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Da manifestação da vontade no meio eletrônico

A manifestação da vontade no meio eletrônico, de acordo com a legislação brasileira, está fundamentada na medida provisória 2.200-2/01.

quarta-feira, 13 de maio de 2020

Atualizado às 10:31

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A manifestação de vontade é elemento essencial para a formação do contrato, pois, além de condição de validade, constitui elemento do próprio conceito, e da própria existência do negócio jurídico.

No meio eletrônico, a manifestação da vontade pode ocorrer de diversas formas, por escrito, por meio de acionamento de botões, por intermédio de "Click ok" mediante a aposição de assinatura eletrônico biométrica, assinatura digital, entre outros.

Carvalho afirma que:

O Direito brasileiro não possui qualquer preceito que proíba a declaração da vontade transmitida por meios digitais. Não havendo, portanto, uma norma proibitiva, as vontades das partes podem ser produzidas e/ou eletronicamente. A questão da declaração de vontade automatizada encontra no Direito brasileiro a mesma resposta oferecida pelo Direito alemão: mesmo a declaração de vontade produzida por um computador tem a sua origem em um comando humano, sendo, portanto, perfeitamente válida.

(Fundamentos dos Negócios e Contratos Digitais, Editora Revista dos Tribunais, Edição 2019, de Patrícia Peck Pinheiro, Sandra Tomazi Weber e Antonio Alves de Oliveira Neto, pág. 34).

(CARVALHO, Ana Paula Gambogi. Contrato via Internet: segundo os ordenamentos jurídicos alemães e brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. 63)".

Conforme podemos depreender da leitura dos textos acima, a manifestação da vontade no nosso ordenamento jurídico é livre. Com efeito, a manifestação da vontade no meio eletrônico, de acordo com a legislação brasileira, está fundamentada na medida provisória 2.200-2/01, §2º, do art. 10, que assim determina:

Art. 10. Consideram-se documentos públicos ou particulares, para todos os fins legais, os documentos eletrônicos de que trata esta Medida Provisória.

..... omissis....

§2º - O disposto nesta Medida Provisória não obsta a utilização de outro meio de comprovação de autoria e integridade de documentos em forma eletrônica, inclusive os que utilizem certificados não emitidos pela ICP- Brasil, desde que admitido pelas partes como válido ou aceito pela pessoa a quem for oposto o documento (negrito acrescentado).

De acordo com a supracitada medida provisória, ainda em vigor, pelo fato de ter sido editada antes da emenda 32, fica muito claro que o documento eletrônico poderá ser assinado por meio do certificado digital ou por outro meio de comprovação de autoria e integridade do documento.

No decorrer desses 19 anos, desde a edição da aludida medida provisória, a tecnologia evoluiu muito. A velocidade dessas inovações tecnológicas é tão grande que torna difícil para um ser humano acompanhá-la, gerando muita ansiedade e medo.

Podemos constatar no decorrer desse tempo todo que o certificado digital não atingiu a população propriamente dita. As instituições financeiras, apesar de se utilizarem do meio eletrônico largamente, nunca se valeram de certificados digitais. Basicamente, somente as pessoas obrigadas por lei dispõem desse dispositivo.

A princípio, o certificado digital foi criado pela Receita Federal para atribuir responsabilidade àquele contribuinte que encaminhou a sua declaração de renda pela internet. Pois, à época, logo que foi permitida a entrega da declaração de renda via internet, muitos contribuintes fizeram suas declarações pelo meio eletrônico.

Como podemos verificar, a Receita Federal não quer saber se você entregou o seu certificado ao seu contador. Isso não é relevante. O importante para aquele órgão é atribuir responsabilidade ao contribuinte.

Além da Receita Federal, outras instituições se utilizaram do certificado digital, como nas relações entre advogados e o Poder Judiciário, as dos contadores com a Junta Comercial, as de serventias extrajudiciais e as respectivas corregedorias, entre outras.

Em todas as situações acima previstas, existe uma relação de pré-confiança entre as partes. Como na Receita Federal, o importante, nesses casos, é atribuir responsabilidade, pouco importando se realmente foi você que manifestou a sua vontade.

Situação diversa ocorre em uma venda de imóvel ou em uma procuração para venda de imóvel ou para levantamento de valores junto às instituições financeiras. Para o Tabelião, não basta que seja atribuída responsabilidade. Impende a esse profissional saber se realmente a parte que está firmando a venda de determinado imóvel ou outorgando poderes é aquela que se nos apresenta.

Portanto, resta claro, pela leitura da supracitada medida provisória, que a parte poderá assinar de duas formas: com certificado digital ou outro meio que garanta a autoria e integridade do documento.

Esse dispositivo legal foi repetido no provimento CNJ 95, de 1º de abril de 2020, que trata do documento eletrônico, no período decorrente da covid-19, no § 5º, do art. 1º, fazendo alusão, inclusive, ao §2º, do art. 10, da medida provisória 2.200-2/01.

Por seu turno, a corregedoria do Estado do Rio de Janeiro, igualmente, adotou o mesmo entendimento, por meio do provimento CGJ/RJ 31/20, que repetiu os mandamentos acima mencionados, em seu Parágrafo único, do art. 5º, possibilitando o uso de outros meios que comprovem a autoria e a integridade do arquivo, que não seja o certificado digital.

V. Das assinaturas eletrônica, digital e digitalizada

Existem diversas formas de se assinar um documento eletronicamente.

a) Assinatura eletrônica

Assinar um documento eletronicamente significa executar função tecnológica que lhe confira marca específica e torne impossível de ser dissociada sem alterar seu conteúdo - consistente não apenas da mensagem que é exibida na tela, mas também em bytes em linguagem hexadecimal.

(Fundamentos dos Negócios e Contratos Digitais, Editora Revista dos Tribunais, Edição 2019, de Patrícia Peck Pinheiro, Sandra Tomazi Weber e Antonio Alves de Oliveira Neto, pág. 42).

Em síntese, podemos assinar eletronicamente pela simples combinação de login e senha, biometria facial, token, assinador eletrônico, entre outros.

b) Assinatura digital

A assinatura digital é aquela que se utiliza dos certificados digitais. Eles são formados por um par de chaves distintos, chaves pública e privada, e regulados pela Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira (ICP-Brasil).

c) Assinatura digitalizada

A assinatura digitalizada consiste em um arquivo de imagem. Esse tipo de assinatura não é reconhecida pelos nossos tribunais, à medida que não se enquadra nos requisitos de segurança, além de não confirmar a autoria e autenticidade de determinado documento, haja vista que ela poderá ser reproduzida diversas vezes sem que possamos identificar essa reprodução.

Das fragilidades e do alto custo do certificado digital

A estrutura do ICP-Brasil tem uma forma piramidal. No ápice dela está o Instituto Nacional de Tecnologia da Informação - ITI, como Autoridade Certificadora Raiz, abaixo temos as Autoridades Certificadoras e, por fim, as Autoridades de Registro. Os Tabelionatos estão na base dessa pirâmide, como Autoridade de Registro, bem como milhares de outras empresas privadas.

Nesse artigo, vamos nos limitar a descrever a função da Autoridade de Registro, onde os Tabelionatos estão inseridos. A função da Autoridade de Registro é, em síntese, validar o certificado digital, adquirido pela parte no site de alguma Autoridade Certificadora.

Nossa função dentro dessa estrutura é conferir a identidade da parte, seja pessoa natural ou jurídica (verificar os poderes), e "dar vida" ao certificado. Ou seja, fazer o que fazemos há milênios. E quais seriam os pontos negativos do uso do certificado digital sob a perspectiva do direito notarial?

a. Primeiramente, o alto custo que a aquisição de um certificado digital representa para um cidadão. O certificado digital mais simples apresenta um preço médio de R$ 216,19. Imaginemos o custo para se lavrar uma escritura declaratória de união estável. No Estado do Rio de Janeiro, essa escritura custa R$ 233,59. Se eu obrigar as partes a assinarem com o certificado digital, teríamos que contabilizar a compra de dois certificados, totalizando o valor de R$ 432,38 (muito superior ao próprio ato notarial praticado). Isso oneraria demasiadamente e de forma desnecessária o cidadão brasileiro;

b. Novas tecnologias já são uma realidade, como a biometria facial, digital, o assinador eletrônico, token, senha, foto, v.g., o certificado digital se tornou uma excrescência, pois há diversas outras maneiras de assinar um documento eletronicamente, de forma mais segura e menos dispendiosa;

c. Como já dito anteriormente, não só os Tabelionatos são validadores do certificado digital. Diversas empresas privadas podem validá-lo. Na qualidade de Tabeliã, como delegarei a minha fé pública a um terceiro desconhecido? Haja vista que, nesse caso, a identificação da parte foi realizada por um terceiro, que não detém a fé pública tampouco está sujeito à fiscalização do Poder Judiciário. Se o certificado for falso, quem responderá pelo ato notarial?

d. Imaginemos uma situação específica. As partes estão presentes no Tabelionato, não se trata de contrato à distância, só que não existe mais o livro de papel. Eu não poderei identificar as partes, e elas terão que assinar na minha frente com um certificado digital validado por um terceiro? Não faz sentido. Como terei certeza de que aquele certificado digital pertence mesmo àquela pessoa? Agora, imaginemos a lavratura de um testamento público, que, de acordo com a nossa lei substantiva, art. 1.864, exige a leitura do ato na presença do testador e das duas testemunhas (nos demais atos notariais, as partes podem declarar que o documento fora lido e compreendido por elas, vide inciso VI, do art. 215, Código Civil). Se fosse exigida a assinatura com certificado digital, as partes dispenderiam no mínimo R$ 648,57, enquanto o ato notarial custa, na tabela de emolumentos do Rio de Janeiro, R$ 630,00, ou seja, a aquisição dos certificados digitais tornar-se-ia mais cara que o próprio ato;

e. Outro ponto a ser abordado é o da insegurança jurídica que o certificado digital representa para o mundo jurídico notarial. Normalmente, ele tem um prazo de validade bem extenso, o que poderá gerar algumas situações indesejáveis. Por exemplo: a pessoa foi acometida por uma doença, que lhe retirou a plena capacidade, e o cônjuge dessa pessoa necessitada de curatela, passa a ter acesso à senha do certificado digital daquela pessoa vulnerável e a praticar atos da vida civil que colidam com os seus interesses. Agora há pouco, no meio da discussão política, entre o ex-ministro Sergio Moro e o presidente Bolsonaro, Moro afirma não ter assinado o ato de exoneração do ex-superintendente da Polícia Federal. Pelo que tudo indica, o documento inquinado de ausência da manifestação de vontade pelo ex-ministro Moro foi assinado com um certificado digital. Senão vejamos: "Moro contesta assinatura digital e abre suspeita de falsificação". Além disso, atualmente, a emissão e validação poderá ser realizada por videoconferência, vide instrução normativa ITI 2, de 02.03.20 e a medida provisória 951, de 15.04.20, tornando todo esse procedimento mais frágil ainda.

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*Fernanda Leitão é tabeliã do 15º Ofício de Notas do Rio de Janeiro.

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