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O coronavírus e os contratos

Diante desse cenário, deve-se definir quais os instrumentos jurídicos adequados para lidar com as situações extraordinárias provocadas pelo coronavírus. Na esfera do direito privado, dois institutos adquirem especial destaque: a força maior e a onerosidade excessiva superveniente.

quinta-feira, 26 de março de 2020

Atualizado às 12:19

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A pandemia provocada pela covid-19, também conhecido como coronavírus, adquiriu proporções não verificadas na história recente. São raríssimas as situações nas quais uma única causa adquiriu proporções tão amplas no âmbito global, provocando o fechamento de fronteiras, a suspensão de grandes eventos e a alteração da rotina profissional de milhões de indivíduos.

A possibilidade de contágio pelo coronavírus, e a necessidade de contenção da doença teve dois efeitos principais: de um lado, impôs uma série de restrições ao cotidiano de pessoas e empresas, que se viram compelidas a suspender ou cancelar uma série de compromissos, com o possível inadimplemento de obrigações; de outro, provocou enorme instabilidade nos mercados financeiros, conferindo margem para alterações drásticas nos custos das empresas e dos contratos celebrados por elas.

Diante desse cenário, deve-se definir quais os instrumentos jurídicos adequados para lidar com as situações extraordinárias provocadas pelo coronavírus. Na esfera do direito privado, dois institutos adquirem especial destaque: a força maior e a onerosidade excessiva superveniente. Esses conceitos se vinculam a vieses diversos da pandemia, pois enquanto a força maior se vincula a potenciais violações contratuais, a onerosidade excessiva se relaciona ao aumento de custos decorrente da enorme e preocupante instabilidade econômica originada pela disseminação da doença.

A força maior consiste em fator que exclui a responsabilidade pelo inadimplemento contratual. Verificado o descumprimento da obrigação, a caracterização da força maior afasta as consequências legais cabíveis, evitando a imposição de indenização por perdas e danos e a cobrança de juros sobre a prestação inadimplida. Encerra-se o contrato, com a devolução de eventuais pagamentos que tenham sido realizados, mas sem a imposição de quaisquer penalidades.

A força maior se caracteriza como o fato necessário e cujos efeitos são inevitáveis. A característica fundamental do conceito é, portanto, a inevitabilidade, ou seja, a impossibilidade da adoção de medidas potencialmente cabíveis para prevenir sua ocorrência. A força maior corresponde normalmente a fatos de enorme repercussão, tais como furacões, terremotos, grandes enchentes e tsunamis.

A vasta expansão do coronavírus e a impossibilidade de se impedir a produção de seus efeitos - sem prejuízo dos esforços para mitigá-los - indicam a clara possibilidade de caraterização da pandemia como evento de força maior. Por conseguinte, a impossibilidade de cumprimento de prestações contratuais em razão de fatos vinculados à pandemia provavelmente não resultará na aplicação das consequências decorrentes do inadimplemento. O reconhecimento da força maior não é simples, dependendo da análise das circunstâncias do caso concreto, e apenas ocorre em situações bastante excepcionais.

Por sua vez, a onerosidade excessiva se vincula àquelas situações nas quais o cumprimento da prestação contratual não se inviabilizou propriamente, mas se tornou altamente custosa para a parte. No cenário envolvendo o coronavírus, a onerosidade excessiva se aproxima mais das situações relacionadas aos efeitos econômicos da pandemia, principalmente em razão das drásticas variações ocorridas no mercado financeiro e no valor de algumas commodities importantes.

Imagine-se, por exemplo, que determinada empresa tenha se comprometido a fornecer alumínio a preço previamente determinado, ao longo de alguns anos, e uma séria e inesperada crise resulta no aumento substancial do preço da energia elétrica, que consiste em insumo bastante relevante para a produção. Esse cenário pode tornar a prestação contratual excessivamente custosa para a fornecedora de alumínio, que se vê compelida a manter os preços do contrato embora seu custo de produção tenha aumentado substancialmente.

A onerosidade excessiva, prevista no artigo 478 do CC, regulamenta essas situações. A norma estabelece a possibilidade de encerramento do contrato - ou de sua revisão, caso o credor ofereça a possibilidade -, em casos de prestação excessivamente onerosa para uma das partes, com o surgimento de respectiva vantagem para a outra.

A grande dificuldade de aplicação da onerosidade excessiva, nas relações entre empresas, decorre justamente na necessidade de que o alto custo imposto a um dos contratantes corresponda à vantagem proporcional conferida ao outro. Sob a perspectiva da legislação civil, a onerosidade é concebida como se fosse uma balança, na qual a perda de uma das partes corresponde necessariamente ao ganho da outra.

Na maioria dos contratos, o prejuízo de um dos contratantes não surge de forma concomitante ao benefício do outro. O custo adicional normalmente é imposto a uma das partes, sem que a outra se beneficie. Em situação que se tornou conhecida no direito brasileiro, o súbito e exponencial aumento do dólar ocorrido no final da década de 90 resultou no aumento da parcela dos arrendamentos de veículos automotores, prejudicando os adquirentes. Em contrapartida, as instituições financeiras alegavam que não haviam se beneficiado, pois haviam recebido o capital cedido aos adquirentes em operações financeiras realizadas no exterior, também vinculadas à moeda estrangeria. Não houve situação de perde/ganha, mas sim cenário no qual uma das partes perdeu, enquanto a outra permaneceu no mesmo patamar. A eventual aplicação do artigo 478 do CC aos casos - que são anteriores à legislação atual e sujeitos ao CDC - indicaria a inviabilidade da incidência da onerosidade excessiva para regular a hipótese, em razão do teor excessivamente restritivo da norma.

A deficiente regulamentação da onerosidade excessiva reduz bastante a possibilidade de sua aplicação em caso de contratos cujas prestações se tornaram excessivamente custosas em razão dos eventos relacionados ao coronavírus. Somente hipóteses nas quais o prejuízo do devedor corresponde ao benefício do credor é que permitem a incidência desse instituto. Para lidar com os preocupantes eventos relacionados ao coronavírus, resta a força maior, que deve ser aplicada com parcimônia e de acordo com o contexto do caso concreto.

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t*Renato Moraes é advogado da área de contencioso do escritório Cascione Pulino Boulos Advogados

 

 

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