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A postergação do prazo para pagamento do ICMS: possibilidade e omissão legislativa

O não pagamento do ICMS "próprio", qual seja, aquele decorrente da regular venda de mercadorias (ou prestação de serviços sujeita à incidência deste imposto), constitui crime contra a ordem tributária.

quinta-feira, 23 de abril de 2020

Atualizado às 11:54

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Em meio à crise ocasionada pelo novo coronavírus (covid-19), é sabido que diversos contribuintes vêm buscando o Poder Judiciário para garantir a dilatação do prazo para o recolhimento de tributos.

Tal fato se justifica por se tratar de pandemia que irradia efeitos além da saúde pública, atingindo diretamente a economia, seja dos entes públicos ou de particulares. Para o Brasil, o Banco Mundial estima, em 2020, uma queda de 5%1 no Produto Interno Bruto - PIB, que representa a soma de bens e serviços produzidos no país.

No plano federal, foram editadas algumas medidas neste sentido, como por exemplo as portarias 139 e 150 de 2020, que garantem a extensão no prazo de pagamento da contribuição previdenciária (sobre a receita bruta e folha de pagamentos), PIS e COFINS dos meses de março e abril.

Já no âmbito estadual a situação é diversa. Com exceção das empresas incluídas no regime do Simples Nacional, os contribuintes do ICMS permanecem sujeitos aos prazos vigentes em situações ordinárias na grande maioria dos Estados, muito embora, em diversos locais nos quais fora decretado o estado de calamidade, encontram-se impedidos, parcial ou totalmente, de desempenharem suas atividades econômicas.

É de se perquirir, então, qual a razão para tal omissão.

Inicialmente, os Estados não podem, a seu bel prazer, conceder incentivos de ICMS sem passar pelo crivo do CONFAZ - Conselho Nacional de Política Fazendária. Tal fato se funda na busca pela mitigação da denominada "guerra fiscal", na qual determinada legislação estadual prevê benefícios fiscais com o objetivo de atrair empresas e investimentos em detrimento da arrecadação, e que gera uma reação em cadeia nas Unidades Federativas próximas.

Relativamente à questão da postergação do prazo para recolhimento do imposto, tais entes encontram-se inequivocamente vinculados aos termos do convênio ICMS 126, de 29 de setembro de 2017.

O aludido convênio permite aos Estados a postergação do prazo para pagamento do ICMS, em regra, apenas até o 10º (décimo) dia do 2º (segundo) mês subsequente ao da ocorrência do fato gerador para industriais, e até o 20º (vigésimo) dia do mês subsequente aos demais contribuintes, porém ressalva a concessão de prazos mais favoráveis mediante outro convênio.

E este justamente é o caso do convênio ICMS 181/2017, subscrito pelos Estados do Acre, Alagoas, Bahia, Ceará, Goiás, Mato Grosso, Paraná, Rio Grande do Norte, Roraima, Santa Catarina, São Paulo e Sergipe, e que lhes autoriza a dilatar o prazo para pagamento do ICMS até o último dia do 3º (terceiro) mês subsequente ao da ocorrência do fato gerador.

Relativamente a tais Unidades Federativas, não há que se falar, então, em ausência de autorização do CONFAZ para a postergação do prazo de pagamento do ICMS em três meses, justamente o período que se sugere queda abrupta na atividade econômica devido ao fechamento ou paralisação parcial do comércio e serviços, especialmente no interregno o qual os contribuintes terão pouca ou nenhuma disponibilidade para fazer frente às suas despesas, inclusive tributárias.

Portanto, trata-se de medida a ser adotada pelos ditos Estados mediante análise de critérios de conveniência e oportunidade, vale dizer, não sendo obrigados a adota-la (Ag Reg no RE 630.7052), ainda que sejam de extrema relevância para o momento atual, por diversas razões.

Vejamos.

O não pagamento do ICMS "próprio", qual seja, aquele decorrente da regular venda de mercadorias (ou prestação de serviços sujeita à incidência deste imposto), constitui crime contra a ordem tributária, ao menos na concepção do Supremo Tribunal Federal, ainda que declarado pelo contribuinte3.

Ainda que, de acordo com este entendimento, exija-se a contumácia e o dolo para a configuração do crime4, tratam-se de conceitos abertos e que causam no particular justificada insegurança jurídica no caso de impossibilidade de adimplemento da obrigação tributária, situação que pode ser corriqueira em momentos de crise tal como vivemos atualmente.

Ademais, não se olvida que os entes públicos e principalmente os Estados necessitem de receitas imediatas para combater a pandemia. No entanto, outros direitos e princípios também tão caros à sociedade devem ser objeto de tutela estatal (latu sensu).

Segundo a Constituição Federal, a "ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social" (artigo 170). Fala-se, aqui, do princípio da livre iniciativa, que resta prejudicado em face da impossibilidade de muitas empresas em operar regularmente, e do qual decorrem direitos como o do trabalho e da própria dignidade da pessoa humana.

Ainda que algumas medidas tenham sido tomadas no âmbito trabalhista, especialmente a MP 927/2020, para muitas empresas a não adoção de medidas tributárias, especialmente quanto ao ICMS, um imposto caro e incidente sobre o consumo (e também com efeito regressivo, em detrimento da parcela mais pobre da população), pode significar o encerramento das atividades, em prejuízo inclusive de seus próprios funcionários, que certamente terão dificuldades em prover seu sustento.

Não é demais imaginar que, com a paralisação das atividades econômicas, os particulares não conseguirão adimplir suas obrigações das mais diversas naturezas, eis que nem toda empresa possui reservas ou ativos suficientes para suportar prolongadamente os efeitos da crise. Conforme levantamento realizado pela CEMEC-FIPE (Centro de Estudos da FIPE) noticiado pelo jornal Estado de São Paulo, pequenas e médias empresas se encontram ameaçadas de forma grave:5

"Nesse cenário, 23,3% das companhias já ficariam com o caixa negativo nos primeiros 30 dias. Esse número sobe para 37,1% após dois meses e para 48,6% em 90 dias. A outra metade das empresas chegariam ao final de três meses ainda com o caixa positivo, podendo arcar com as despesas por um tempo maior.

'Esse é o retrato das maiores empresas e das mais capitalizadas do País", afirma Carlos Antonio Rocca, coordenador do CEMEC-Fipe. 'A situação das pequenas e médias é outra história bem mais problemática e exigirá medidas consistentes para evitar a quebradeira. Elas vão sofrer mais do que as grandes, que ainda têm algum caixa a ser consumido'."

Em tal cenário, o desemprego é patente, e via de consequência o próprio aumento da pobreza6. Vejamos que, ao tratar de direito ao trabalho e dignidade da pessoa humana7, também está a se discutir o próprio interesse público, que é muito maior que o interesse unicamente estatal, tal como leciona Celso Antônio Bandeira de Mello, ao consignar que

"Uma vez reconhecido que os interesses públicos correspondem à dimensão pública dos interesses individuais, ou seja, que consistem no plexo dos interesses dos indivíduos enquanto partícipes da Sociedade (entificada juridicamente pelo Estado), nisto incluído o depósito intertemporal destes mesmos interesses, põe-se a nu a circunstância de que não existe coincidência necessária entre interesse público e interesse do Estado e demais pessoas de Direito Público."8.

Questiona-se, então: convém ao interesse público auxiliar os particulares em preservar suas empresas e postos de trabalho e, por consequência, garantir-lhes, a dignidade que lhes é (ou devia ser) resguardada? Assegurar, ainda, o adimplemento das obrigações passadas e futuras, inclusive o próprio pagamento de tributos?

Conforme colocado anteriormente, esta é uma reflexão a ser seriamente realizada pelos representantes do Poder Executivo nos Estados, provavelmente já na pauta dos mandatários, secretários e servidores.

Dadas as consequências econômicas da crise supra narradas e a aparente inércia da maioria dos Governos Estaduais, presume-se que a ausência de medidas efetivas quanto à flexibilização para recolhimento do ICMS tem motivação exclusivamente financeira, aqui não se ignorando a manifesta urgência no direcionamento de receitas para o setor de saúde, ainda que, como cediço, a arrecadação de tributos não seja a única fonte de receita dos Estados (receitas patrimoniais, oriundas de repasses do Governo Federal, de serviços próprios, etc.).

Neste sentido, a equipe econômica do Governo Federal apresentou, em 2019, o denominado "Plano Mansueto" (pois elaborado pelo Secretário do Tesouro Nacional, Mansueto Almeida), que se trata de programa para auxílio de Estados e Municípios com relevantes níveis de endividamento.

Com a ameaça das contas públicas destes entes em razão do novo coronavírus, a Câmara dos Deputados alterou substancialmente o projeto, que passou a prever a compensação, pela União, aos Estados (ICMS) e Municípios (ISS) pelas perdas de arrecadação9, considerando-se as receitas do ano de 2019, além de outras disposições quanto à suspensão do pagamento de dívidas, inclusive com bancos públicos. O texto ainda será apreciado pelo Senado Federal.

Soma-se a tal fato o pedido de diversos Estados, antes da aprovação de qualquer medida neste sentido, para suspensão do pagamento de suas dívidas com a União, que vêm sendo acolhidos pelo Supremo Tribunal Federal. Neste sentido, por exemplo, foi a decisão do ministro Alexandre de Moraes nos autos da ACO 3363 (Estado de São Paulo):

"Diante do exposto, presentes os requisitos do fumus boni iuris e do periculum in mora, DEFIRO A MEDIDA LIMINAR requerida, para determinar a suspensão por 180 (cento e oitenta dias) do pagamento das parcelas relativas ao Contrato de Consolidação, Assunção e Refinanciamento da dívida pública firmado entre o Estado autor e a União, devendo, obrigatoriamente, o ESTADO DE SÃO PAULO COMPROVAR QUE OS VALORES RESPECTIVOS ESTÃO SENDO INTEGRALMENTE APLICADOS NA SECRETARIA DA SAÚDE PARA O CUSTEIO DAS AÇÕES DE PREVENÇÃO, CONTENÇÃO, COMBATE E MITIGAÇÃO À PANDEMIA DO CORONAVÍRUS (COVID-19). Em virtude da medida concedida, não poderá a União proceder as medidas decorrentes do descumprimento do referido contrato enquanto vigorar a presente liminar."

De outro lado, e à míngua de definições práticas na seara tributária estadual, muitos contribuintes não têm se quedado inertes, buscando judicialmente a possibilidade de postergação momentânea no pagamento de tributos, inclusive o ICMS.

Algumas liminares foram concedidas a alguns contribuintes que assim pleitearam à Justiça. Especificamente quanto ao Estado de São Paulo, sabe-se que, no bojo do pedido de suspensão das medidas liminares 2066138-17.2020.8.26.0000, a Presidência do Tribunal de Justiça local determinou a suspensão dos efeitos de diversas decisões liminares, com fulcro em alegada presença de grave lesão à ordem, economia e segurança públicas.

Para o acolhimento do pedido do fisco, o desembargador presidente sustentou que as decisões que dilatam o prazo para pagamento de tributos não podem se sobrepor aos critérios de conveniência e oportunidade do Poder Executivo, considerando ainda que presentes diversos riscos na esfera administrativa, eis que a "redução na arrecadação dos impostos pelo Estado interfere diretamente na execução das medidas necessárias à contenção da pandemia de covid-19", bem como tratar-se de moratória, que por sua vez somente pode ser concedida por lei.

Vejamos que a resposta à provocação dos contribuintes não é simples. Se de um lado o Estado necessita empregar recursos não previstos anteriormente no combate à pandemia, o contribuinte, por outro, permanece com suas obrigações incólumes (ao menos relativamente à maioria dos fiscos estaduais) enquanto não verifica o ingresso de receitas.

Inobstante algumas questões técnicas relevantes envolvidas e que não são o propósito da presente reflexão, é necessário aferir com cautela sobre a situação de cada contribuinte no caso concreto. Não está a aqui a se advogar, portanto, pelo acolhimento indistinto de pleitos desta natureza. Disto definitivamente não se trata.

No entanto, em casos de comprovada excepcionalidade - vale dizer, pontuais, que não acarretem (no universo de casos excepcionais) a perda da capacidade do Estado em auferir recursos mediante tributação, cumpre ao Judiciário o resguardo dos direitos constitucionalmente assegurados já narrados anteriormente.

Ademais, aprovado o denominado "Plano Mansueto", ou seja, compensada a perda de arrecadação dos Estados mediante aporte da União Federal, é legítimo persistir na impossibilidade de flexibilização do recolhimento de tributos no plano estadual?

Assim, sensíveis à crise de saúde provocada pelo covid-19, certo é que os aspectos econômicos envolvidos não podem ser ignorados, por causarem efetivos prejuízos de direitos fundamentais ao cidadão brasileiro. Inegável que o Governo Federal é o ente mais capaz de prover recursos para superar a crise, com emissão de títulos da dívida pública, maior arrecadação de tributos, maior capacidade de endividamento, etc.

Lado outro, não por tal pretexto podem Estados e Municípios se esquivar de suas obrigações juntamente a seus contribuintes10, e para tanto não precisam isentá-los, mas tão somente flexibilizar a possibilidade de adimplemento das obrigações tributárias, como forma de garantir o prosseguimento da atividade econômica local.

Com a preservação de empresas e postos de trabalho, espera-se assegurar futuramente, quando da retomada da atividade econômica, a geração de riqueza nova, acompanhada justamente pela manutenção ou ainda o incremento na arrecadação de tributos como o ICMS e o ISS, em benefício do fisco, empresas e trabalhadores, notadamente o bem comum que deve ser incessantemente buscado.

__________

1 Banco Mundial prevê queda de 5% do PIB do Brasil este ano.

2 "Os convênios são autorizações para que o Estado possa implementar um benefício fiscal. Efetivar o beneplácito no ordenamento interno é mera faculdade, e não obrigação. A participação do Poder Legislativo legitima e confirma a intenção do Estado, além de manter hígido o postulado da separação de poderes concebido pelo constituinte originário."

3 Inobstante entendermos de forma diversa, já que no ICMS próprio não há cobrança ou desconto do imposto, mas tão somente o repasse de seu ônus, que é facultativo na formação do preço da mercadoria. Vale dizer, o consumidor final não é contribuinte do imposto (ainda que por substituição), de modo que não resta configurado o ato tipificado como crime pelo artigo 2º, inciso II da lei dos crimes contra a ordem tributária (lei 8.137/90).

4 "O contribuinte que, de forma contumaz e com dolo de apropriação, deixa de recolher o ICMS cobrado do adquirente da mercadoria ou serviço incide no tipo penal do art. 2º, II, da lei 8.137/90" (RHC 163334)

7 "Das reflexões realizadas a partir da filosofia e, notadamente, do pós-positivismo, exsurge para nós uma nova concepção para o direito tributário, centrada no contribuinte. Conforme já dito, se nos direitos humanos o homem substituiu a norma jurídica como maior referência do direito, no direito tributário esse homem recebe o rótulo de contribuinte (lato sensu), o que exige várias novas conformações. Essas conformações já são realidade em diversos temas tributários.

(....)

Colocar o homem no centro do direito tributário implica afirmar que a simples arrecadação não é mais o fim último do direito tributário. A finalidade do direito tributário é fazer da arrecadação um ato de justiça social, com limites, com proteções ao contribuinte diante da força e da voracidade do Estado."

(BECHO, Renato Lopes. Filosofia do Direito Tributário, ed. Saraiva, 2009, São Paulo, p. 343/344)

8 Curso de Direito Administrativo. Malheiros: São Paulo, 2010, 27ª Ed.

9 SUBSTITUTIVO 1 AO PROJETO DE LEI COMPLEMENTAR 149, DE 2019

Art. 7º Fica a União, nos limites da dotação orçamentária específica, autorizada a compensar a queda de arrecadação:

I - do imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação - ICMS, no âmbito de cada Estado e do Distrito Federal, e

II - do imposto sobre serviço, no âmbito de cada Município e do Distrito Federal.

§. 1º A compensação prevista neste artigo será calculada pela diferença nominal entre a arrecadação ICMS ou ISS nos meses de abril, maio e junho de 2020, e o valor arrecadado por cada ente no mesmo período do exercício anterior.

§. 2º Fica assegurada, da parcela da compensação da União prevista neste artigo, a transferência aos municípios do respectivo Estado de percentual equivalente ao estabelecido no inciso IV do art. 158 da Constituição.

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*Thiago Sarraf é advogado tributarista do Nelson Wilians & Advogados Associados.

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