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Acordo de não persecução penal e crimes contra ordem tributária

As particularidades dos crimes contra a ordem tributária impõem desafios à utilização do ANPP.

sexta-feira, 12 de junho de 2020

Atualizado às 09:48

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Síntese

A aplicação do acordo de não persecução penal (ANPP) a casos de crimes contra a ordem tributária apresenta desafios práticos com que os operadores do direito começam a se deparar.

Trataremos de dois: a obrigação de reparação do dano ante as previsões legais de extinção da punibilidade do crime pelo pagamento do tributo e a necessidade de confissão formal e circunstanciada em contexto de múltiplos agentes e responsáveis, este último um desafio comum aos crimes empresariais e coletivos.

O objetivo deste artigo é descrever os desafios e propor soluções práticas para operacionalização do novo instituto no contexto dos crimes contra ordem tributária.

Estrutura do ANPP

O ANPP veio disciplinado pela lei 13.964/2019, que acrescentou ao Código de Processo Penal (CPP) o art. 28-A1. O novo instituto é mais uma medida despenalizadora do direito penal e conviverá ao lado da transação penal e da suspensão condicional do processo, previstas nos arts. 76 e 89 da lei 9.099/95, respectivamente.

O art. 28-A do CPP prevê que o Ministério Público, em vez de oferecer denúncia, poderá propor ao investigado acordo pelo qual ele se obrigará a confessar formal e circunstancialmente a prática da infração penal e a cumprir algumas condições de forma cumulada ou alternada.

As condições são: (i) reparação do dano ou restituição da res furtiva, exceto na impossibilidade de fazê-lo; (ii) renúncia dos instrumentos, produtos ou proveitos do crime, indicados pelo Ministério Público; (iii) prestação de serviço à comunidade por período correspondente a fração de ? ou ? da pena mínima; (iv) pagamento de prestação pecuniária a entidade de interesse público ou social; (v) outras condições, desde que proporcionais e compatíveis com o crime imputado.

O acordo não é cabível em casos de crimes: (i) cometidos com violência ou grave ameaça; (ii) ou com pena mínima igual ou superior a 4 anos; (iii) ou cometidos por investigado reincidente ou com indícios de prática habitual -reiterada ou profissional - de crimes; (iv) ou cujo potencial beneficiário já tiver sido celebrado ANPP nos últimos 5 anos; (v) ou cometidos no âmbito de violência doméstica ou familiar ou praticados contra mulher por razões de gênero; (vi) ou para crimes que comportem os benefícios da lei 9.099/95.

Reparação do dano

Uma das cláusulas do ANPP é obrigação de reparar o dano. No caso de crimes contra a ordem tributária, o dano seria a princípio o valor do tributo devido e não pago pelo contribuinte. Logo, este valor deveria ser apurado pelo Ministério Público e seu pagamento colocado como condição do ANPP.

Contudo, as leis 9.430/1996 e 10.684/2003 prevêem que o parcelamento do tributo antes do oferecimento de denúncia suspende a pretensão punitiva criminal2 e o pagamento a qualquer tempo extingue a punibilidade dos crimes listados nos caput de seus arts. 83 e 9º, respectivamente3.

Assim, haveria propósito em se celebrar o ANPP para crimes contra ordem tributária se a reparação do dano leva à extinção da punibilidade do crime? Pensamos que sim, por três razões.

1º) A reparação do dano não abrange o valor cobrado sob a rubrica de multa sancionatória:

As leis 9.430/1996 e 10.684/2003 condicionam os efeitos penais do parcelamento ou pagamento sobre "pagamento integral dos débitos oriundos de tributos, inclusive acessórios", enquanto o ANPP condiciona seus efeitos somente à "reparação do dano". A diferença é importante4.

O débito oriundo da infração fiscal normalmente é composto pelo tributo devido, acrescido de juros moratórios, e de multa, que pode chegar a 150% do valor do tributo. Portanto, ao se decompor o débito, notamos em seu interior o tributo e a multa.

O valor do tributo corresponde à obrigação pecuniária de natureza compulsória que o contribuinte deve pagar ao Estado caso ocorra um fato gerador do dever de pagar tributos. Assim, por exemplo, realizando o contribuinte uma operação de compra de imóvel, surge o dever de pagar ITBI calculado sobre o valor da operação.

O valor da multa, por sua vez, corresponde à penalidade aplicada pela autoridade fiscal ao contribuinte que pratica um ato ilícito. Na operação de compra e venda do imóvel, por exemplo, caso o contribuinte deixe de declarar o real valor da venda, para reduzir o montante de imposto a pagar, ele estará descumprindo o dever de transparência perante o Fisco. Nesta situação, além de ser cobrado o valor do tributo decorrente da operação em sua real expressão econômica, a autoridade ainda aplicará uma penalidade ao infrator.

O Código Tributário Nacional (CTN) deixa clara esta distinção ao apontar, em seu art. 3º, que o tributo é "toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito".

Além disso, ao tratar do lançamento, no art. 143, o CTN prevê que a autoridade administrativa  verificará a ocorrência do fato gerador da obrigação tributária, calculando o montante do tributo devido pelo sujeito passivo, e, sendo o caso, aplicará a penalidade cabível. Também este dispositivo demonstra que a aplicação de sanção e a cobrança do tributo são atividades relacionadas, mas que não se confundem.

Indo além, ao tratar da imposição da penalidade no art. 157, o CTN traz que ela (penalidade) "não ilide o pagamento integral do crédito tributário", o que mostra a natureza simplesmente punitiva da penalidade pecuniária.

Em suma, como afirma Schoueri, "[...] a obrigação tributária ('principal') é gênero que compreende, ao lado dos tributos, as penalidades pecuniárias (artigo 113, §1º, do Código Tributário Nacional)"5.

A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça demonstra constatar esta diferença. No REsp 1.630.109-RJ, a 6ª Turma ponderou que6:

De acordo com o artigo 3º do CTN, os tributos - por serem prestações pecuniárias compulsórias, não sancionatórias, instituídas ex lege - são inconfundíveis com as multas, porquanto estas têm natureza sancionatória. Quando o art. 113 do CTN estatui que a obrigação tributária principal tem por objeto o pagamento de tributo "ou penalidade pecuniária", tal disposição significa apenas que os valores devidos em razão de eventuais sanções decorrentes do inadimplemento da prestação tributária devem ser exigidos conjuntamente com a prestação tributária.

Voltando ao nosso problema, o pagamento ou parcelamento a que aludem as leis 9.430/1996 e 10.684/2003 se referem à totalidade do débito fiscal, pois fazem menção aos seus acessórios, dentre eles a multa, que é cobrada pelo mesmo título executivo, por força do art. 113 do CTN7, apesar de constar em rubrica diversa.

O ANPP, contudo, trata exclusivamente da reparação do dano. Os danos sofridos pelos cofres públicos correspondem ao valor que deixou de ser recolhido, acrescido dos juros de mora. Ele não se confunde com o valor cobrado a título de sanção (penalidade).

Portanto, deve ser oportunizado ao contribuinte, para aplicação do ANPP ao processo criminal, que pague o valor do tributo devido, acrescido dos juros, descontando-se o valor da multa.

Para tanto, o Juízo deve oficiar o representante da Fazenda Pública para esclarecer o valor consolidado do dano, que deverá ser homologado e posteriormente depositado em Juízo pelo celebrante da ANPP.

O valor da multa, muitas vezes maior que o do próprio tributo, continuaria a ser executado na esfera cível contra o contribuinte. Porém, havendo pagamento do tributo e dos juros moratórios, teríamos o cumprimento da cláusula de reparação do dano do ANPP.

2º) Não há dano a reparar em caso de atuação por mero descumprimento de obrigação acessória:

Outra decorrência lógica da distinção entre tributo e multa é que nas situações em que a autuação tiver aplicado apenas multa por mero descumprimento de obrigação acessória, não havendo cobrança de tributos, não haverá prejuízo ao erário.

Teremos, na realidade, somente uma multa (penalidade) aplicada e não paga, que não se confunde com dano ao erário. Nestes casos, não se poderia pretender exigir do investigado o recolhimento do valor da multa a título de reparação de dano, pois o erário não sofreu prejuízo com sua conduta.

Logo, se a investigação tomar por base auto de infração que aplica exclusivamente multa, deve ser afastada a cláusula de reparação do dano no ANPP.

3º) A condição de reparação do dano pode ser afastada no caso concreto:

Por fim, o ANPP ainda seria aplicável caso o contribuinte não reúna recursos para reparar o dano. Com efeito, a cláusula de reparação do dano não é obrigatória, tanto assim que é dispensável caso o investigado não possa cumprí-la. O caput do art. 28-A, também nesse sentido, prevê que as diversas condições podem ser estabelecidas de forma alternada, não havendo obrigatoriedade de sua cumulação.

Nessa situação, nos parece razoável que caiba ao investigado arguir a impossibilidade de arcar com o valor da reparação do dano, fazendo comprovação da insuficiência de recursos nos autos.

Não são raras as investigações de crimes contra ordem tributária sobre empresas que passaram por stress ou esgotamento financeiro completo, que atingiu inclusive patrimônio de seus sócios e administradores.

A prova poderá ser realizada a partir de demonstrativos contábeis, listas de credores, alienação e oneração de patrimônio pessoal do sócio ou administrador, bloqueio judicial de bens, dentre outras provas da incapacidade concreta de reparar o dano.

Portanto, nessas situações, estaria justificada a dispensa da obrigação de reparar o dano como condição para celebração do ANPP.

Confissão

Outra condição para celebração do ANPP é a confissão formal e circunstanciada da prática da infração penal, que deve trazer desafios não só aos crimes contra ordem tributária, mas a todos os crimes coletivos e cometidos no contexto de empresa.

Com efeito, ao se encerrar a investigação, a Autoridade Policial deveria apontar ao Ministério Público a materialidade do crime e indícios de autoria em relação a determinado(s) sujeito(s).

Contudo, firmou-se na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça - amplamente reverberada na prática forense - de que a denúncia em crimes societários dispensaria maior detalhamento da conduta dos acusados, em razão da dificuldade de apuração de crimes em estruturas empresariais, em especial nos grandes grupos econômicos8.

Assim, na prática, muitas vezes o órgão de acusação oferece denúncias contra os diretores e sócios da empresa com base no fato de constarem como responsáveis legais no contrato social, sendo que a autoria acaba sendo objeto da instrução durante o curso do processo, situação ilegal no nosso entender.

Porém, como o ANPP antecede eventual instrução do processo, poderemos ter denúncias oferecidas em face de responsáveis legais sem detalhamento da participação de cada um deles, que seriam convocados para audiência de proposta do acordo.

É perfeitamente possível, no caso concreto, que a conduta na realidade tenha sido praticada por apenas um dos diretores acusados, o responsável pela área financeira ou jurídica; ou que ela tenha sido praticada em concurso com o contador da empresa não arrolado na denúncia; ou ainda que ela tenha sido realizada em concurso com gerentes ou outros funcionários subalternos, também não arrolados; ou, por fim, por ordem de um sócio ou terceiro relacionado com a empresa.

A confissão de um crime, diante desta situação, é desafiadora.

Primeiro porque é um ato simbólico extremamente grave ao acusado. Caso a denúncia não aponte elementos que indiquem que o investigado de fato praticou ou determinou a conduta, ele não estará inclinado a confessar.

Além disso, como a confissão deve ser formal e circunstanciada, existe o risco de ela atingir pessoas não vinculadas ao processo e de relacionamento do investigado. Nessa situação, o investigado não se inclinará a prejudicar seus parceiros, sócios, empregados etc.

Portanto, para aumentar as chances de adesão ao ANPP, é imperioso que a denúncia seja o mais minuciosa possível e endereçada em face dos reais responsáveis pela tomada de decisões financeiras e tributárias da empresa.

Para tanto, no contexto dos crimes de sonegação fiscal, as autoridades possuem diversos mecanismos ao alcance para realizar esta tarefa. Para mencionar alguns: requisição de depoimento do contador da empresa e de funcionários do setor administrativo; questionamento ao agente fiscal a respeito das particularidades do funcionamento do ente autuado durante a fiscalização, e não apenas sobre o motivo fático ou jurídico da autuação; requisição de job description dos diretores; realização de acareações; obtenção de dados dos responsáveis por assinatura de balanços, intimações fiscais etc. 

Caso o órgão de acusação não faça o trabalho de separar o "joio do trigo", ou seja, de analisar e acusar de forma cirúrgica os responsáveis internos da empresa pela conduta, as chances de êxito do ANPP devem ser menores na prática.

Conclusão

As particularidades dos crimes contra a ordem tributária impõem desafios à utilização do ANPP. Vimos, sem pretensão de esgotá-los, que teremos desafios no que se refere à reparação do dano e à confissão. Contudo, os desafios podem e devem ser endereçados pelos operadores do direito para que o instituto seja prestigiado também nos procedimentos relacionados a sonegação fiscal.

__________

1 Vale mencionar que anteriormente o ANPP era previsto na Resolução n.º 181 do CNMP, que estava sujeita a arguições de inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal.

2 Lei 9.430/1996: Art. 83 [...] § 2o  É suspensa a pretensão punitiva do Estado referente aos crimes previstos no caput, durante o período em que a pessoa física ou a pessoa jurídica relacionada com o agente dos aludidos crimes estiver incluída no parcelamento, desde que o pedido de parcelamento tenha sido formalizado antes do recebimento da denúncia criminal. 

3 Lei 10.684/2003: Art. 9º [...] § 2o Extingue-se a punibilidade dos crimes referidos neste artigo quando a pessoa jurídica relacionada com o agente efetuar o pagamento integral dos débitos oriundos de tributos e contribuições sociais, inclusive acessórios. Sobre este dispositivo, vale mencionar que o Supremo Tribunal Federal entendeu que as posteriores alterações da Lei 9.430/1996 não afetam o marco temporal para decretação da extinção da punibilidade pelo pagamento. Cf. HC 116.828/SP, rel. Min. Dias Toffoli, DJE 22.8.2013.

4 O crédito por notar essa diferença é da Profa. Heloisa Estellita, da Faculdade de Direito da Fundação Getúlio Vargas, em debate online promovido em 19.5.2020 pelo Portal Conjur, intitulado "Os Crimes Tributários em Tempos de Calamidade e Crise Econômica".

5 Luís Eduardo Schoueri, Direito Tributário, 5ª Edição, São Paulo, Saraiva, pág. 812.

6 Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, Dje 22.2.2017.

7 Vide os §§ 1º e 3º: §1º § 1º A obrigação principal surge com a ocorrência do fato gerador, tem por objeto o pagamento de tributo ou penalidade pecuniária e extingue-se juntamente com o crédito dela decorrente; § 3º A obrigação acessória, pelo simples fato da sua inobservância, converte-se em obrigação principal relativamente à penalidade pecuniária.

8 Cf., por todos, o HC 394.225/ES, 5ª Turma, Rel. Min. Jorge Mussi, DJe 24.8.2017, onde se afirmou que "[...] embora a vestibular acusatória não possa ser de todo genérica, é válida quando, apesar de não descrever minuciosamente as atuações individuais dos acusados, demonstra um liame entre o seu agir e a suposta prática delituosa, estabelecendo a plausibilidade da imputação e possibilitando o exercício da ampla defesa".

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*André Ferreira é advogado do escritório Lacaz Martins, Pereira Neto, Gurevich & Schoueri Advogados.

 

 

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