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STJ, prestação de contas e alimentos naturais

Não se trata de regular apenas relações negociais de natureza empresarial ou financeira. O dever de prestação de contas é ressaltado, pela ordem positiva, a uma categoria muito especial, de modo a legitimar restrições das mais graves no âmbito civil.

segunda-feira, 15 de junho de 2020

Atualizado às 14:29

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Na evolução propiciada pelos deveres anexos da boa-fé objetiva (CC, art. 422), a transparência é verdadeiro postulado para a eticidade nas relações civis. É neste contexto que, ao conferir o poder de gerir patrimônio alheio, o direito positivo muito bem ressalta a importância de prestar contas. Assim ocorre com os mandatários (CC, art. 668), administradores das sociedades (CC, art. 1.020), síndicos de condomínio (CC, art. 1.348, VIII), administradores judiciais (lei 11.01/05, art. 22, "r"), tutores e curadores (CC, art. 1.755 e 1781) e indivíduos que participam da tomada de decisão apoiada (CC, art. 1.783-A, § 11). Entre muitos outros exemplos.1

Não se trata de regular apenas relações negociais de natureza empresarial ou financeira. O dever de prestação de contas é ressaltado, pela ordem positiva, a uma categoria muito especial, de modo a legitimar restrições das mais graves no âmbito civil. Exemplo: o tutor ou curador, mesmo depois de cessada a tutela ou curatela, permanece impedido de casar com o tutelado ou curatelado, enquanto não estiverem "saldas as respectivas contas", em outras palavras, enquanto não tiver prestado contas e demonstrado a inexistência de saldo devedor (CC, art. 1.523, IV).

Diante de todo esse quadro, não haveria de se questionar que determinado indivíduo que administrasse quantias de dinheiro pagas em favor de incapaz, a título de alimentos, pudesse ter total e absoluta isenção do dever de prestar contas. É, sem dúvidas, uma hipótese de administração de patrimônio alheio e, mais gravemente ainda, que deve se estabelecer em favor e nos interesses do alimentando. Como, então, saber se o dinheiro foi de fato empregado em favor do alimentando?

A prestação de contas, nas relações alimentícias2, não se prestaria ao interesse daquele indivíduo obrigado a pagar (para saber se teria ou não direito de repetição), mas, especialmente, no interesse do incapaz. De garantir a transparência na gestão desses recursos e de viabilizar a identificação de desvios e abusos, com todas as consequências pessoais daí advindas. Todavia, a jurisprudência se consolidou pela inexistência de tal obrigação.

A ratio decidendi presente em diversos julgados pode ser resumida a partir da seguinte ideia: nas relações alimentícias seria impossível apurar saldo em favor do alimentante, tendo em vista sua irrepetibilidade, de modo que, por este motivo, não faria sentido pensar na existência da obrigação de prestar contas.

Os julgados se pautam na equivocada ideia de que a tutela jurisdicional pleiteada em demanda de prestação de contas (exigir contas) seria, simplesmente, de natureza condenatória, a ressarcir quantias. Ignorando que, antes, há necessariamente a pretensão de uma obrigação anterior: de simplesmente prestar contas (direito à informação). Vejamos recente julgado oriundo da 3ª turma do STJ:

"A ação de prestação de contas proposta pelo alimentante é via inadequada para fiscalização do uso de recursos transmitidos ao alimentando por não gerar crédito em seu favor e não representar utilidade jurídica. O alimentante não possui interesse processual em exigir contas da detentora da guarda do alimentando porque, uma vez cumprida a obrigação, a verba não mais compõe o seu patrimônio, remanescendo a possibilidade de discussão do montante em juízo com ampla instrução probatória." (REsp 1.637.378/DF, rel. min. Ricardo Villas Bôas Cueva, 3ª turma, julgado em 19.02.19, DJe 06.03.19).

A Corte nesse sentido entendia que a demanda de exigir contas não seria admissível exatamente pelo fato de o pedido de prestação de contas se confundir com o pedido de condenação ao pagamento de saldo negativo, o qual se mostraria incompatível com a natureza irrepetível dos alimentos. Tampouco tal pretensão haveria de ser admissível com base no art. 1.589 do Código Civil, o qual consagra o direito de fiscalização conferido especialmente aos pais. E isto porque tal norma não admitiria "ingerência na forma como os alimentos prestados são administrados pela genitora." (STJ, 3ª T., AgRg no REsp 1.378.928/PR, rel. ministro Sidnei Beneti, 3ª turma, DJe 06.09.13).

Tal entendimento parece, todavia, ter evoluído na Corte. Em 26 de maio de 2020, a mesma 3ª turma do Superior Tribunal de Justiça (REsp 1.814.639/RS) entendeu ser viável a prestação de contas para fiscalização de pensão alimentícia.

Não há dúvidas que a real extensão do precedente merece ainda ser avaliada, com a disponibilização integral do acórdão e votos. Mas o fato é que o STJ tratou de situação especial, de pensão paga por pai a filho portador de diversas necessidades especiais, e que a ação de prestação de contas não tinha como objetivo a apuração de saldo devedor, mas apenas de verificar se os valores pagos a título de alimentos estavam, de fato, sendo revertidos em favor do incapaz.3 Dois pontos aqui merecem destaque.

Primeiro, nos alimentos devidos por genitor, há relação jurídica alimentícia entre genitor e alimentando. Todavia, não há relação entre genitor e administrador da coisa alheia (normalmente, outro genitor). Como então justificar a legitimidade para se exigir contas?

O fundamento, de fato, não está na relação alimentícia, i.e. obrigação de pagar alimentos. Diferentemente, está no direito de qualquer um dos genitores de obter informações relativas a "assuntos ou situações que direta ou indiretamente afetem a saúde física e psicológica e a educação de seus filhos", tal como assegurado pelo artigo 1.583, § 5º, do Código Civil. Trata-se de verdadeiro pressuposto para o efetivo exercício do dever constitucional de assistência, criação e educação dos filhos menores, pelos pais, mesmo que não guardiões, expressamente instituído pelo artigo 229 do texto constitucional na proteção de crianças e adolescentes.

Segundo, se a pretensão não se relaciona a pecúnia ou a saldo devedor, como compatibilizar tal pedido com o procedimento especial da ação de exigir contas (CPC, 550 e ss). Ora, tal procedimento tem uma segunda fase especialmente desenhada a obter a condenação ao pagamento de quantia em favor da parte credora, depois da apuração dos cálculos e prestação de contas (CPC, art. 552). Mais do que isso, possui técnicas desenvolvidas para impugnação de valores e apuração de uma quantia exata a título de saldo devedor (CPC, art. 551).

De fato, as técnicas diferenciadas e adaptações procedimentais, propiciadas especificamente por este procedimento, não têm razão de ser, senão pela apuração de saldo devedor. O que afigura inadequado o uso da "ação de exigir contas" se está a pretender, apenas, a satisfação de um direito de informação, conhecimento e transparência. Qual seria, então, a solução?

As demandas de exigir contas relativas ao pagamento de pensões alimentícias devem conter apenas a pretensão à informação, obrigação de prestar contas (ante a sua irrepetibilidade), e para tanto devem seguir o procedimento comum, diante da incompatibilidade das técnicas diferenciadas do procedimento especial.

Isso, todavia, não significa que as demandas formuladas perante o procedimento especial devem, necessariamente, serem extintas sem julgamento de mérito, devendo o juiz observar o dever de saneamento das irregularidades processuais, e oportunizar à parte a alteração da técnica, de especial para a comum (CPC, art. 321).

O novo entendimento do Superior Tribunal de Justiça representa significativa evolução e deve ser enxergado como uma proteção ao alimentando, conferindo-se uma via para que o genitor não guardião, ou mesmo o Ministério Público, fiscalizem se as quantias relativas aos alimentos estão sendo empregadas adequadamente. E mais relevantemente ainda: desencadeia uma mensagem social no sentido de que os gestores dos valores recebidos a título de alimentos devem focar os recursos nas finalidades para as quais foram destinadas, pois os desvios, agora, passam a poder serem examinados pelo Judiciário.

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1 Ainda que sem previsão legal, é pacífica a existência da obrigação de prestar contas daquele que, sozinho, administra bens em condomínio. (Cf. STJ, 4ª T., REsp 1.274.639/SP, rel. ministro Luis Felipe Salomão, DJe 23.10.17).

2 A hipótese tratada é apenas de alimentos naturais, não alimentos civis.

3 Disponível clicando aqui, acesso em 5 de junho de 2020.

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*Marcelo Pacheco Machado é doutor e mestre em Direito Processual pela Universidade de São Paulo. Graduado em Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo. Professor de cursos de pós-graduação. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual IBDP e do Centro Avançado de Estudos de Processo - CEAPRO.

*Alexandre Dalla Bernardina é procurador do Estado do Espírito Santo (ES). Professor titular de Direito das Famílias e da pós-graduação em Direito das Famílias na Faculdade de Direito de Vitória (FDV). Mestre em Direito Constitucional. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Civil.

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