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A execução penal em tempos de pandemia e o paradoxo da liberdade

O isolamento social: uma obrigação ou um direito?

terça-feira, 16 de junho de 2020

Atualizado às 14:16

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A crise nos revela contradições, é verdade. A palavra revelar tem a sua origem no latim revelatio, que significa destapar, desnudar, descobrir, o ato de mostrar. Em outras palavras: tirar o véu. Diante de uma crise, ou seja, de uma situação de anormalidade, que nos tira da zona de conforto na qual estamos acostumados a viver, aquilo que já existe - dentro de nós ou externamente - fica às claras, sem véu, sem máscaras.

É verdade também que o sistema prisional brasileiro - não é novidade - vive um caos estrutural, numa situação de absoluta desumanidade, com uma superlotação que conta com a terceira maior população carcerária mundial.

São mais de 770 mil pessoas confinadas em estruturas cuja superlotação alcança os 197%, sendo que 33,47% não têm sentença transitada em julgado, isto é, ainda não foram definitivamente condenados pelos supostos crimes a que respondem1. Ademais, são quase 10 mil presos com mais de 60 anos de idade, sendo que cerca de 1.600 têm mais de 70 anos2.

Também é verdade - e isso tem se revelado cada vez mais forte nesse período de crise - que há um déficit crônico de informações sobre as reais condições de saúde da população carcerária. Abram-se os olhos: 235.628 pessoas privadas de liberdade são portadores de doenças infectocontagiosas, tais como tuberculose, HIV, sífilis ou hepatite. Além, claro, das demais portadoras de outras doenças graves como câncer e doenças cardiovasculares3.

A verdade real é que apenas 37% dos estabelecimentos prisionais possuem módulo ou unidade de saúde aptos para garantia da atenção integral à saúde4.

Tais informações são cruciais, a priori, para que possamos entender - com olhos na verdade e não na hipocrisia - a real situação carcerária brasileira e a importância da recomendação 62/20, do Conselho Nacional de Justiça - CNJ, dirigida especialmente aos Tribunais e magistrados no que tange à adoção de medidas preventivas à propagação da infecção pelo novo coronavírus - covid-19 no âmbito dos sistemas de justiça penal.

A feliz recomendação 62/20, do CNJ, precipuamente preocupada com a "necessidade de estabelecer procedimentos e regras para fins de prevenção à infecção e à propagação do novo coronavírus particularmente em espaços de confinamento, de modo a reduzir os riscos epidemiológicos de transmissão do vírus e preservar a saúde de agentes públicos, pessoas privadas de liberdade e visitantes" e tomando em consideração as pessoas consideradas como "grupo de risco", recomenda, dentre outras coisas, a reavaliação das prisões provisórias, a máxima excepcionalidade de novas ordens de prisão preventiva, a concessão de saída antecipada dos regimes fechado e semiaberto, a concessão de prisão domiciliar em relação a todos as pessoas presas em cumprimento de pena em regime aberto e semiaberto e a colocação em prisão domiciliar de pessoa presa com diagnóstico suspeito ou confirmado de covid-19.

Trata-se, na verdade, de um "lembrete" para que seja cumprida a lei. É simples: é obrigação do Estado brasileiro assegurar o atendimento preventivo e curativo em saúde para qualquer pessoa que tenha sua liberdade privada, por qualquer crime pelo qual tenha sido condenada ou pelo qual está sendo processada. As pessoas presas cumprem pena privativa de sua liberdade e não pena de morte ou pena de agravamento de sua saúde.

Pois bem. Para além do "simples lembrete ao cumprimento da lei", as recomendações do CNJ são, antes de tudo, uma medida para salvar vidas, sendo uma questão primordialmente de saúde pública, o que influencia no sistema social como um todo, incluindo os presos e não presos.

É dizer: a luta pela manutenção da saúde das pessoas privadas de liberdade (que deveria ser uma preocupação permanente) é essencial à garantia da saúde coletiva, sendo certo - para os que querem ver - que um cenário de contaminação em grande escala nos sistemas prisionais produz (e produzirá ainda mais) impactos significativos para a saúde pública de toda a população, extrapolando os limites internos dos estabelecimentos.

Não se trata apenas de não achar justo ou correto que pessoas privadas de liberdade possam, por exemplo, cumprir suas penas em regime domiciliar. Mais do que isso, é não perceber que, com cerca de 100.000 funcionários das unidades prisionais e agentes penitenciários, que continuam trabalhando diariamente, além de todos os dados quantitativos já mencionados, o risco de a contaminação se agravar e aumentar o caos em todo o sistema público de saúde é extremamente alto e perigoso, afinal, queira ou não queira a população, eles também serão atendidos do mesmo modo por aqueles que têm como missão salvar indistintamente qualquer vida.

Quando o então ex-ministro da Justiça, o sr. Sérgio Moro, anuncia proposta de que presos doentes e idosos sejam abrigados em contêineres (isso mesmo: contêineres, ou estufas, como queiram), preferimos acreditar, para dizer o mínimo, que se trata do déficit de informação já mencionado, afinal trata-se de uma pessoa sem qualquer especialização ou conhecimento sobre o sistema prisional brasileiro, a exceção do seleto sistema prisional federal de Curitiba. E olhe lá.

Os magistrados (àqueles a quem primordialmente se dirige a recomendação 62/20, do CNJ) deveriam ter um papel crucial neste momento excepcional. Contudo, o que se tem visto, nos diversos estados da federação, é uma verdadeira inércia e indiferença à situação. E, quando provocados, têm proferido decisões contrárias à recomendação 62/20.

Vale a pena destacar decisão em sede de habeas corpus 2061058-72.2020.8.26.0000 (7ª Câmara de Direito Criminal do TJSP), que afirma que "dos cerca de 7.780.000.000 de habitantes do Planeta Terra, apenas 3 (três): ANDREW MORGAN, OLEG SKRIPOCKA e JESSICA MEIER, ocupantes da estação espacial internacional (...) por ora não estão sujeitos à contaminação pelo famigerado CORONAVIRUS", demonstrando uma sarcástica e infeliz imaturidade perante uma das mais sérias situações de saúde pública do Brasil e do mundo.

Outra interessante decisão é de um discípulo do presidente Jair Bolsonaro, o dr. Xisto Albarelli Rangel Neto, da 3ª Câmara de Direito Criminal do TJSP que, ao indeferir a revogação da prisão preventiva, afirma que "Chega a ser intrigante ver como a sociedade reage enfaticamente à disseminação de um vírus que supostamente não provoca na maioria dos jovens infectados mais do que os sintomas de um simples resfriado (...)" e que "(...) se de um lado a necessidade de refrear a disseminação da doença impõe razoavelmente a nós todos, cidadãos de bem, o confinamento domiciliar, por que não aceitar a cautelar segregação de alguns no cárcere para preservar a nossa juventude do aliciamento para a drogadição?".

Bom, infelizmente, o exemplo que vem da cúpula é de um Poder Judiciário que, na atual conjuntura, se volta em peso a resolver questões fruto da crise institucional que se aflora cada vez mais. Um Poder Judiciário que assumiu um protagonismo, mas apenas para questões políticas, deixando ao acaso questões humanitárias básicas.

Pois bem. Diante de tudo isso, e com olhos na verdade, é preciso então perguntar-se: o isolamento social, ao qual somos chamados a vivenciar hoje, é uma obrigação ou um direito?

Parece fácil responder ser uma obrigação, já que para boa parte da população brasileira (essa inclusive que tem acesso à informação) trata-se de uma medida que foi "imposta" pelos órgãos estatais de saúde como forma de prevenção e de diminuição do contágio do coronavírus e a qual todos deveriam obrigatoriamente respeitar.

Contudo, a partir de tudo o que se viu, como dizer que para as pessoas privadas de liberdade o isolamento social é uma obrigação? Trata-se de uma medida que sequer lhes é um direito do qual poderiam exercer ou usufruir.

Este texto, além de informativo, tem como principal objetivo esta reflexão: já paramos para pensar nos diversos setores da sociedade - incluindo as pessoas privadas de liberdade - que não possuem o direito ao isolamento social, tampouco às medidas básicas de higiene pessoal?

Apoiar e incentivar a pena privativa de liberdade como mecanismo de sofrimento eterno é um suicídio para liberdade interior de quem pensa dessa forma. Esta liberdade interior somente é possível através de um olhar de alteridade para com o homem, seja ele qual for.

Não ter políticas de desencarceramento preventivo, racional e responsável significa auxiliar a disseminação do coronavírus no sistema. Não ter mecanismos de desencarceramento interior significa fadar o homem a uma morte lenta e angustiante da falta de sentido na vida.

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1 Dados atualizados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias - Infopen.

2 Dados atualizados do Infopen.

3 Dados atualizados do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas do Conselho Nacional de Justiça - DMP/CNJ.

4 Dados atualizados do DMP/CNJ.

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*Manuela Galvão é advogada criminalista, atua na área do Direito Penal Empresarial. Sócia do escritório Galvão, Cardoso, Tavares & Moury Neto.

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