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Caso TikTok e Procon: Como a vontade de aplicar a LGPD pode invalidá-la

Gabriel Nantes Gimenez

O Procon-SP notificou aquela rede social para exigir uma série de esclarecimentos sobre a forma com a qual lida com dados pessoais dos usuários.

quarta-feira, 27 de maio de 2020

Atualizado às 10:43

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Se o ditado diz para não irmos com muita sede ao pote, podemos concluir que a ânsia por beber água acaba podendo nos deixar com sede. Muito provavelmente, há uma expressão melhor que defina a recente atuação do Procon-SP em relação a uma das redes sociais mais famosas do momento, o TikTok, febre entre os mais jovens, que se empolgam criando vídeos de humor em plataforma semelhante ao Instagram.

O Procon-SP notificou aquela rede social para exigir uma série de esclarecimentos sobre a forma com a qual lida com dados pessoais dos usuários. A justificativa é exigir o cumprimento da Lei Geral de Proteção de Dados - LGPD, surgida como promessa de colocar o Brasil no rol de países com legislação específica e clara sobre privacidade e proteção de dados. As exigências feitas pelo Procon-SP seguiram a letra daquela lei, repetindo seus artigos para realizar uma série de questionamentos sobre:

  • Os critérios para disponibilização da plataforma para usuários;
  • O processo de obtenção do consentimento dos representantes legais dos menores de idade;
  • A forma de armazenamento e deleção de dados pessoais;
  • A transparência sobre quais tipos de dados são coletados;
  • A eventual coleta de dados sensíveis;
  • O compartilhamento de informações pessoais e sensíveis dos usuários com seus parceiros comerciais.

Em que pese o aparente fim nobre do Procon-SP, estranha-se timing com o qual resolve questionar a empresa sobre suas práticas. O estranhamento não decorre apenas do fato de que o próprio ordenamento jurídico já abarca direitos de crianças e adolescentes em uma série de normativos, como a Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do Adolescente, mas também pelo fato de antecipar um dos elementos mais básicos de uma lei: sua vigência.

Apesar de ter sido promulgada em 2018, a LGPD ainda não está vigente e, assim sendo, como poderia o Procon-SP exigir que o TikTok já estivesse cumprindo-a?

A data de entrada em vigor da LGPD transformou-se em uma teia de retalhos típica do processo legislativo do Brasil. Após sua promulgação, a lei teve sua entrada em vigor postergada para agosto de 2020, mas essa data periga ser novamente postergada em razão da pandemia da covid-19. Não se sabe, porém, para quando. Ainda assim, em todos os casos, os argumentos para postergação convergem: a impossibilidade de as empresas, enquanto agentes de tratamento de dados pessoais, adequarem-se à LGPD a tempo de sua entrada em vigor.

Em momento no qual se discute a necessidade de postergar os efeitos de uma lei em razão da possibilidade de se tornarem inócuos, tendo-se em vista que grande parte das empresas está focada na própria sobrevivência em cenário de pandemia, carece de argumentos a atitude do Procon-SP. A postura da autarquia demonstra um tratamento não equânime em relação ao TikTok, se comparado com aquele dados às milhares de empresas que também lidam com dados pessoais, assim como demonstra como o Procon-SP pode estar tentando assumir um papel que não seria seu.

A LGPD estabelece que sua aplicação cabe à autoridade nacional de proteção de dados - ANDP, a qual assumirá os papéis de intérprete dos artigos legais, de reguladora de suas eventuais novas regras e de enforcement de sanções. Uma de suas atribuições seria justamente a de questionar agentes de tratamento, como o TikTok, sobre quão adequada estaria a proteção de dados para garantir a privacidade de dados pessoais.

Bem verdade que, ainda não constituída, a ANDP é apenas uma ficção mental. Ainda assim, o Procon-SP extrapola seus objetivos ao tratar a LGPD como uma extensão da lei consumerista.

Apesar de um titular de dados pessoais - tal como a criança que utiliza o TikTok - potencialmente ser um consumidor, o intuito da LGPD não se restringe apenas a ao aspecto consumerista da relação titular-poder público, mas sim se liga aos direitos humanos e constitucionais relacionados à privacidade. O bem protegido não é apenas um produto ou um serviço, mas sim a própria dignidade humana.

Em verdade, o Código de Defesa do Consumidor - CDC foi revolucionário em seu surgimento, tratando dos problemas enfrentados pelos consumidores na realidade daquele momento. A LGPD, por sua vez, é reflexo das atuais questões impostas pelo progresso tecnológico, que trouxe riscos à privacidade da sociedade informacional. Enquanto filhos de seus tempos, CDC e LGPD não são concorrentes, mas sim complementares.

A LGPD tem o objetivo de permitir que agentes de tratamento possam dar continuidade às suas atividades de tratamento de dados, atualmente essenciais para consecução do objeto social de praticamente todas as empresas, a partir de diretrizes de como podem, elas mesmas, proteger dados e garantir privacidade, sem a intromissão desproporcional do poder público. Este dá liberdade para atuação, mas aplica sanções em caso de não cumprimento dessas diretrizes, evitando-se um dos grandes males atuais: a judicialização.

A dinâmica entre leis, autarquias e agências reguladoras não é criada de forma randômica; ao contrário, é estabelecida para otimizar a relação entre a aplicação de regras e a imposição de sanções. Ainda que a bagunça do processo legislativo brasileiro e a negligência de nosso executivo em regulamentar a LGPD tenham criado um vácuo para aplicação desta lei, não cabe ao Procon-SP atropelar parte da sistemática feita para garantir que cheguemos ao real intento das políticas públicas. A ânsia de querer preencher essas lacunas, mesmo que bem intencionada, demonstra que, sim, aquele que vai com muita sede ao pote pode afastá-lo não apenas de si, mas também de toda coletividade com sede.

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*Gabriel Nantes Gimenez é advogado líder da área de Privacidade e Proteção de Dados do escritório De Vivo, Castro, Cunha, Ricca e Whitaker Advogados, possui MBA e pós-graduação em Direito Empresarial. Graduação em Direito pela USP.

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