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Assembleias virtuais e híbridas

Face à necessidade de distanciamento social, a realização de assembleias presenciais com um grande número de pessoas seria de todo inapropriada. O momento excepcional exige regras excepcionais de natureza transitória.

quarta-feira, 29 de abril de 2020

Atualizado às 11:23

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Diante da situação excepcional em que vivemos, foi recentemente editada a MP 931, que, ao lado de normas transitórias (postergação dos prazos para eventos societários, competências excepcionais para órgãos sociais, interrupção de prazos para apresentação de atos no registro empresarial, etc.), promoveu alterações de natureza permanente no Código Civil, na lei 5.764/71 e na lei 6.404 (LSA), inserindo regra similar em cada um desses diplomas legais para permitir a participação e a votação à distância nas assembleias (em relação às companhias abertas, já havia norma idêntica desde 2011).

A regulamentação dessas novas regras, por sua vez, é de competência do DREI (limitada, cooperativa e SA Fechada) ou da CVM (SA aberta), que, em tempo recorde, já editaram as pertinentes instruções.

A assunto ganha grande relevância no momento, uma vez que, face à necessidade de distanciamento social, a realização de assembleias presenciais com um grande número de pessoas seria de todo inapropriada. O momento excepcional exige regras excepcionais de natureza transitória, mas se afigura importante ter o cuidado para que a regulação permanente não seja contaminada por esse quadro extraordinário, uma vez que se destina a vigorar por um longo período, quando o distanciamento social não mais será um impositivo de saúde pública.

A utilização de tecnologia para permitir a participação remota e dinâmica dos acionistas é extremamente salutar, como venho defendendo há vários anos, inclusive no proc. SEI CVM 19957.003630/2018-011, quando registrei, em 2018, que "já tínhamos tecnologia de sobra para isso" e um "arcabouço legal para dar toda a segurança à participação remota do acionista" (MP 2200-02/01).

Embora saudável, não se pode desconsiderar os riscos e os problemas inerentes à participação virtual (perda de wifi ou energia, dificuldades tecnológicas, falta de desenvoltura das gerações mais antigas nessa seara, dinâmica de participação diversa, etc.), o que impõe ponderação e cautela na adoção de mecanismos totalmente virtuais, sem empolgação exagerada com a atual fase da utilização massiva dos novos meios de comunicação. Como diz o ditado: "nem tanto ao mar, nem tanto à terra".

Feita essa ressalva, cumpre observar que muitas questões jurídicas relevantes emergem das novas regras sobre assembleia com participação remota. Pretende-se, no presente artigo, analisar objetivamente três dessas questões: a) a MP 931 previu um direito (opção) de o acionista participar remotamente?; b) como as regras diferentes de cada tipo societário impactam a assembleia com participação virtual?; e c) como deve ser endereçada a questão da identificação do sócio que participa remotamente?

Os novos dispositivos legais do CC (art. 1080-A) e da LSA (art. 121, § 1ª) preveem que "os sócios/acionistas poderão participar e votar a distância nas assembleias, nos termos do disposto na regulamentação". A lei não previu que a sociedade ou a administração poderia proporcionar a participação a distância (opção adotada, por exemplo, no art. 8º da Diretiva da Comunidade Europeia 2007/36/CE), mas sim que o os acionistas poderão participar e votar à distância, de forma que me parece ter sido, no nosso caso, conferido ao sócio um direito subjetivo (opção) de participação e votação à distância.

Desta forma, caberia à regulação do DREI apenas definir os requisitos e as formas para o exercício desse direito já previsto na lei. No caso da regulação da CVM a situação é um pouco diversa, uma vez que o novo § 2ª-A do art. 124 da LSA previu que a norma regulatória poderia excepcionar as regras legais (realização na sede) e, inclusive, permitir a assembleia virtual.

Assim, já ingressando na segunda questão, pode-se dizer que, na sociedade limitada, o art. 1072 do CC/02 conferiu ampla liberdade de o contrato social definir o tipo de assembleia a ser adotado, de modo que as assembleias e reuniões poderiam ser presenciais, híbridas ou virtuais, conforme previsto no contrato social.

As regras legais para da SA fechada são mais restritas, de modo que, ressalvadas situações excepcionais ("força maior"), a assembleia deve ser realizada na sede da companhia, conforme determina o art. 124, §2, da LSA. Assim, na SA fechada, as assembleias devem ser, em regra, de natureza hibrida, com o que se concilia a regra da realização na sede com o direito de participação remota.

Na SA aberta, por sua vez, a regulação da CVM terá ampla liberdade para excepcionar as regras legais e inclusive prever a possibilidade de realização de assembleia totalmente virtual (art. 124, §2A, da LSA). Em qualquer caso, contudo, deverá ser preservada a opção prevista em lei de o acionista participar e votar à distância (art. 121, § 1ª, da LSA), do que se conclui que as assembleias, nesse universo societário, deverão ser híbridas ou virtuais.

As novas regras inseridas no ordenamento brasileiro, portanto, quebraram paradigmas e conferiram aos sócios o direito de participação e votação à distância. Desta forma, caso algum sócio ou acionista manifeste o interesse de participar e votar à distância (conforme prazos e procedimentos previstos na regulamentação e nos estatutos/contratos), a sociedade não mais terá a opção de realizar a assembleia exclusivamente presencial.

Anote-se ainda que a MP 931 previu o direito de "participação" e "votação", razão pela qual a mera oportunidade de enviar boletim de voto à distância (que inclui apenas votação) não cumpriria integralmente a determinação legal.

Quanto à identificação dos sócios, parece-me acertada a opção regulatória de permitir a utilização dos mais diversos sistemas tecnológicos para viabilizar essa identificação, com o que não se inibirá o desenvolvimento de mecanismos adequados e pouco custosos para essas funções. Além disso, os mecanismos de identificação devem ser proporcionais à complexidade da situação, de modo que realidades simples e pessoais (dois ou poucos sócios) demandariam apenas controles básicos e visuais.

No entanto, em relação às companhias abertas, a possibilidade de utilização da assinatura digital certificada pelo sistema ICP-Brasil deveria ser concomitantemente estimulada. Seria de todo conveniente que, respeitado um período necessário de assimilação, os sistemas de votação também permitissem o login com token de assinatura digital, que, além de dar maior segurança sob o aspecto jurídico (MP 2200-2/01 confere à assinatura digital valor jurídico equivalente à assinatura grafotécnica), permitiriam a padronização e a simplificação que seria de todo conveniente para os investidores de mercado que possuíssem um portifólio variado de ativos, tanto que, com um mesmo token, poderiam participar de todas as assembleias, sem necessidade de um cadastro diferente em cada sistema das várias companhia das quais participasse.

Por fim, ressalto que a tendência brasileira de utilizar a experiência norte-americana2 como parâmetro deve ser adotada com cautela, uma vez que, na common law, aloca-se maior parcela de poder na administração (board of directors), enquanto que, nos regimes de origem continental (como o nosso), a assembleia de acionistas detém gama maior de competências quando comparada com as norte-americanas, o que torna a questão um pouco mais complexa na nossa realidade.

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1 Clique aqui, itens 32 a 39 do voto.

2 Ainda assim, importante ter o conhecimento de que, conforme informa o escritório K&L Gates em recente levantamento sobre as assembleias nos EUA (07.04.20), 42 estados admitem assembleias híbridas, 30 permitem as totalmente virtuais e apenas 10 restringem apenas aos encontros presenciais. No ano de 2020, em virtude da pandemia de covid-19, as regras vêm sendo flexibilizadas. Inteiro teor do artigo clicando aqui

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*Gustavo Tavares Borba é sócio do escritório Tavares Borba Advogados, Ex-Diretor da CVM e Professor da PUC/RJ.

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