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COVID-19 e a relação entre credor e devedor: Projeto de Lei para criar um Procedimento de Negociação Coletiva, Alterações na LRF e Outras Soluções

A medida demonstra uma sensibilidade do setor para tratar do problema configurado.

sexta-feira, 27 de março de 2020

Atualizado às 08:10

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Que o cenário atual é preocupante, imprevisível e incerto todos nós já sabemos. A pandemia assusta e tem números impressionantes. O que ninguém sabe é que Brasil vamos encontrar pela frente, após a pandemia.

Na relação entre credor e devedor, desde já temos um cenário consolidado: por um lado, o credor não tem a menor certeza de quando e como terá o seu crédito adimplido; por outro lado, o devedor - que sequer tem a certeza se manterá o seu negócio vivo - não tem liquidez em curto prazo para honrar os seus compromissos.

Diante deste cenário já configurado - que apenas não se sabe ao certo o tamanho do impacto - começam, desde já, algumas medidas, efetivadas ou não, surgirem como solução.

Primeiramente, a FEBRABAN - Federação Brasileira dos Bancos -, anunciou no último dia 16 que "os cinco maiores bancos associados - Banco do Brasil, Bradesco, Caixa, Itaú Unibanco e Santander - (...) estão comprometidos em atender pedidos de prorrogação, por 60 dias, dos vencimentos de dívidas de clientes pessoas físicas e micro e pequenas empresas para os contratos vigentes em dia e limitados aos valores que já foram usados pelo consumidor".

A medida demonstra uma sensibilidade do setor para tratar do problema configurado.

Já no decorrer desta semana, o Deputado Federal Hugo Maia (PSD/RJ), autor do Projeto de Lei que altera substancialmente a lei 11.101/2005, que dispõe sobre Recuperação Judicial e Falência, pautada em regime de urgência na Câmara dos Deputados desde novembro de 2019, em razão do COVID-19, apresentou outras "alterações importantes e emergenciais na Lei", "todas as propostas contidas no novo Capítulo VII-A proposto são de caráter eminentemente transitório e temporário, sendo que somente serão válidas pelo período máximo de trezentos e sessenta dias, contados da data da entrada em vigor da presente proposta", objeto de análise no presente artigo.

Em resumo, institui o  Procedimento de Negociação Coletiva que "visa a permitir às empresas, que vierem a se tornar insolventes ou que venham enfrentar dificuldades financeiras em decorrência da pandemia da COVID-19, que possam dar continuidade às suas operações comerciais e atividades normais, sem a necessidade de se submeterem imediatamente a um processo de Recuperação Judicial ou Extrajudicial".

Nesse contexto, passaremos a detalhar como propõe o Deputado Federal Hugo Maia (PSD/RJ) para este Procedimento de Negociação Coletiva.

O primeiro ponto de destaque diz respeito ao caráter transitório das normas contidas no mencionado Capítulo, cujos artigos vão do 188-A ao 188-L, havendo neste último artigo a expressa previsão de que as disposições contidas no Capítulo VII-A permanecerão em vigor somente pelo prazo de 360 (trezentos e sessenta) dias após a publicação da Lei ou pelo período que for oficialmente reconhecido pelo Governo Federal como vigentes as medidas emergenciais para enfrentamento das consequências da pandemia do COVID-19.

Assim, estamos diante de um novo procedimento criado especificamente para atender a demanda gerada em função da atual crise econômica que, ao ser promulgado, terá data de validade certa para cessar a sua vigência.

Do dispositivo (art. 188-A), infere-se que o devedor somente poderá ajuizar a Negociação Coletiva em uma única oportunidade e desde que preencha o requisito formal estabelecido no § 2º do próprio artigo, cujo teor define como devedor, para fins de aplicação do Capítulo VII-A, "qualquer pessoa natural ou jurídica que exerça ou tenha por objetivo o exercício de atividade econômica em nome próprio, independentemente de inscrição ou da natureza empresária de sua atividade".

Da norma, duas questões devem ser ressaltadas acerca da legitimidade ativa para ajuizar o pedido: a primeira delas diz respeito à legitimidade conferida à pessoa natural para requerer a Negociação Coletiva, o que em nada se assemelha aos arts. 1º e 2º da lei 11.101/2005; depois, destaca-se também a legitimidade conferida às pessoas que exercem atividade econômica, independentemente de inscrição ou da natureza empresária de sua atividade, ponto de grande discussão no que diz respeito aos demais institutos da lei 11.101/2005, mas que o legislador, no projeto aqui analisado, não deixou margem para discussão.

O principal requisito para o pedido, entretanto, encontra-se previsto no § 3º do mesmo artigo: é necessário que o devedor comprove redução igual ou superior a 30% do seu faturamento comparado com a média do último trimestre correspondente de atividade no exercício anterior, comprovação essa que deverá ser atestada por profissional de contabilidade.

Assim, o pedido deve vir instruído com balanço patrimonial atualizado com data do mês anterior ao pedido ou outros documentos contábeis que permitam atestar a redução do faturamento, contendo o atestado do profissional de contabilidade (art. 188-B). Necessário, ainda, que a petição seja acompanhada de documentos comprobatórios da qualificação do devedor, bem como da condição estabelecida no § 2º do art. 188-A.

Do pedido, ainda, não cabe manifestação ou qualquer tipo de averiguação ou perícia (art. 188-D), o que ressalta a natureza de jurisdição voluntária do procedimento, conforme previsto no art. 188-A, caput.

O inciso I do art. 188-A trata da suspensão das execuções havidas em face do devedor, o que não é novidade em termos de legislação da insolvência. Entretanto, vai além: determina que o Juiz terá prazo de 05 (cinco) dias para determinar a suspensão e que essa suspensão não durará mais que 90 (noventa) dias, a contar da publicação da decisão no Diário de Justiça Eletrônico. No período, ficam vedadas as realizações de garantias reais, pessoais e fiduciárias, bem como a decretação de despejo por falta de pagamento, previsão também inovadora.

A figura do administrador judicial, por sua vez, inexiste no procedimento. Surge, entretanto, o "negociador", cuja indicação é feita pelo próprio devedor já no seu pedido inicial (§ 6º), cabendo ao Juiz apenas formalizar a sua nomeação na mesma decisão que determinar a suspensão das execuções (inciso II). Esse "negociador" poderá, ainda, ser substituído pelo próprio devedor a qualquer tempo, mediante simples comunicação ao Juízo (§ 7º). A pessoa indicada, natural ou jurídica, deverá apenas obedecer aos critérios de notória idoneidade e capacidade profissional.

É dever do negociador, ainda, agir com transparência e informar ao Juiz os resultados das negociações, apresentando relatório sobre os trabalhos e as reais condições de funcionamento do devedor, tudo no prazo máximo de 90 (noventa) dias (inciso VI).

Sua remuneração, por seu turno, será custeada pelo devedor, não havendo previsão de limitação percentual, mas apenas devendo-se observar os valores de mercado para remuneração desse tipo de profissional. É obrigatório, ainda, informar nos autos o valor pactuado (§ 5º).

O legislador achou por bem, ainda, prever o prazo de duração do processo que, nos termos do inciso II ainda do art. 188-A, não ultrapassará 90 (noventa) dias, mesmo prazo conferido à suspensão das execuções, e fazendo uso da mesma terminologia empregada no art. 6º, § 4º da Lei nr. 11.101/2005, "improrrogável", o que se mostrou com o tempo letra morta e levanta suspeita quanto a autoridade desse dispositivo.

Decorrido o prazo e apresentado o relatório do negociador, o Juiz determinará o arquivamento dos autos (inciso VII). Da norma, pode-se depreender que o arquivamento é medida imperiosa, que independe do resultado prático das negociações e não enseja falência em qualquer hipótese que seja.

Ao credor, por sua vez, será facultado participar das chamadas "sessões de negociação", tendo o devedor a obrigação de comunicar aos credores por qualquer meio idôneo e eficaz sobre o início das negociações (inciso IV), o que substitui, subsequentemente, os editais de convocação e a carta enviada pelo administrador judicial, se comparado ao procedimento estabelecido para a Recuperação Judicial.

Ponto de grande importância, o inciso V trata dos efeitos dos acordos eventualmente celebrados no âmbito da Negociação Coletiva. Nos seus termos, os acordos têm força de título executivo extrajudicial e vinculam apenas os credores que aderirem, inexistindo, pois, qualquer tipo de votação para aprovação de proposta por parte da coletividade de credores. As negociações, apesar de coletivas e realizadas em sessões abertas aos credores, serão individualizadas e vincularão apenas os credores aderentes.

Não há, contudo, qualquer previsão acerca da exigência do par conditio contraditorum no procedimento de Negociação Coletiva, o que enseja concluir que cada credor poderá ser pago de maneira distinta, conforme as negociações havidas pessoalmente.

No que tange ao financiamento da atividade e obtenção de crédito do devedor, questão de grande discussão no âmbito da Recuperação Judicial, o art. 188-C prevê a possibilidade do devedor, durante a Negociação Coletiva, independentemente de autorização judicial, celebrar contratos de financiamento com qualquer agente financiador, inclusive seus próprios credores, sócios ou sociedades do mesmo grupo econômico, a fim de custear a reestruturação e despesas inerentes, bem como preservar os ativos.

O crédito havido pelo financiador nessas condições, nos termos do parágrafo único, será considerado não sujeito aos efeitos de eventual recuperação judicial ou extrajudicial futura e, em caso de falência, será considerado extraconcursal. A ideia, de forma óbvia, é dar maior garantia ao financiador que contrata com empresa em situação econômica delicada, assumindo, pois, maior risco no negócio celebrado.

No que diz respeito à competência para apreciar o pedido, o § 1º do art. 188-A basicamente reproduziu a regra contida no art. 3º da Lei nr. 11.101/2005, definindo que o Juízo competente "será aquele em cuja comarca se situa o principal estabelecimento do devedor ou da filial de empresa que tenha sede fora do Brasil".

Os contratos bilaterais, por sua vez, não se resolvem em razão do pedido de Negociação Coletiva, considerando-se nula qualquer previsão contratual nesse sentido, salvo no caso das exceções expressamente previstas em Lei (art. 188-A, § 4º).

Em resumo e de forma superficial, pois ainda se trata inclusive de um projeto de Lei recém apresentado, esse é o procedimento previsto para Negociação Coletiva, cujo destaque vai para celeridade, simplificação e informalidade do procedimento.

O instituto, por certo, é inerente ao direito da insolvência, como uma pequena, rápida e informal recuperação judicial, sem o rigor legislativo a ela aplicável.

Ademais, as normas transitórias do Capítulo VII-A, ainda, preveem alterações nos pedidos de recuperação judicial, extrajudicial e falência a serem propostos no período em que estiverem em vigor.

Nos termos do art. 188-F, inciso I, durante a vigência do Capítulo, ficam dispensados para o pedido de recuperação extrajudicial e judicial os requisitos previstos no art. 48, II e III, e § 3º do art. 161 da Lei nr. 11.101/2005.

É dizer, quem pedir recuperação judicial ou extrajudicial no período não precisará demonstrar que não obteve, nos últimos 05 (cinco) anos, concessão de recuperação judicial "regular" (II) ou com base no plano especial para micro empresas e empresas de pequeno porte (III). No caso da recuperação extrajudicial, o devedor não precisará obedecer ao prazo do art. 161, § 3º.

Ainda (inciso II), durante a vigência das normas transitórias, não seriam aplicáveis:

Alínea "a": art. 49, §§ 1º (conservação dos direitos dos credores contra os coobrigados), 3º (não sujeição de créditos fiduciários e afins) e 4º (créditos oriundos de adiantamento de contrato de câmbio), significando dizer que créditos antes não sujeitos à recuperação judicial, agora sujeitar-se-iam, bem como inexistiria a possibilidade de manter a cobrança em face do coobrigado quando pendente a recuperação judicial;

Alínea "b": o art. 73, IV, que prevê a decretação de falência por descumprimento do Plano de Recuperação Judicial; e

Alínea "c": art. 199, §§ 1º a 3º, prevendo circunstâncias específicas antes refutadas nas relações havidas com companhias aéreas em recuperação judicial e submetendo aos seus efeitos créditos havidos por arrendamento mercantil, contrato de locação ou de qualquer outra modalidade de arrendamento de aeronaves ou de suas partes.

No que diz respeito a eventuais valores bloqueados e/ou retidos por qualquer tipo de garantia, o inciso III do art. 188-F determina a liberação de 50% (cinquenta) por cento do valor ou do recebível anterior ou posterior ao pedido, recompondo-se a garantia de forma gradual a partir do sexto mês, contado da apresentação do novo pedido, até o máximo de trinta e seis meses. O objetivo, por óbvio, é conferir ao devedor caixa para sobreviver ao momento da baixa de faturamento que a crise supostamente impôs.

Quanto às obrigações previstas em Planos de Recuperação Judicial ou Extrajudicial já homologados, o art. 188-G suspende a sua exigibilidade pelo prazo de 90 (noventa dias), mesmo período que o devedor terá, nos termos do art. 188-H, para apresentar novo Plano ao Juízo, podendo sujeitar os créditos gerados após a distribuição do referido pedido de recuperação judicial ou extrajudicial, havendo a necessidade de nova aprovação dos seus termos, por óbvio.

Acaso o devedor em recuperação judicial opte por apresentar novo Plano, lhe será concedido novo período de suspensão do art. 6º da Lei 11.101/2005 (art. 188-H, parágrafo único).

O projeto de alteração legislativa prevê ainda alterações quórum de aprovação do plano em casos de recuperação extrajudicial (para o equivalente à metade mais um dos créditos sujeitos), aumentou o limite mínimo para R$ 100.000,00 (cem mil reais) para pedidos de falência e, por fim, prevê em seu art. 188-K que, o plano especial de recuperação judicial de microempresa e empresa de pequeno porte (I) abrangerá todos os créditos existentes na data do pedido, não se lhes sendo aplicado o art. 49, § 3o da Lei nr. 11.101/2005; (II) preverá parcelamento em até 60 (sessenta) parcelas mensais, iguais e sucessivas corrigidas pela taxa SELIC; e (III) limita a carência para pagamento da primeira parcela em 360 (trezentos e sessenta) dias.

Em síntese, o Projeto de Lei prevê tanto a criação de um novo instituto de insolvência no direito pátrio como altera normas importantes de institutos já consolidados, tudo isso de maneira transitória e com data de validade.

Não há algo que se assemelhe a um Plano de Recuperação Judicial ou à Assembleia Geral de Credores, procedimento de averiguação dos créditos, seja administrativo ou judicial ou ainda a figura de um administrador judicial.

O instituto criado, como já afirmado, é procedimento próprio, com características inovadoras e sem correspondência na Lei 11.101/2005, e cujo procedimento tem por objetivo a celeridade, informalidade e pessoalidade nas negociações.

Contudo, é claro que se trata - ainda - de um projeto de lei com alterações feitas recentemente, no momento em que o foco nacional é apenas um: cuidar da saúde da população.

Em linhas gerais, percebe-se boa intenção dos principais agentes envolvidos - credor, devedor, instituições e do legislativo - para pensar, em conjunto, em uma solução que atenda (minimamente) os todos os interesses. Ou melhor, que crie - ao menos uma expectativa - de permitir o retorno da atividade empresarial e geração de caixa.

Contudo, parte do projeto como proposto será alvo de duras críticas por credores, especialmente por tratar em pontos sensíveis, como a liberação de garantias ou a inclusão de crédito antes não sujeito à recuperação judicial em algumas hipóteses - ainda que por prazo determinado.

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*Lucas Cavalcanti é sócio Gestor da área de Recuperação Judicial e Falências de Queiroz Cavalcanti Advocacia, especialista em Direito Empresarial pela FGV/RJ e membro da TMA - Brasil.

*Rafael Dias é sócio Fundador do Risco Bert, Feijó & Dias Advocacia, especialista (LL.M) em Direito Empresarial e concluinte da especialização em Direito Societário, ambos pela FGV/RJ.

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