação de abusividade, as taxas estabelecidas devem, portanto, ser abrandadas, jamais alcançando a monta de mais de percentual significativo do valor global do serviço.

Situação diferente é se o cancelamento do voo parte da própria companhia aérea. Nessa hipótese, o consumidor não pode se ver obrigado a ter de escolher uma nova data, de modo que a possibilidade de restituição integral do valor pago deve ser uma faculdade sua. É que a contratação estabelecida prevê o serviço aéreo em uma data específica, sendo que o consumidor não pode ser compelido a manter o ajuste se a configuração inicial foi modificada, mesmo que por um evento de força maior.

Embora representem apenas os mais brandos efeitos colaterais da pandemia do novo coronavírus, tais celeumas evidenciam um cenário bastante distinto, talvez único desde a elaboração do CDC, cujos desdobramentos têm potencial de impactar toda a coletividade. É fundamental a adoção uma boa política de negociação pelas empresas envolvidas e, principalmente, um coerente enfrentamento da situação pelo Judiciário, visualizando, paralelamente, a tutela dos direitos consumeristas e os desafios enfrentados pelo mercado de aviação civil.

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1 Processo 5015072-79.2020.8.21.0001.

2 Embora a decisão tenha utilizado o termo "surto", na manhã do dia 11/03/2020, a OMS declarou que a Covid-19 foi reclassificada para pandemia.

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*Gabriel Alice Martins Costa Velho é advogado, graduado em Direito pela PUCRS, pós-graduado em Contratos, Responsabilidade Civil e Direito Imobiliário pela PUCRS e alumni da Universidad de León (Espanha).

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