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Redesenho social; novos tempos. Sombrios?

A crise pandêmica antecipou em muitos anos um processo que já se encontrava em curso, com nome e sobrenome: quarta revolução industrial. Muita gente a vê com bons olhos; outras, não.

quinta-feira, 9 de abril de 2020

Atualizado às 09:26

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Para lá das teorias conspiratórias, tenho que a pandemia covid-19, depois de vencida ou, ao menos, absorvida, promoverá nova configuração social.

Não falo naquela reengenharia política que muita gente tem falado e escrito por aí. Pouca condição tenho para falar de algo tão profundo.

Quando digo redesenho social, digo nos planos comercial e profissional.

Quem não souber se reinventar perderá espaços e oportunidades.

As empresas buscarão cortar custos e o mundo viu que não poucas atividades podem ser exercidas no sistema home office.

Penso que a crise pandêmica antecipou em muitos anos um processo que já se encontrava em curso, com nome e sobrenome: quarta revolução industrial.

Muita gente a vê com bons olhos; outras, não.

Para alguém como eu, a quarta revolução industrial é boa. Mas será que é boa para a maioria?

Tenho lá minhas dúvidas.

Não confio na forma como governos e stakeholders trabalharão com os efeitos sociais das mudanças.

Se existe uma coisa que aprendi ao longo da vida é que entre o bem comum e o egoísmo, os homens primam por este e deixam aquele apenas no campo retórico.

Bem comum é poesia; egoísmo é prosa. O mundo incensa a poesia, mas vive da prosa.

E prosa escrita com as tintas do imediatismo.

A pergunta que cada pessoa que será beneficiada pelo redesenho tem que se fazer é: adiantará muita coisa eu conseguir triunfar nesse novo tempo se tudo ao meu redor estiver em corrosão acentuada?

Por isso a sensibilidade tem que estar presente na cabeça de todo o mundo, mesmo que "mais por cálculo do que por índole", no dizer de Machado de Assis.

Sim, existem picos de generosidade heroica entre as gentes, mas estes não são a regra; são a exceção.

Sei que não sou ninguém importante e minha voz é menos do que rouca, quase afônica, mas quem convive comigo ou se dá ao hercúleo trabalho de ler o que escrevo sabe que o assunto quarta revolução industrial me preocupa faz tempo.

Preocupação que herdei de minhas reiteradas visitas ao Vaticano, das conversas com um amigo monsenhor, membro da Secretaria de Estado da Santa Sé, e um sacerdote, professor da Pontifícia Università dela Santa Croce (Roma).

Os benefícios da quarta revolução industrial - que eu mesmo aproveito em meu cotidiano profissional - não são poucos, reconheço, mas talvez sejam menores, bem menores, do que os efeitos colaterais.

A tendência será, ao contrário do que pensam seus entusiastas, aumentar os hiatos sociais e os problemas que lhe são diretamente atrelados.

Deixando de lado discussões ideológicas, percebo que muita gente se preocupa (com fundada razão) nos problemas econômicos imediatos com o distanciamento social imposto como forma desesperada (e, acredito, necessária) para impedir o crescimento geométrico dos contágios.

Pois bem, não descuido dessa preocupação e sei que isso já se mostra no seio social, mas é algo pequeno diante das grandes mudanças na esteira da pandemia.

Para não alongar, termino com um exemplo muito pessoal: sempre me opus ao e-commerce. Era quase um apóstolo do seu não uso. Gostava de comprar as coisas nas lojas. Como o isolamento, passei a ser usuário e não sei se, agora, mesmo com todo este meu discurso, deixarei de fazer uso do modelo. Outro exemplo pessoal: virava as costas para o chamado ensino à distância. Aproveitei o tempo em casa para fazer um curso de Direito Processual Civil e gostei muito da experiência. Hoje, vejo com bons olhos o sistema de ensino virtual. Resolvi fazer outro, de seguro de transporte, e aprimorar meus estudos de inglês, italiano e espanhol, sem sair de casa, o que me poupa tempo e muito facilita.

Agora, o dilema: ao sair menos de casa, para trabalhar, para aprender, para comprar, também usarei menos o automóvel, gastarei menos os pneus, consumirei menos gasolina, necessitarei menos de roupas novas e por aí vai a banda da mudança. Algo tão sistêmico, a partir dos meus costumes, que talvez em algum momento, ainda que distante, a conta negativa também mostre sua garra nas minhas atividades profissionais, já que intimamente relacionada ao vigor do comércio exterior. Exagero? Penso que não!

O amigo que me lê consegue enxergar a dimensão da mudança?

É possível notar que a mudança que em princípio não afeta A ou B cedo ou tarde também os afetará?

Por isso é preciso muito cuidado e muita consciência por parte de quem está com os pés no lado mais forte do círculo social.

Eu sei que posso cortar muitos custos do meu negócio, hoje. Sei, mas resistirei. Hoje eu sou o que corta os custos, amanhã serei, talvez, o custo cortado de alguém acima.

Sem entrar em contradição, mas entrando (e que homem não tem suas contradições?), tenho que pensar muito bem sobre as minhas mudanças de hábitos e afastar o demônio do simplismo da minha vida. Quem só pensa em números e jacta-se por isso se esqueça de algo que a sabedoria popular cunhou e o Thomas Merton tratou com ares espirituais: nenhum homem é uma ilha!

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*Paulo Henrique Cremoneze é sócio de Machado, Cremoneze, Lima e Gotas - Advogados Associados.

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