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Precatório: Digerindo a jabuticaba

Se é verdade que a Covid/19 impôs uma situação imprevista ao administrador público, também é certo que o credor (máxime o idoso e/ou doente) não pode ser, mais uma vez, deixado ao relento, enquanto que o administrador público usa, fartamente, a verba publicitária, ao invés de remanejá-la para a quitação dos precatórios.

quinta-feira, 9 de abril de 2020

Atualizado às 14:29

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Diz-se por aí: o que só existe no Brasil, e não é jabuticaba, só pode ser besteira. Isso se aplica com justeza ao precatório (invenção brasileira), o qual, diferente da frutinha, é de notável amargor. Dito de outra forma, o precatório é algo que deu errado, e precisa ser reformulado, ou quando menos, passar a ser manuseado juridicamente de forma racional. Cabe à engenhosidade brasileira - que criou o precatório - encontrar meios razoáveis e justos de conviver com esse invento, que só existe aqui em Pindorama,  e dispensa patente, porque nenhum País do Mundo quis copiá-lo (os estrangeiros nem desconfiam de qual armadilha escaparam...).

O precatório (que poderia ser redesignado como jabuticaba jurídica, com a graciosa sigla JJ) tem firme assento em nosso ordenamento jurídico pretérito, e foi mantido na Constituição Federal de 1988, a qual - em suas sucessivas emendas - vem conservando esse regime de pagamento das dívidas do Poder Público, oriundas de condenações judiciais definitivas.

Diz lá o art. 100, em seu quinto parágrafo, que

"É obrigatória a inclusão, no orçamento das entidades de direito público, de verba necessária ao pagamento de seus débitos, oriundos de sentenças transitadas em julgado, constantes de precatórios judiciários apresentados até 1º de julho, fazendo-se o pagamento até o final do exercício seguinte, quando terão seus valores atualizados monetariamente".

A quem ler essa promessa da CF/88, parecerá que o credor das entidades de direito público, uma vez expedido o precatório, receberá com brevidade o dinheiro que lhe cabe. Alto lá! estamos na Terra Brasilis, e a JJ (jabuticaba jurídica) é fruta manhosa, de complexa digestão. Em contrário ao que exige o art. 100 da Constituição Cidadã, os débitos de precatórios não são pagos no prazo certo, e os administradores públicos não recebem reprimenda eficiente: o sequestro de verbas públicas (previsto na CF/88) é "ave rara" e passa longe de nossa prática judiciária.

Ademais, o não pagamento dos precatórios não configura, por si só, improbidade administrativa. Certos da impunidade, os administradores públicos desenvolveram ao longo do tempo o feio hábito de não pagar, na íntegra, os débitos de precatórios, que se foram acumulando e hoje são multibilionários (ressalve-se que ao menos no Estado do Rio de Janeiro a gestão dos precatórios feita pelo Tribunal de Justiça foi aprimorada e, nos últimos anos, ganhou eficácia, e mesmo assim há um passivo enorme a ser quitado).

No momento atual, e usando o pretexto dos malefícios da Covid/19, se está orquestrando movimento político, para que os pagamentos de precatórios sofram mais um atraso. O porta-voz é o Governador paulista, que veio a público defender a tese de que os pagamentos de precatórios municipais, estaduais e federais sejam interrompidos até 31 de dezembro de 2020.

Ao que parece, o Parlamento Nacional ouviu com simpatia esse discurso e, mais uma vez, se inclina a deixar os credores à míngua, esticando os prazos de pagamento, dando força a esse movimento político, cujo mote se traduz, na língua do povo, em "devo não nego, pago quando puder".

E os credores, especialmente os idosos e/ou doentes, como ficam?

A questão é complexa, mas é evidente que a comunidade jurídica tem que se posicionar, firmemente, contra mais essa agressão ao direito dos credores públicos, e nesse sentido, podem a OAB, IAB, Defensoria Pública, dentre outras entidades, empenhar-se mais a fundo, para sensibilizar o Eg. Supremo Tribunal Federal a flexibilizar sua atual jurisprudência, e passar a permitir que parte das verbas que integram o orçamento público sejam bloqueadas e compulsoriamente direcionadas ao pagamento de precatórios, em especial dos credores idosos e/ou doentes.

É irrazoável que o ente público (que não vem quitando os precatórios) possa, ao mesmo tempo, gastar fortunas em publicidade, na qual só mostra o lado positivo da Administração e omite o default (calote) dos precatórios, em forma sutil de propaganda enganosa; nada se argui em desfavor dos criativos publicitários, mas diante da atual crise, oriunda da Covid/19, que atinge em cheio a população, e dentre esta os mais idosos (que formam grande contingente dos credores de precatórios), é justo que as verbas publicitárias sejam remanejadas para o pagamento das dívidas públicas, na forma do art. 100 da CF/88.

Veja-se a argumentação desenvolvida no RESP Nº 735.378-RS, Relator Ministro LUIZ FUX:

"Os direitos fundamentais à vida e à saúde são direitos subjetivos inalienáveis, constitucionalmente consagrados, cujo primado, em um Estado Democrático de Direito como o nosso, que reserva especial proteção à dignidade da pessoa humana, há de superar quaisquer espécies de restrições legais."

Se o credor do precatório (idoso e/ou doente) tem direito ao recebimento de seu crédito, na forma e prazo do art. 100 da CF/88, de modo a ver garantido seu direito à vida, incluindo eventual tratamento médico (que nem sempre o SUS pode fornecer); e se o devedor (ente público) tem verba publicitária a gastar, a qual não tem o mesmo caráter de essencialidade; e se a CF/88 promete no art. 3º uma sociedade justa e solidária, é possível que, em favor dessa classe de credores, haja o bloqueio judicial da verba publicitária do ente público que não quita a obrigação na forma e prazo do art. 100 da CF/88.

Se é verdade que a Covid/19 impôs uma situação imprevista ao administrador público, também é certo que o credor (máxime o idoso e/ou doente) não pode ser, mais uma vez, deixado ao relento, enquanto que o administrador público usa, fartamente, a verba publicitária, ao invés de remanejá-la para a quitação dos precatórios.

Se os tempos atuais exigem sacrifícios, que estes recaiam sobre essa verba, que não é essencial, ao passo que o direito do idoso (CF/88, art. 230) deve merecer especial proteção, a qual não lhe pode ser negada, sob o fundamento da intangibilidade das verbas públicas. O direito à vida e à saúde se sobrepõe e - com a devida vênia - deve ter, do Poder Judiciário, a necessária proteção.

Com espírito de Justiça, de olhos postos nos arts. 3º, 100 e 230 da CF/88, e usando os instrumentos adequados, o Poder Judiciário, mesmo em tempos difíceis, poderá fazer com que a "jabuticaba jurídica" (precatório) se torne digerível e propicie sadia nutrição àqueles que dela mais necessitam.

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*Francisco A. Fabiano Mendes é sócio do escritório Fabiano Mendes Advogados.

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