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O Direito Penal é racista!

A crença de que a prisão é algo natural e que ela serve para evitar crimes precisa ceder à ciência e à realidade dos fatos. A injustiça não tem que se perpetuar.

segunda-feira, 8 de junho de 2020

Atualizado em 9 de junho de 2020 09:45

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Em plena pandemia da covid-19, uma outra pandemia, que desde sempre  atinge o Brasil, assim como os Estados Unidos, a do racismo estrutural, não dá tréguas. E a resistência, que assim seja, também, não! No reboque dos levantes nos EUA, diante da histórica violência contra os negros, o Brasil protesta e esse protesto ganha força, a força de uma tempestade antifascista. Consequentemente, organizações e coletivos, que por anos lutam e estão na linha de frente do combate a essa extrema injustiça e ao extermínio de milhares de George Floyd brasileiros, ganham apelo popular e apoio da mídia tradicional.

Nessa sucessão de movimentos, voltando os olhos para o estopim estado-unidense, ao que parece o dono do estabelecimento onde o americano teria tentado comprar cigarro com nota falsa e por isso foi sufocado e assassinado por um joelho branco armado, declarou que não mais chamará a polícia para tratar de incidentes não violentos e sim buscará alternativas à força pública.

Vê-se aí uma ação que, se fosse adotada como política de Estado, ou seja, de restrição máxima do uso do Direito Penal, quiçá sua completa eliminação, poderia reduzir a violência, principalmente a violência contra os corpos negros, em última análise, poderia reduzir o racismo. 

O Direito Penal mínimo ou o abolicionismo não são inéditos. Pensadores do século 20 e contemporâneos já apresentam essas teses faz tempo. Cito aqui, entre tantos, um deles, Louk Hulsman, criminólogo holandês. Em sua incisiva obra "Penas perdidas: o sistema penal em questão", publicada na década de 1980, além de denunciar o Direito Penal como instrumento ultrapassado e estéril para a solução de conflitos sociais, que fomenta mais violência, estigmatização e manutenção do poder de poucos sobre muitos, Hulsman mostra alternativas e métodos mais democráticos e humanos para superar os problemas sociais, seja pela hoje chamada justiça restaurativa seja pelo uso de outros ramos do direito, como o civil e administrativo.

O que ressalto a esta altura é que se acabássemos com o direito penal, ou ao menos o colocássemos como última ratio, de uso mínimo, para casos graves de violência contra a pessoa, reduziríamos drasticamente o racismo que nos impregna interna e externamente como sociedade.

Sempre ouço das pessoas negras que o sistema de justiça criminal, num país como o Brasil, que praticou a escravidão por séculos, existe para as  empurrar e as manter na margem, longe da casa grande e do poder político. Não poderia concordar mais. 

Qualquer estudo ético da história da escravidão no Brasil, apontará que, com a abolição, o Direito Penal se apresentou como sucessor da rigorosa disciplina de castigos e sanções que operava nos engenhos. As prisões são prova disso. Pelos últimos levantamentos, mais de 60% da população carcerária é formada por pretos e pardos e menos de 40% por brancos - quase a totalidade, 99%, por pessoas pobres.  As estatísticas, por outro lado, apontam que o povo brasileiro em matéria de brancos e negros fica em cerca de 50% para cada grupo. 

Particularmente, já vivenciei fatos que confirmam essa seletividade penal. Para ficar num deles, lembro que anos atrás deparei com autos da prisão de um jovem pardo, que tentou furtar alimentos de um supermercado. Flagrado antes de consumar a subtração, ele iniciou uma fuga, mas foi detido pelos seguranças, que o enjaularam numa gaiola de botijões de gás que havia no local. O rapaz ficou ali, por mais de duas horas, exposto aos transeuntes, na espera da polícia e ninguém que se saiba se indignou com aquela cena, de violência acachapante. 

Diante do caso, baseado nos ditames constitucionais, tomei as decisões cabíveis e mandei apurar responsabilidades.

Seguindo pesquisadores como o citado Huslman, não é de hoje então que defendo alterações legislativas para que ilícitos sem violência como esses, de pequenos furtos, em estabelecimentos comerciais, sejam tratados por outros ramos do direito, que não o penal; que no lugar da polícia se chame a secretaria de bem-estar social, de habitação, de empregabilidade, de saúde e especialmente de educação. 

Vou além, que grandes lojistas, industriais e comerciantes, no lugar de clamarem pelo Direito Penal máximo, que em tese deveria atingir crimes contra a administração pública e não o faz, busquem na sua esfera de atuação criar núcleos de captação de recursos humanos entre jovens negros e carentes, para efeito de inclusão social e econômica, com efetiva distribuição de renda e riqueza.

A crença de que a prisão é algo natural e que ela serve para evitar crimes precisa ceder à ciência e à realidade dos fatos. A injustiça não tem que se perpetuar. O caminho é longo, mas o país, por seu povo, parece ter despertado. Chegou o momento de repensarmos tudo que fizemos até aqui e acabar de vez com o racismo, começando pelo Direito Penal.

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*João Marcos Buch é juiz da Execução Penal em SC e membro da AJD.

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