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Covid-19 e a cláusula de alocação de riscos por fatos supervenientes em contratos paritários

Neste particular, há divergência doutrinária que reside sobre qual teoria teria sido encampada pelo Código Civil de 2002, havendo especialistas que saem em égide de ter sido a teoria da imprevisão, de origem francesa, enquanto há aqueles que defendem ter sido a teoria da onerosidade excessiva, que teria sido transposta do Código Civil italiano.

quinta-feira, 16 de abril de 2020

Atualizado às 11:23

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Em razão da atual pandemia, ocasionada pelo covid-19, a ambiência dos contratos foi permeada por insegurança jurídica lancinante, afetando não apenas os negócios jurídicos entabulados previamente à mencionada pandemia, mas também os firmados contemporaneamente àquela.

Neste diapasão, é de importância ímpar que a revisão contratual seja esquadrinhada pelo prisma do Código Civil, o qual trata da questão em seus artigos 317 e 478, sendo certo que o tratamento que a questão recebe por fato superveniente é diferente da regida pelo Código de Defesa do Consumidor. Neste diploma, tem-se a aplicação da teoria da quebra das bases objetivas do contrato, ao passo que o diploma civil, qualquer que seja a posição doutrinária adotada, consagra teoria diversa.

Neste particular, há divergência doutrinária que reside sobre qual teoria teria sido encampada pelo Código Civil de 2002, havendo especialistas que saem em égide de ter sido a teoria da imprevisão1, de origem francesa, enquanto há aqueles que defendem ter sido a teoria da onerosidade excessiva2, que teria sido transposta do Código Civil italiano3.

O que se pretende analisar de forma mais detida é a possibilidade de os contratantes afastarem a revisão contratual por força da onerosidade excessiva ou da teoria da imprevisão (a depender do posicionamento adotado, conforme explicado) por força de fato superveniente, motivo pelo qual a supracitada divergência acadêmica será deixada de lado - sendo de bom alvitre salientar, porém, que ambos os posicionamentos ostentam defensores e argumentos de respeito.

Pensemos, a título de exemplo, em um contrato de compra e venda de imóvel, a ser pago de forma parcelada ao longo dos anos (trato sucessivo) - rememora-se que o exemplo necessariamente deve ser de trato sucessivo ou execução diferida, sob pena de inviabilizarmos a revisão, além do contrato de compra e venda ostentar as características, dentre outras, de sinalagmático, oneroso e comutativo, logo, perfeitamente apto a amoldar-se na discussão ora perseguida.

Imaginemos, ainda, que o mencionado negócio jurídico tenha sido firmado por particulares em pé de igualdade, situação paritária, no qual, em razão de concessões mútuas, tenha sido acordada cláusula de exclusão da possibilidade de qualquer alegação futura de revisão ou resolução contratual em razão de fatos supervenientes, que venham a gerar onerosidade excessiva, causados pela pandemia. Seria esta cláusula válida? Poderia, por exemplo, encontrar guarida no artigo 393 do Código Civil, in fine?

Nos parece que a melhor resposta perpassa pela principiologia regente dos contratos, precipuamente pela boa-fé objetiva e seus deveres parcelares e, ainda, pela autonomia privada com destaque às recentes alterações realizadas pela chamada Lei da Liberdade Econômica (lei 13.874/19, fruto da conversão da medida provisória 881).

Em um primeiro momento, faz-se necessário um comentário: parece ressoar evidente que em um negócio jurídico firmado durante uma pandemia, tal como o supracitado - e, portanto, não apenas com efeitos nocivos já conhecidos, mas inclusive já sentidos, pelos contratantes -, os riscos podem ser alocados livremente, principalmente considerando-se que se trata de partes paritárias e de termos negociados.

Ademais, importante consignar que em contratações deste tipo, as concessões a serem feitas pelas partes, tal como prazos e modos de pagamento, bem como a estipulação de seus consectários, o são tendo em mente o contrato como um todo, o que inclui a cláusula ora comentada. Assim sendo, por corolário lógico, um dos contratantes - aqui, o vendedor -, se encontrará em posição de momentânea fragilidade negocial quando tem a alocação dos riscos trabalhada a seu favor, pois, como dito, deverá aquiescer com cláusulas outras que beneficiem o adquirente.

Diz-se isso pois tem sido cada vez mais difundida a ideia de que a conservação do negócio deve ser a regra, e não sua anulação, em prol do princípio da conservação contratual (v.g. enunciado 176 da III Jornada de Direito Civil CJF). O caso em comento não excepciona a regra, entretanto, qualquer modificação no avençado poderia causar desequilíbrio indesejável, pois, como posto, uma cláusula com esse porte ensejou negociações na mesma proporção, devendo haver cautela quando de sua manipulação.

Voltando os olhos novamente ao objeto central, qual seja, a validade da cláusula, aponta-se que não se desconhece a crescente relativização do princípio da força obrigatória do contrato (pacta sunt servanda). Todavia, uma parcela de mitigação considerável advém da própria boa-fé objetiva, sendo estreme de dúvidas que no caso em tela este elemento atua em sinergia com aquele princípio; qualquer tentativa de relativizar a cláusula acabaria por incorrer em conflito com a própria boa-fé objetiva - já que houve a sua livre negociação-, em sua função de integração (artigo 422 do Código Civil), que impõe a sua observância em todas as fases contratuais.

Outro aspecto de relevo consubstancia-se no conceito parcelar da boa-fé objetiva da vedação ao comportamento contraditório - a conhecida máxima venire contra factum proprium non potest -  contemplando-se a confiança e a lealdade que devem dirigir o atuar dos contratantes (v.g. enunciado 362 da IV Jornada de Direito Civil CJF).

Ao consentir com a cláusula e, consequentemente, com a assunção da responsabilidade pelos riscos, ao comprador não seria lícito buscar o sucesso em seu pleito de afastamento da cláusula sem amoldar-se em claro comportamento contraditório - rememorando que na compra e venda a prazo, do nosso exemplo, o adquirente figura como devedor, já que lhe cabe a contraprestação.

Por derradeiro, mas de forma alguma menos importante, o recrudescimento no tratamento e na viabilidade de revisão e controle dos contratos, trazido pela Lei 13.874/19, concretiza a pedra de toque para o questionamento aqui esquadrinhado. A citada lei trouxe diversas mudanças, sendo primordial que algumas dessas alterações sejam melhor examinadas: a lei acrescentou o parágrafo primeiro ao artigo 113 do Código Civil, o qual confirma, em seu inciso I, a vedação ao comportamento contraditório abordado outrora, in verbis: "§1º: A intepretação do negócio jurídico deve lhe atribuir o sentido que: I - for confirmado pelo comportamento das partes posterior à celebração do negócio".

Houve igualmente a inclusão de um parágrafo segundo, prevendo: "As partes poderão livremente pactuar regras de interpretação, de preenchimento de lacunas e de integração dos negócios jurídicos diversas daquelas previstas em lei". Desta feita, é imperioso que percebamos que a lei tem como teleologia expandir as margens da liberdade contratual, isto é, da autonomia dos contratantes no que tocante ao conteúdo do negócio jurídico - sem que possamos, por óbvio, falar em total liberdade, por força da autonomia privada e seus corolários limitativos de ordem pública.

Essa teleologia resta hialina quando somamos com as inovações trazidas pelos artigos 421 e 421-A. Naquele dispositivo, estabeleceu-se o princípio da intervenção mínima4 e a excepcionalidade da revisão contratual, enquanto que neste optou-se por dirimir quaisquer dúvidas sobre a liberdade da alocação de riscos, além de reforçar o que já parecia óbvio: a excepcionalidade da revisão contratual (incisos II e II, respectivamente).

Por tudo que foi analisado, é possível perceber alguns dos impactos da pandemia covid-19 nos contratos realizados entre particulares quando em relações paritárias. Ademais, resta claro que quando as partes estabelecem, de comum acordo, cláusula prevendo alocação de riscos e a impossibilidade de revisão contratual - por onerosidade excessiva ou pela teoria da imprevisão - em um cenário de alta instabilidade, tal como o presente, causado pela covid-19, configura-se como a medida mais adequada, pelo Judiciário, não se imiscuir em tais negócios jurídicos, sob pena de abalar a segurança jurídica necessária à preservação da autonomia da vontade e da boa-fé objetiva.

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1 É o caso de Maria Helena Diniz (Curso de Direito Civil Brasileiro. Teoria Geral das Obrigações. 22ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 94) e; de Nelson Rosenvald (Curso de Direito Civil. Contratos. 7ª ed.  Salvador: JusPodivm, 2017, p. 263).

2 Os autores que defendem ser esta a teoria abraçada pelo Código Civil, o fazem em razão do artigo 478 equivaler ao artigo 1.467 do Código Civil Italiano. É o caso de Antônio Junqueira de Azevedo, em atualização à obra de Orlando Gomes (Contratos. 26ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p. 214) e; Judith Martins-Costa (Comentários ao Novo Código Civil. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 297-298).

3 O Código Civil Italiano, em seu Quarto Livro, artigo 1.467, assim dispõe: "Nei contratti a esecuzione continuata o periodica ovvero a esecuzione differita, se la prestazione di una delle parti è divenuta eccessivamente onerosa per il verificarsi di avvenimenti straordinari e imprevedibili, la parte che deve tale prestazione può domandare la risoluzione del contratto, con gli effetti stabiliti dall'art. 1458 (att. 168)".

4 Anderson Schreiber, em seu Código Civil Comentado juntamente com Flávio Tartuce e outros, tece críticas ao dispositivo, as quais nos filiamos. Transcrevemos parte delas, sendo autoexplicativas, senão vejamos: "Se a intenção da lei foi evitar que revisões judiciais de contratos resultem em alterações excessivas do pacto estabelecido entre as partes, empregou meio inadequado: a?rmar que a revisão contratual deve ser excepcional nada diz, porque não altera as hipóteses em que a revisão se aplica, hipóteses que são expressamente delimitadas no próprio Código Civil." In: SCHREIBER, Anderson. Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p. 254-255.

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*Baldomero Cortada de Oliveira Bello é advogado especializado em Direito Civil, Contratual e Processual Civil. Cursa o último semestre da Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro - EMERJ (Especialização em Direito Público e Privado) e Pós Graduação em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC/RJ.

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