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Limitação de juros remuneratórios para as instituições financeiras em tempos de pandemia

Uma análise constitucional em perspectiva com o papel estratégico do Sistema Financeiro Nacional

quinta-feira, 23 de abril de 2020

Atualizado às 14:14

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Em recente decisão exarada pelo juiz Renato Coelho Borelli, da 9ª Vara Federal Cível de Brasília, foi concedida tutela antecipada, por força da qual foi imposta uma proibição genérica e abstrata ao aumento da taxa de juros, assim como foi determinado que os bancos apresentassem novas linhas de créditos em benefício do mercado produtivo, mediante um afrouxamento das exigências impostas para a concessão de crédito.

O juiz destaca em sua decisão que a redução dos depósitos compulsórios teria como principal objetivo aumentar a liquidez do sistema financeiro nacional, a fim de permitir maior circulação do dinheiro em forma de crédito às empresas e indivíduos como importante medida anticíclica.

Contudo, não são necessárias grandes elucubrações para verificar que a decisão se apoia em premissas válidas para impor argumentos que levam a uma conclusão falsa ou irrelevante, típico caso de falácia não-formal de relevância, uma vez que apresenta premissas verdadeiras, porém, dissociadas da conclusão que pretende justificar, o que tornam os argumentos inválidos, senão vejamos.

A redução dos depósitos compulsórios tem como principal objetivo o aumento da liquidez do sistema financeiro nacional (primeira premissa), assim como, o aumento de liquidez deve servir para aumentar o volume de dinheiro circulando na economia (segunda premissa); logo, os bancos estariam proibidos de aumentarem os juros, assim como não estariam autorizados a reforçar exigências com base em critérios objetivos para a liberação de linhas de créditos (conclusão irrelevante/dissociada das premissas que a antecederam).

Com nítido apelo retórico, o argumento não encontra uma lógica que o sustente.

Se a decisão naufraga pela própria inconsistência lógica em seus argumentos, sob o aspecto jurídico, a decisão se revela arbitrária, seja por não encontrar amparo legal, seja por representar um descabido ativismo judicial, suplantando a competência legislativa, ao impor restrições de caráter genérico e abstrato, especificamente sobre uma matéria cuja regulação é reservada à lei complementar.

Vale lembrar que judicialização não é a mesma coisa que ativismo judicial, embora não seja uma discussão para o momento, é preciso contextualizar o papel do Poder Judiciário na resolução de conflitos, no limite dos quais deve atuar o órgão judicante, portanto, é legítima a intervenção judicial nos casos concretos, cujos contratos contenham eventuais cláusulas abusivas, como, por exemplo, juros cobrados em patamares exorbitantes à média do mercado (existe inclusive um ranking no site do Bacen com as taxas cobradas por cada instituição financeira, de acordo com a modalidade de crédito).

Contudo, a determinação judicial genérica e abstrata, cujo comando deve emanar da norma jurídica, revela um inapropriado ativismo judicial à medida em que usurpa a competência atribuída ao Poder Legislativo, ferindo de morte o princípio da separação dos poderes, consagrado pelo artigo 2º, da Constituição Federal.

Considerando o importante papel do sistema financeiro nacional no desenvolvimento do país e nos interesses da coletividade, o artigo 192, caput, da Constituição da República Federativa do Brasil, reserva sua regulação à lei complementar, para a aprovação da qual o artigo 69 da Constituição exige maioria absoluta, o que revela a relevância estratégica de um setor, cuja estrutura deve ser definida com todos os cuidados que demandam um processo legislativo especial.

Neste eito, a lei nº 4.595, de 31 de dezembro de 1964, recepcionada pela Constituição Federal de 1988, com status de lei complementar, define, em seu artigo 10, as competências privativas atribuídas ao Banco Central da República do Brasil, entre as quais se destaca a determinação dos percentuais dos depósitos compulsórios pelas instituições financeiras.

Entre outras competências privativas do Banco Central, igual destaque é atribuído ao exercício do controle do crédito sob todas as suas formas (art. 10, inciso VI, da lei nº. 4.595/64), donde emerge a inequívoca ilação de que o magistrado não está autorizado a criar medidas de controle cuja competência é atribuída privativamente ao Banco Central, sobretudo proibições genéricas e abstratas em relação à concessão de créditos privados sob a égide do sistema financeiro nacional, cujo papel estratégico no desenvolvimento do país e nos interesses da coletividade é enaltecido no próprio texto do artigo 192, caput, da Constituição Federal e sua regulação subordinada ao rigoroso procedimento legislativo imposto pelo artigo 69 da Constituição.

Em uma leitura desatenta aos argumentos loquazes trazidos na decisão, podemos ter a falsa impressão de que a medida adotada pela Circular nº 3.993, de 23 de março de 2020, editada pelo Banco Central do Brasil, estivesse subordinada às ações complementares necessárias para a consecução de seu desiderato. O que não é verdade!

Até porque a composição do preço cobrado pelo dinheiro emprestado (juros remuneratórios) envolve cálculos complexos, que devem levar em consideração algumas variáveis, entre as quais, o aumento da liquidez não é o fator determinante.

Um dos principais fatores que contribuem para a composição da remuneração do capital emprestado (spread) é o risco da operação, que deve ser analisado sob dois aspectos distintos, quais sejam: (i) o risco individualmente avaliado em cada operação, análise da capacidade financeira do tomador, garantias oferecidas de acordo com cada modalidade de crédito, histórico bancário, entre outros elementos envolvidos na análise do risco, e, (ii) o risco do mercado, avaliado de acordo com o nível de estabilidade econômica do país.

A primeira concepção está invariavelmente subordinada à análise de crédito de acordo com critérios objetivos e classificação de riscos que seguem orientações criteriosas do próprio Banco Central, de modo que uma decisão absolutamente genérica, determinando que os bancos se abstenham de intensificar exigências para a concessão de crédito, além de ilegal é inexequível, uma vez que não define quais seriam os critérios para tornarem válidas as exigências.

Liberar linhas de crédito sem critérios determinados por metodologias desenvolvidas pelo mercado financeiro para mitigar o risco de inadimplência e até de fraudes, além de revelar uma conduta irresponsável, coloca em risco todo o sistema financeiro nacional, cujo colapso levaria o país a uma devastação econômica jamais vista!

O segundo aspecto está relacionado ao risco do mercado, de maneira que, sobrevindo um cenário de recessão provocado pela pandemia, a instabilidade econômica aumentaria significativamente o risco de inadimplência, o que, consequentemente, levaria a um aumento proporcional da remuneração do capital exposto ao risco.

Até porque em um momento delicado como este, os bancos têm se revelado um importante instrumento através do qual um grande volume de recursos pode ser injetado no mercado para ajudar a reativar a economia fragilizada pela retração (movimento anticíclico). No entanto, exatamente para que os bancos possam continuar emprestando, é imprescindível a preservação de mecanismos de proteção ao capital exposto ao risco, proporcional ao qual serão definidas as taxas de juros.

De toda sorte, o BACEN, no uso de suas atribuições legais, dispõe do COPOM (Comitê de Política Monetária), que reúne capacitação técnica especializada para definir as políticas monetárias adequadas em perspectiva com o cenário macroeconômico, o que afasta, completamente, do Poder Judiciário, qualquer prerrogativa de usurpar tal competência atribuída privativamente ao Banco Central.

A regulação dos mecanismos de concessão de créditos está subordinada aos critérios definidos pelo Banco Central, sob a égide do sistema financeiro nacional, cujo papel estratégico no desenvolvimento do país justifica o tratamento constitucional dispensado ao tema.

Logo, parece de uma obviedade a toda prova, que a definição dos contornos de um assunto estratégico para o desenvolvimento do país, não pode ser adotada de acordo com o tirocínio equitativo do órgão judicante em detrimento das políticas monetárias definidas pelo órgão ao qual é atribuída competência privativa, sob pena de irremediável subversão da ordem jurídica!

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*Rafael Buzzo de Matos é sócio do BMM Advocacia Personalizada.

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