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A covid-19 e a responsabilidade civil do Estado

É possível que o Estado seja responsável civilmente por danos causados em razão da covid-19. Mas as hipóteses são estreitas e devem ser examinadas com atenção antes da propositura de ação.

quarta-feira, 20 de maio de 2020

Atualizado às 10:49

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Em tempos de crise, empresas fechadas culpam o Estado pela suspensão de suas atividades e pelos prejuízos causados. São cenários de incertezas sobre políticas de financiamento diante da certeza de que a interrupção ou queda de faturamento poderá levá-las ao fechamento e às inúmeras implicações daí decorrentes: dispensas de funcionários, dívidas com fornecedores, débitos tributários. Quando o empresário enfrenta essa situação, tende a naturalmente responsabilizar o Estado. Longe de debates ideológicos para ficar apenas com a constatação fática inevitável: o empresário viu seu negócio ruir e agora busca o culpado.

É possível dizer que o Estado é culpado? Sim, mas antes que os mais apressados afirmem que o "Estado não é um segurador universal", a verdade é que é preciso ter cautela na identificação de hipóteses específicas de responsabilização.

Para responder à pergunta, é preciso examinar a teoria da teoria da responsabilidade civil do Estado, ordinariamente amparada nos pressupostos "ato comissivo ou omissivo", "existência de dano" e "nexo de causalidade".

Primeiramente, chamo atenção ao tratamento da validade do ato emanado pelo Estado.

No âmbito federal, foram editadas leis, medidas provisórias e decretos destinados à proteção de valores constitucionais da saúde, segurança e dignidade humana e que, em alguma medida, precisaram ser submetidos a juízos de ponderação em relação a outros, examinados sobre perspectiva mais "imediata", tais como livre iniciativa, busca do pleno emprego e favorecimento de empresas de pequeno porte. Isso porque não se pretende aqui fazer um exame sobre consequências mediatas da manutenção de atividades e agravamento da pandemia.

No âmbito estadual e municipal, outros tantos atos e normativos foram editados dentro do mesmo espírito, especialmente após o posicionamento do STF que tentou oferecer um norte sobre competências concorrentes entre os Entes da Federação. A bem da verdade, não há ainda uma definição segura e definitiva sobre a extensão dessas competências, o que é compreensível, especialmente diante da anormalidade da situação enfrentada. Nessa situação, o Poder Público local pode não estar necessariamente alinhado com o Poder Público Federal, por diversos motivos: políticos, ideológicos, religiosos, inerentes às interpretações diversas sobre aspectos técnicos relacionados com a área da saúde, existindo embates sobre profissionais da área sobre quais as melhores alternativas para o combate da pandemia.

Nesse ínterim, tantas foram as situações em que normas e atos relacionados à covid-19 se tornaram objeto de controle de constitucionalidade (concentrado ou difuso). As incertezas jurídicas acompanham as incertezas científicas sobre a covid-19. Isso porque também o Poder Judiciário está buscando entender o seu papel em meio à crise, debatendo-se o ativismo judiciário ou a preservação da discricionariedade administrativa. Tudo, obviamente, examinado à luz das particularidades políticas do Brasil.

Nesse cenário de "tantas incertezas", ainda não é possível afirmar com segurança quais atos normativos ou executivos, emanados por qualquer dos Entes da Federação, serão considerados "constitucionais". Porém, uma vez superada a crise e fixado um standard jurisprudencial (espera-se que antes do esgotamento do prazo prescricional da pretensão ressarcitória), atos executivos fundados em normas consideradas materialmente inconstitucionais por decisão com eficácia ex tunc poderão caracterizar a "inconstitucionalidade" e justificar pedidos indenizatórios movidos contra entes da Federação. 

Por sua vez, nada impede que o particular pretenda acelerar a análise e proponha ação visando à responsabilização do Ente Público, contendo em si um pedido de declaração incidental de inconstitucionalidade. Essa decisão afeta imediatamente as partes da ação individual proposta e ainda tem a possibilidade de projeção erga omnes em razão da tão debatida e questionada disposição do art. 52, X, da CF. Contudo, demandas individuais, porém, podem atribuir ao sujeito o peso da "antipatia in re ipsa" desse tipo de pretensão e precisaram ser tratadas com extrema cautela quando deduzidas, sempre após uma avaliação de risco bastante cautelosa e atenta ao estado da arte da jurisprudência sobre o caso. 

Ainda restariam dois outros pontos: o nexo de causalidade e o dano.

Caberá ao autor do pedido de indenização demonstrar o nexo de causalidade deriva concretamente da providência executiva derivada de norma inconstitucional. A linha é bastante semelhante à ideia do tão celebrado parecer da AGU sobre reequilíbrio econômico financeiro e sobre a possibilidade de a pandemia ser classificada como evento inerente à teoria da imprevisão. Porém, para além da avaliação da matriz contratual de risco (aqui não determinante), determina que o impacto seja significativo e que o dano (leia-se problema financeiro) tenha sido claramente decorrente dos impactos do comando derivado de norma inconstitucional, visto que não se pretende impor ao Estado o ônus de salvar empresas em situação de dificuldade antecedente à crise. Por fim, há que se comprovar o dano. Porém, seria mais do mesmo debater danos emergentes e lucros cessantes em ação de responsabilidade.

Logo, é possível que o Estado seja responsável civilmente por danos causados em razão da covid-19. Mas as hipóteses são estreitas e devem ser examinadas com atenção antes da propositura de ação que sujeite o autor aos riscos de sucumbência conforme os percentuais do art. 85 do CPC. Percentuais, ou fixação por "equidade"? Uma discussão sobre interpretações literais, incentivos e recalques freudianos que fica para uma outra oportunidade.

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t*Bruno Burini é sócio e advogado de do escritório Trench Rossi Watanabe.

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