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Da hipótese sui generis de onerosidade excessiva bilateral provocada pela pandemia do covid-19 e os seus remédios

Os tempos são de guerra contra um inimigo invisível, impondo o esforço de todas as pessoas, não só no Brasil, mas no mundo, para minimizar os efeitos devastadores da doença.

quarta-feira, 8 de abril de 2020

Atualizado às 08:52

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O ano de 2020 começou com a divulgação do surto na cidade de Wuhan, na China, de um vírus batizado pelos cientistas como covid-19 (coronavírus), capaz de provocar infecções respiratórias que podem ser desde um resfriado comum até enfermidades mais severas, com altíssima velocidade de propagação.

A disseminação global do vírus, levou a Organização Mundial de Saúde (OMS) a declarar que os casos das doenças causadas pelo COVID-19 configuram uma pandemia.

Apenas para ilustrar, registramos que a pandemia gerou a paralisação de potências mundiais como os China, EUA, Itália e França, com medidas restritivas adotadas pelos governantes no sentido de manter a população em casa, interrompendo atividades comerciais de vários tipos e fechando fronteiras.

Mesmo para os mais incrédulos e, como não poderia deixar de ser - pois nenhuma nação está imune às intempéries internacionais -, o aludido vírus chegou ao Brasil, obrigando as autoridades públicas a adotarem as mesmas medidas restritivas praticadas em outros países para tentar frear a sua propagação, as quais, muito embora louváveis no sentido de proteger a população, trarão consequências desastrosas e ainda imensuráveis para a economia nacional.

Os tempos são de guerra contra um inimigo invisível, impondo o esforço de todas as pessoas, não só no Brasil, mas no mundo, para minimizar os efeitos devastadores da doença.

Com efeito, historicamente, no decorrer das guerras ou outros eventos de grandes rupturas, que as nações, através de ferramentas de reconstrução, encontraram novas formas de se organizar e regular as relações contratuais, inclusive repensando os institutos de direito e a sua aplicação.

Adentrando no tema deste artigo, importante mencionar que durante a Primeira Guerra Mundial a cláusula rebus sic stantibus, originária do direito medieval, voltou a ganhar força através de teorias que, a grosso modo, defendiam a resolução de contratos de execução continuada acaso o seu cumprimento se tornasse excessivamente oneroso para uma das partes.

Cite-se, a título de exemplo, a Lei Francesa Falliot, de janeiro de 1918, permitindo que pactos firmados antes da Primeira Guerra Mundial para a entrega de mercadorias em prestações diferidas fossem resolvidos, acaso um dos contratantes demonstrasse ter sofrido prejuízos cuja importância ultrapassasse, e muito, as previsões realizadas à época do ajuste.

A partir daí diversas posições doutrinárias surgiram sobre o tema, com as suas peculiaridades e sob as mais diversas denominações, como a teoria da imprevisão, a quebra da base do negócio, o desequilíbrio entre prestações, as alterações das circunstâncias, a onerosidade excessiva, dentre outras, visando reger as hipóteses em que acontecimentos supervenientes, imprevisíveis ou de consequências imprevisíveis tornem a prestação de uma das partes excessivamente onerosa.

Ocorre que a guerra vivenciada contra o vírus covid-19 criou uma situação sui generis em todo o mundo, na qual ambos os contratantes poderão sentir o peso da onerosidade excessiva e da incapacidade de executar as prestações conforme inicialmente contratadas, por situação superveniente e imprevisível decorrente da pandemia, tratando-se de hipótese que pode ser considerada como de onerosidade excessiva bilateral.

Assim, propomos jogar luz sobre a questão, com o objetivo de buscar remédios que visem, acaso possível, manter as relações contratuais firmadas anteriormente à pandemia, restabelecendo o seu equilíbrio, com responsabilidade social e em respeito aos princípios da função social dos contratos e da boa-fé objetiva.

Do enfrentamento do desequilíbrio contratual superveniente pelo Direito brasileiro

O Código Civil brasileiro de 1916 não continha qualquer positivação acerca da cláusula rebus sic stantibus, cujo desenvolvimento aconteceu no âmbito doutrinário e jurisprudencial.

Posteriormente, o Código de Defesa do Consumidor veio a positivar a questão, assegurando ao consumidor o direito à revisão de cláusulas contratuais "em razão de fatos supervenientes que as tornassem excessivamente onerosas" (artigo 6º, inciso v), sem menção à imprevisibilidade da situação causadora da onerosidade excessiva.

A lei 8.245/91 também instituiu mecanismo específico, qual seja, a ação revisional de aluguel, que permite a revisão do preço para ajustá-lo ao mercado, desde que decorridos 03 (três) anos da vigência do contrato (artigo 19), atendidas as demais condições previstas no artigo 68 e seguintes da citada lei.

Aliás, conquanto a legislação infraconstitucional tenha adotado requisitos mais objetivos acerca das hipóteses autorizadoras da revisão contratual, o Código Civil de 2002 definiu critérios subjetivos, delineados nos seus artigos 478 a 480, situados no Capítulo II, Seção IV que trata da "resolução por onerosidade excessiva".

Neste contexto, o artigo 478 do Código Civil dispõe que, no decorrer da vigência de contratos de execução continuada, a parte prejudicada pelo advento de uma situação excepcional e imprevisível, que torne o cumprimento da sua obrigação extremamente onerosa para si, com vantagem exagerada para o outro contratante, poderá requerer a resolução contratual.

Veja-se, pois, que os requisitos para a configuração da onerosidade excessiva a autorizar a resolução contratual são os seguintes:

- contratos de execução diferida: o cumprimento das obrigações assumidas pelas partes não se dá imediata ou instantaneamente à assinatura da avença, se estendendo no tempo;

- a existência de fato superveniente: aquele que ocorre após a celebração da avença;

- extraordinário e imprevisível: fora dos limites da álea contratual e do risco do negócio, não podendo ser legitimamente esperado pelas partes, ou, conforme construção jurisprudencial atual, embora previsível, produza consequências imprevisíveis. Sem qualquer pretensão de adentrar em discussões doutrinárias, cite-se, apenas, que há correntes que diferenciam a extraordinariedade e imprevisibilidade e debatem a necessidade da sua configuração conjunta ou alternativa, em razão do uso da partícula "e";

- onerosidade excessiva da prestação de uma das partes: não há na legislação brasileira parâmetros para a caracterização de uma prestação excessivamente onerosa, não se podendo confundi-la, contudo, com hipóteses de caso fortuito ou de força maior, pois não se trata da impossibilidade de execução posterior da obrigação, mas da sua dificuldade em prestá-la. Mais uma vez, sem adentrar nos meandros das discussões doutrinárias, ressalte-se que o alargamento da caracterização de caso fortuito ou de força maior, inclusive para abranger hipóteses de "impossibilidade econômica", tem tornando mais tênue a distinção entre fortuito e a onerosidade excessiva1;

- vantagem extrema para a outra parte: requisito que sofre inúmeras críticas por diversos doutrinadores nacionais, inclusive por reduzir o campo de aplicação do instituto, mas cuja justificativa pode ser encontrada na tentativa de se coibir o enriquecimento sem causa de um contratante perante o outro, o que encontra guarida no artigo 884 do Código Civil.

Assim, configurados os requisitos previstos no citado artigo 478 do Código Civil, a parte prejudicada no contrato pode requerer a resolução do negócio jurídico.

Contudo, muito embora a configuração do desequilíbrio contratual nos termos do referido dispositivo legal esteja vinculado à resolução, nada impede a revisão do contrato, o que, nos termos do artigo 479 do Código Civil, dependeria da concordância da contraparte, ré em demanda judicial, em alterar as condições inicialmente avençadas.

Ademais, contemplando outro caso de revisão contratual, o artigo 480 do mesmo Codex prevê que, em contratos unilaterais, o contratante que tem obrigações a cumprir pode "pleitear que a sua prestação seja reduzida, ou alterado o modo de executá-la, a fim de evitar a onerosidade excessiva".

Conquanto a leitura dos dispositivos supracitados pareçam remeter à ideia de que em caso de onerosidade excessiva, aliada à configuração dos demais requisitos previstos no artigo 478 do Código Civil, o único remédio cabível seja o da resolução do contrato, estando a possibilidade de revisão para fins de reequilíbrio ligadas exclusivamente à concordância da parte ré na ação judicial ajuizada para este fim ou, ainda, restrita aos casos de contratos unilaterais, tal interpretação - que é literal - não se harmoniza com as demais disposições e princípios gerais do Código Civil vigente.

Até porque o Código Civil privilegia a função social do contrato, prevista no artigo 421, a qual, muito embora não elimine a autonomia contratual, atenua o seu alcance frente à proteção da dignidade da pessoa humana na dimensão individual e coletiva, visando à conservação dos vínculos em consonância com a boa-fé objetiva e a vedação ao enriquecimento sem justa causa.

Ademais, nos dizeres de Anderson Schreiber2, o ápice da abertura para a revisão dos contratos e não simplesmente a sua resolução, decorre da disposição contida no artigo 317 do Código Civil vigente, que permite ao Poder Judiciário corrigir manifesta desproporção, provocada por motivo imprevisível, entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, tornando-se uma "espécie de "puxadinho hermenêutico" dos artigos 478 a 480, sendo raro encontrar quem trate desses sem aquele, e vice-versa".

A importância do citado artigo 317 do Código Civil encontra-se no fato de que ele privilegia a conservação do vínculo jurídico e não simplesmente o extingue, permitindo que, por conta da ocorrência de um fato imprevisível que tenha tornado a prestação pecuniária de uma das partes desproporcional à obrigação assumida, esta possa ser revisada pelo Poder Judiciário, de molde a se restabelecer o equilíbrio contratual, resguardando a função social dos contratos.

Esclareça-se que o referido artigo teve por objetivo o combate das distorções decorrentes da inflação e da desvalorização da moeda, ambos fenômenos da década de 90, mas a sua utilização foi ampliada pelos tribunais pátrios, sem que, contudo, tivessem sido definidos parâmetros claros e objetivos para a utilização de um ou outro remédio, a saber, resolução ou revisão, que produzem consequências bastante diversas para os contratantes.

Da classificação dos efeitos da pandemia do covid-19 (coronavírus) como fatos supervenientes, imprevisíveis e extraordinários capazes de causar onerosidade excessiva bilateral e os possíveis remédios cabíveis

Conforme mencionado, os requisitos para a configuração do desequilíbrio passível de ensejar a rescisão ou revisão contratual estão previstos nos artigos 478 a 480, interpretados de forma conjunta com o artigo 317, todos do Código Civil vigente.

Neste contexto, despiciendo tecer maiores considerações no sentido de que os efeitos decorrentes da pandemia causada pelo covid-19 (e não necessariamente a pandemia em si) podem configurar hipóteses supervenientes, extraordinárias e de consequências econômicas imprevisíveis, capazes de gerar o desequilíbrio das prestações - ainda que em medidas diversas para cada um dos contratantes -, configurando até mesmo hipótese sui generis de onerosidade excessiva bilateral, com capacidade de produzir efeitos em cascata.

No caso, o requisito da vantagem extrema para uma das partes é substituído por desvantagem e desequilíbrio para ambos os contratantes.

Basta pensar em contratos de empreitada e prestação de serviços continuada, em que um dos lados não consegue momentaneamente manter a entrega ou prestação do serviço prometido em razão das restrições de transportes ou de mão-de-obra, da dificuldade de acesso ou falta de insumos, dentre outras inúmeras situações decorrentes das medidas adotadas para a contenção da pandemia. Noutra banda, a contraparte que deve arcar com a contraprestação econômica não mais possui condições de fazê-lo, tampouco nos valores inicialmente avençados, sofrendo ambos os lados da relação contratual em razão das mudanças drásticas no cenário econômico, cuja extensão ainda é incerta.

Assim, nas situações em que ambas as prestações são afetadas e sofrem desequilíbrio em razão dos efeitos das medidas adotadas para a contenção do covid-19, pode-se aplicar os remédios da resolução ou revisão contratual previstos nos artigos 478 a 480 e 317, todos do Código Civil, a ser precedida de cuidadosa ponderação acerca das condições existentes para a adoção de uma ou outra solução.

Até mesmo porque a eventual resolução do vínculo contratual, além de devolver as partes ao status quo ante, produz efeitos que não se restringem aos contratantes, atingindo toda a comunidade, podendo ensejar a quebra de empresas, demissões em massa, além de outras situações com efeitos danosos e ainda desconhecidos, com todas as consequências sociais daí decorrentes, incluindo o aumento do índice de pessoas em estado de vulnerabilidade e da criminalidade.

Por outro lado, as revisões contratuais, a depender do caso, podem se apresentar demasiadamente profundas e ensejar a modificação do próprio objeto do contrato e dos seus elementos principais, exigindo enorme esforço dos contratantes para, ao mesmo tempo, preservar os seus interesses e agir com responsabilidade social.

Desta forma, não se pode exigir que as partes se mantenham vinculadas e cumpram obrigações que não mais se afiguram possíveis ou necessárias na forma como inicialmente avençadas, mas sim, na medida das possibilidades, que busquem a revisão contratual para a correção dos desequilíbrios, a partir de exercícios financeiros realizados por ambos os contratantes, visando à manutenção sadia dos vínculos em consonância com a função social dos contratos e a boa-fé objetiva.

Possível dizer, então, na configuração de um "dever", minimamente social e ético, de se buscar, em primeiro lugar, a renegociação e restauração do equilíbrio contratual, em respeito ao princípio da conservação dos contratos, protegendo a criação e circulação de riqueza, favorecendo o desenvolvimento econômico e social da pessoa humana e, consequentemente, a sua dignidade protegida pelo artigo 1º da Constituição da República3.

Cabe a nós advogados o incentivo e orientação do exercício das autocomposições, lembrando sempre que, tal qual revelado pelo COVID-19, as decisões tomadas têm efeitos sociais e são responsabilidade de todos, não sendo possível, nesse momento, a adoção de critérios rígidos e velhos que não contemplem a boa-fé objetiva, a função social do contrato e a cooperação, a fim de se criar um cenário mais equilibrado para a manutenção e regência das relações contratuais.

Em suma, além dos remédios da resolução ou revisão já previstos no nosso Código Civil, a serem aplicadas caso a caso, conforme o estágio que se apresentar a relação contratual em análise, o que se busca são soluções que se comprometam com a responsabilidade social, aliadas aos princípios da conservação do vínculo contratual, da função social do contrato e da boa-fé objetiva, bem como ao incentivo das autocomposições, favorecendo o desenvolvimento econômico e social da pessoa humana e, consequentemente, a sua dignidade protegida pelo artigo 1º da Constituição da República.

Conclusão

Conforme demonstrado neste estudo, os efeitos da pandemia decorrente das doenças causadas pelo covid-19 podem configurar hipóteses supervenientes, extraordinárias e de consequências econômicas imprevisíveis, atingindo os dois lados da relação contratual e provocando o desequilíbrio das prestações -ainda que em medidas diversas para cada um dos contratantes -, configurando hipótese sui generis de onerosidade excessiva bilateral, na qual o requisito da vantagem extrema para uma das partes é substituído por desvantagem e desequilíbrio para ambas.

No referido contexto, autoriza-se a aplicação dos remédios da resolução ou revisão dos contratos cuja dinâmica tenha sido comprovadamente impactada pelas restrições e medidas governamentais impostas para a contenção da propagação do COVID-19, na forma regulada nos artigos 478 a 480 e 317, todos do Código Civil, a ser a analisada caso a caso.

Defende-se, contudo, diante da extraordinariedade da situação e da magnitude dos seus impactos, a configuração para ambos os contratantes de um "dever", minimamente social e ético, de buscar primeiramente a renegociação e restauração do equilíbrio contratual, em respeito ao princípio da conservação dos contratos (o qual tem fundamento na função social do contrato), protegendo a criação e circulação de riquezas, favorecendo o desenvolvimento econômico e social da pessoa humana e, consequentemente, a sua dignidade protegida pelo artigo 1º da Constituição da República.

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1 in SCHREIBER, Anderson. Equilíbrio Contratual e Dever de Renegociar. 1ª Edição, 2ª Tiragem, 2018. São Paulo: SaraivaJur. p. 176-177.

2 Ob. cit. 247-248.

3 Andrade; G.; O Princípio da Conservação dos Negócios Jurídicos - Aplicações Prática. Disponível em https://gilbertoandrad.jusbrasil.com.br/artigos/152372667/o-principio-da-conservacao-dos-negocios-jur. Acessado em 23 de março de 2020.

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*Natália Dupin de Paula é advogada do escritório Moura Tavares, Figueiredo, Moreira e Campos Advogados.

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