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A covid-19 e o inadimplemento das obrigações

Trata-se, por certo, de situação excepcional, que torcemos que seja logo superada, dado os efeitos maléficos não apenas sob a ótica existencial, mas também patrimonial, tornando impossível o cumprimento de diversas obrigações e contratos, que são a principal ferramenta de trânsito comercial e econômico.

quinta-feira, 2 de abril de 2020

Atualizado às 11:18

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A covid-19 tem trazido inúmeras repercussões no campo do direito e das relações jurídicas, e uma delas diz respeito ao cumprimento das obrigações assumidas.

Por força dos riscos de contaminação, reuniões, eventos e shows têm sido cancelados, lojas estão sendo fechadas, tanto por recomendação do Poder Público, quanto por decisão dos próprios particulares, bem como diversos compromissos não estão sendo cumpridos. Diante disso, questiona-se quais são os efeitos desse descumprimento no campo das obrigações e dos contratos.

Os contratos, enquanto fonte das obrigações, são de cumprimento obrigatório. Como resultado, o seu descumprimento acarreta consequências para a esfera jurídica dos envolvidos, como o dever de indenizar a parte prejudicada, o que se impõe pelo art. 389 do Código Civil, segundo o qual "Não cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas e danos, mais juros e atualização monetária".

Esse efeito, contudo, se aplica aos casos de descumprimento culposo da obrigação, ou seja, nas hipóteses em que o não cumprimento decorrer de dolo ou culpa do devedor. Então, é pressuposto da reparação a chamada imputabilidade. De modo contrário, faltando a imputabilidade, descabe a indenização. E quando faltará a imputabilidade? Quando o cumprimento da obrigação se tornar impossível não por uma conduta ou fato do devedor, mas por um evento estranho ao seu poder e controle.

Os romanos já previam a inimputabilidade quando o descumprimento da obrigação advinha do fortuito ou do acaso, hipóteses que, em verdade, excluem eventual culpa do devedor pelo rompimento do nexo causal, afastando, assim, o dever de indenizar.

No nosso ordenamento, essas hipóteses são as já conhecidas força maior e caso fortuito, cuja diferença é apenas dogmática, e isso porque o Código Civil, em seu art. 393, trouxe os mesmos efeitos para ambos, assim como o fez, por exemplo, o Código das Obrigações Suíço.

Em verdade, ambos se caracterizam por dois aspectos: necessariedade e inevitabilidade. Pela necessariedade, não é qualquer acontecimento que libera o devedor de responsabilidade, mas apenas aquele que, por razões alheias à atuação do agente, torna impossível, de modo absoluto, o cumprimento da obrigação. Já pela inevitabilidade, é preciso que não haja meios para evitar ou impedir os efeitos do fortuito ou da força maior, de modo que, se for possível evita-los, não estará o devedor isento de responsabilidade.

Assim, se presentes os dois requisitos, o devedor se exime de cumprir com a obrigação e de responder pelos prejuízos, salvo se assumir, contratualmente, a responsabilidade mesmo na ocorrência de caso fortuito e força maior. Dito de outra forma, com a ocorrência desses eventos resolve-se a obrigação, sem perdas e danos, para qualquer das partes, nos termos do art. 234 e 248 do Código Civil, devendo elas retornarem ao estado anterior. Isso significa, então, que nenhuma das partes poderá reclamar qualquer reparação, e o devedor suportará eventuais prejuízos que tenha sofrido.

No caso particular do coronavírus há inequivocamente um evento fortuito que exime de responsabilidade o devedor no caso de inadimplemento, assumindo ele, contudo, os riscos pela perda do negócio.

Sobre essa questão, no entanto, algumas observações merecem ser feitas. A pandemia causada pelo vírus, como vimos anteriormente, têm impedido o cumprimento de diversas obrigações. Então, no caso das obrigações que não podem ser cumpridas, de modo absoluto, por conta deste evento, tem-se presente a necessariedade. Frise-se que apenas aquelas obrigações que se tornaram absolutamente impossíveis de serem cumpridas por conta do enclausuramento e do risco de contaminação é que se tem possibilidade de eximir o devedor das responsabilidades pelo inadimplemento.

Quanto à inevitabilidade, o caráter fortuito do evento, que por forças alheias à vontade do agente tornam impossível o cumprimento da obrigação, deixa evidente a sua presença, na medida em que o devedor não tem como impedir os efeitos produzidos pelo vírus, que tem levado ao recolhimento quase absoluto da população.

Portanto, neste caso parece inequívoca a ocorrência do fortuito que libera o devedor dos efeitos do inadimplemento, resolvendo-se a obrigação sem perdas e danos, devendo, assim, as partes, na medida do possível, retornar ao seu estado anterior à contratação.

Nesse sentido, e exemplificativamente, se é contratada a entrega de uma coisa, ou a prestação de um determinado serviço, e esta não pode ser entregue, ou o serviço não pode ser prestado, por conta das consequências da pandemia, a obrigação se resolve para ambas as partes, que nada poderão reclamar a título de perdas e danos. Também como consequência, se o credor já tiver pago algum valor, o devedor terá que lhe restituir, e nada poderá reclamar de compensação, mesmo aquelas decorrentes de eventuais despesas que porventura tenha tido, pois dele são os riscos do negócio, e não poderá o credor ser compelido a ressarcir o devedor por eventual prejuízo que ele tenha sofrido.

Trata-se, por certo, de situação excepcional, que torcemos que seja logo superada, dado os efeitos maléficos não apenas sob a ótica existencial, mas também patrimonial, tornando impossível o cumprimento de diversas obrigações e contratos, que são a principal ferramenta de trânsito comercial e econômico.

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*Thiago F. Cardoso Neves é mestre e doutorando em Direito pela UERJ. Professor dos cursos de pós-graduação da EMERJ, do IBMEC e do CERS. Visiting researcher no Max Planck Institute for Comparative and International Private Law - MPIPRI Hamburg-ALE. Vice-Presidente Administrativo da Academia Brasileira de Direito Civil - ABDC. Advogado

 

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