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O poder disciplinar do empregador quando adotado o regime de teletrabalho (home office) em tempos de pandemia

Diante das medidas governamentais que limitam a locomoção dos empregados e a aglomeração de pessoas, a reciprocidade de deveres e obrigações inerentes ao contrato de trabalho restaram prejudicadas.

segunda-feira, 6 de abril de 2020

Atualizado às 09:08

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A ampla e rápida disseminação da covid-19 em diversos países do mundo, impactou,  diretamente, nas relações sociais e econômicas dos cidadãos, a ponto de a Organização Mundial da Saúde declarar a pandemia de coronavírus, além de recomendar, enfaticamente, a adoção de medidas para contenção do vírus, dentre elas, a de isolamento social.

Independentemente de estudos científicos acerca da eficiência, ou não, do isolamento social (seja horizontal ou vertical), é certo que as medidas governamentais que restringiram o convívio social atingem as relações trabalhistas de forma geral e, notadamente, as relações de emprego, que possuem natureza sinalagmática. De um lado, o empregador remunera, de outro, o empregado se coloca à disposição do empregador (art. 4º da CLT).

Nessa toada, diante das medidas governamentais que limitam a locomoção dos empregados e a aglomeração de pessoas, inclusive com a paralisação do transporte público regular, além da determinação para suspensão das atividades não essenciais (comércio em geral e setores administrativos), a reciprocidade de deveres e obrigações inerentes ao contrato de trabalho restaram prejudicadas. Algumas empresas, então, imbuídas em manter a sua operacionalidade, ainda que de forma reduzida, optaram pela alteração do contrato de trabalho para adotar o regime de teletrabalho (ou home office) dos seus empregados.

Essa modalidade de trabalho já estava regulada no art. 6º da CLT (trabalho em domicílio), mas foi ainda mais detalhada pelo art. 75-A, e seguintes, da CLT, cuja inserção foi promovida pela lei 13.467/2017, denominada "Reforma Trabalhista". Tais regras foram, no atual momento, flexibilizadas pela promulgação da Medida Provisória 927/20 (arts. 4º e 5º).

Nesse contexto, em 31/3/2020, foi veiculada matéria no site do Valor Econômico, cujo título dispunha "Atitudes de trabalhadores em home office preocupam empresas"1.

A matéria expõe, em suma, que advogados tem sido consultados por clientes (empresas) para saber se é possível a aplicação de sanções aos empregados que, exemplificativamente, participam de chamada de vídeo usando pijama; assistem filmes e vídeos no computador da empresa no horário de trabalho; compartilham o equipamento com seus filhos que assistem aulas online ou, ainda; acessam sites indevidos.

Infere-se, portanto, que o ponto nodal está centrado em analisar o alcance do poder disciplinar do empregador no regime de teletrabalho, dada as peculiaridades do exercício das atividades profissionais no âmbito da residência do empregado (home office), especialmente durante a pandemia.

De pronto, constata-se que não há qualquer regra de exceção, nem na Medida Provisória 927/20, que obste a aplicação, para os trabalhadores em home office, do disposto no art. 482 da CLT, que tipifica as condutas do empregado que constituem justo motivo para rescisão contratual.

Ocorre, todavia, que o atual momento de exceção (decreto legislativo 6/2020), que motiva, inclusive, a flexibilização das normas trabalhistas por meio de sucessivas Medidas Provisórias, deverá ser considerado pelo empregador para que o exercício do poder disciplinar seja utilizado com parcimônia.

Nesse sentir, observa-se que a decisão sobre a alteração do trabalho presencial para o regime home office, durante o estado de calamidade pública, passou a ser exclusivamente do empregador (art. 4º da Medida Provisória 927/20), o que, nos termos do art. 75-C da CLT, exigia o mútuo consentimento expresso.

Evidencia-se, indubitavelmente, que a adoção do regime de teletrabalho na excepcionalidade do art. 4º da Medida Provisória 927/20, ignora a manifestação de vontade do empregado a se submeter ao home office.

Portanto, o tratamento do empregador dispensado ao teletrabalhador, cuja formalização segue os ditames do art. 75-A e seguintes da CLT, não pode ser o mesmo ao empregado que é submetido ao home office sem manifestação de vontade, amparado no art. 4º da Medida Provisória 927/20.

É de se destacar que as características pessoais e os perfis de cada trabalhador são diferentes, o que, inclusive, foi objeto de uma matéria veiculada pela Época Negócios que abriu esse debate com o seguinte título: "Você tem o perfil para trabalhar em casa?"2. Nela se expõe que os trabalhadores devem ter organização; foco; comprometimento e disciplina; capacidade de escolha em função das metas e objetivos da empresa; (auto)controle de qualidade; visão integrada de seu trabalho com os demais profissionais e áreas da empresa.

Denota-se, assim, que nem todo o empregado tem o perfil para desenvolver suas tarefas profissionais no âmbito de sua residência. Mas isso, salvo melhor juízo, não remete necessariamente a um comportamento desidioso ou de mau procedimento, já que, neste momento de exceção, o trabalhador não tem outra opção para se manter no emprego, a não ser tentar se adaptar a nova realidade, que é o home office.

Importante mencionar que a adoção desse regime de trabalho, com a possibilidade de alteração do contrato de trabalho de forma unilateral, também tem por objetivo a preservação do emprego e da renda (art. 1º da Medida Provisória n. 927/2020), além de ser medida temporária, que vigorará (se transformada em lei ordinária) até o término da calamidade pública em 31/12/2020 (Decreto legislativo 6/20).

Portanto, embora o poder disciplinar do empregador não seja restringido pelas novas regras trabalhistas, a interpretação sistemática e teleológica indica que a aplicação, pelo empregador, das penalidades ao empregado (advertência, suspensão e justa causa), deverão considerar o momento de excepcionalidade (temporário) e dos necessários ajustes inerentes a uma nova realidade de trabalho.

Ou seja, se a norma trabalhista é flexibilizada para empregador com o nítido objetivo de possibilitar a manutenção dos empregos e a continuidade da atividade econômica, não faz sentido, ao meu sentir, que se utilize, indiscriminadamente, das sanções contratuais, principalmente da justa causa, sem que haja uma conduta absolutamente grave do empregado.

Isso não quer dizer, evidentemente, que o empregado dispõe de um salvo conduto para trabalhar na sua residência alheio a qualquer tipo de regra, comportamento e procedimento. Inclusive, para este fim, é recomendável que o empregador estabeleça, antecipadamente, de forma clara, expressa e objetiva, como deverão ser desenvolvidas as tarefas no regime de teletrabalho, a fim de que o empregado tenha ciência inequívoca da conduta almejada pelo empregador.

Depreende-se que, sendo um momento excepcional, temporário, com a adoção de medidas de exceção e flexibilização, haja maior prudência, senso de razoabilidade e proporcionalidade entre a suposta conduta faltosa imputada ao empregado e o uso do poder disciplinar pelo empregador.

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1 Disponível em https://valor.globo.com/legislacao/noticia/2020/03/31/atitudes-de-trabalhadores-em-home-officepreocupam-empresas.ghtml. Acesso em 1/4/2020.

2 Disponível em https://epocanegocios.globo.com/Inspiracao/Carreira/noticia/2014/02/voce-tem-o-perfil-paratrabalhar-em-casa.html. Acesso em 2/4/2020.

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*Daniel Rogério Ullrich é advogado e sócio do escritório Ullrich & Vegini Advogados Associados.

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