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Contratos: onerosidade excessiva superveniente (teoria da imprevisão) e o covid-19

A pandemia do covid-19, em uma análise abstrata e genérica, pode vir a caracterizar um evento extraordinário e imprevisível, que faz com que a prestação se torne excessivamente onerosa.

quarta-feira, 1 de abril de 2020

Atualizado às 11:52

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Nesse momento difícil e inusitado, muitos estão analisando novamente suas contratações e questionando o que deve ser cumprido e o que pode ser eventualmente repensado.

Sem dúvida a situação atual traz muitas adversidades aos negócios e tem fortes impactos no cumprimento das obrigações contratuais.

Uma dúvida que pode surgir aos contratantes é se a chamada "teoria da imprevisão" poderia ser alegada frente às situações trazidas pelo covid-19, seja para proporcionar a renegociação  e revisão contratual, seja inclusive para possibilitar a resolução (ou seja, a rescisão) dos contratos. E não há uma resposta pronta e única para isso.

A então chamada teoria da imprevisão, hoje mais conhecida como onerosidade excessiva superveniente por ser a denominação que o Código Civil de 2002 utilizou, prevê que, em contratos de execução continuada ou diferida (ou seja contratos que se prolongam no tempo), se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa,em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, o devedor (aquele que deve cumprir a obrigação) pode pedir a resolução do contrato ou a resolução poderá ser evitada se a outra parte aceitar modificar equitativamente as condições do contrato, ou seja se as partes revisarem o contrato. As regras da onerosidade excessiva estão previstas nos artigos 478 a 480 do Código Civil. 

De fato, a pandemia do covid-19, em uma análise abstrata e genérica, pode vir a caracterizar um evento extraordinário e imprevisível, que faz com que a prestação se torne excessivamente onerosa.

Veja-se que pela redação acima descrita, alguns seriam os requisitos trazidos pelo artigo 478 do Código Civil para a aplicação da teoria: (i) contratos de execução continuada, diferida ou de trato sucessivo, (ii) onerosidade excessiva da prestação, (iii) extrema vantagem para a parte contrária, (iv) acontecimentos extraordinários e imprevisíveis.

Apesar de a redação do artigo 478 do Código Civil falar em acontecimentos imprevisíveis esse requisito da imprevisibilidade é considerado desnecessário pela doutrina jurídica que trata do assunto. A redação dos artigos do Código Civil que tratam da excessiva onerosidade do Código Civil acabou sendo objeto de bastante crítica, por ser imprecisa e desatualizada. Seguiu tendências de Códigos estrangeiros antigos e não tão adequados para o assunto.

Igualmente, o requisito da extrema vantagem para a parte contrária é considerado totalmente desnecessário, já que em muitos dos casos (ou até na maioria, talvez), é possível que não haja nenhuma vantagem adicional para a parte contrária ao receber uma prestação que se tornou excessivamente onerosa ao devedor.

Além dos requisitos mencionados pelo Código (que podem inclusive ser mitigados, como visto acima), talvez o aspecto mais importante de se analisar para a aplicação ou não dessa teoria é o risco inerente ao contrato, uma condição que nem sequer é trazida pelo Código Civil. Com isso, ocorrendo um evento extraordinário, que onere excessivamente o devedor, modificando a base objetiva do negócio, e que, não esteja diretamente relacionado aos riscos inerentes àquele contrato, poderá ser aplicada a teoria. A onerosidade excessiva superveniente não poderá ser aplicada nos casos de fatos extraordinários que atinjam a álea / o risco normal do contrato.

Aí reside, portanto, questão chave para se analisar a eventual aplicação da teoria da onerosidade excessiva superveniente nos casos do covid-19, ou seja, o acontecimento extraordinário deve estar fora da álea / do risco natural daquele contrato específico1.

Vale lembrar, por fim, que a onerosidade excessiva superveniente é trazida pelo Código Civil brasileiro dentro das regras de extinção do contrato2. Assim, importante destacar que, como regra, o devedor pode pedir a resolução (rescisão) do contrato em tais hipóteses. A doutrina praticamente majoritária3, porém, vem aceitando o pedido de revisão com base no princípio da conservação dos contratos.

O problema de requer-se a revisão em juízo é uma indevida interferência judicial nos contratos e sabe-se que, ainda que as partes possam recorrer a perícia técnicas para comprovar questões de preço e outros aspectos comerciais, ter a questão decidida pelo juiz com base em análise pericial (se o caso), pode ser bastante difícil, para não se dizer desastrosa, para as partes.

Desse modo, havendo uma situação que autorize a aplicação da teoria da onerosidade excessiva superveniente, e não sendo o caso de resolução do contrato, a revisão será sempre mais interessante às partes se feita por elas mesmas e não por um juiz, que muito pouco ou nada conhece do negócio das partes.

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1 Mais uma vez, a análise do caso concreto, tão prestigiada pelo Prof. Junqueira, acaba se mostrando indispensável: "O paradigma jurídico, portanto, que passara da lei ao juiz, está mudando, agora do juiz, ao caso. A centralidade do caso - é este o eixo em torno do qual gira o paradigma jurídico pós-moderno." (AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Estudos e pareceres de direito privado. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 60).

2 Título V - Dos Contratos em Geral, Capítulo II - Da Extinção do Contrato, Seção IV - Da Resolução por Onerosidade Excessiva.

3 Nesse sentido: ASCENSÃO, José de Oliveira. A alteração das circunstâncias e justiça contratual no novo Código Civil. Universitas/Jus, Brasília, n. 11, p. 93, 2003; NERY JR., Nelson; NERY, Rosa. Código Civil comentado. 4. ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2006, p. 448; MARTINS-COSTA, Judith. A revisão dos contratos no Código Civil brasileiro. Roma e America: diritto romano comune: rivista di diritto dell'integrazione e unificacione del diritto in Europa e in America Latina, Roma, n. 16, p. 161, 2003; PUGLIESE, Antonio Celso Fonseca. Teoria da imprevisão e o novo Código Civil. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 93, n. 830, p. 12-26, dez. 2004, p. 20-21; KHOURI, Paulo R. Roque A. A revisão judicial nos contratos no novo Código Civil, Código do Consumidor e Lei n° 8.666/93: a onerosidade excessiva superveniente. São Paulo: Atlas, 2006. p. 122-123; FRANTZ, Laura Coradini. Revisão dos contratos. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 105; GOMES, Orlando. Contratos. 26. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 216. Darcy Bessone, também aceitava a revisão como regra, mesmo antes da positivação: "Em certos casos, porém, o melhor remédio seria a revisão para adaptação às novas condições, mas, a nosso ver, em caráter facultativo para o credor, a quem ficaria salvo preferir a resolução, porque, de outro modo, poderia ser conduzido a estipulações que não lhe conviessem." (BESSONE, Darcy. Do contrato: teoria geral. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1960, p. 296).

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*Giuliana B. Schunck é sócia do Trench Rossi Watanabe e autora do livro A onerosidade excessiva superveniente no novo Código Civil: críticas e questões controvertidas. São Paulo: Ed. LTr, 2010.

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