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A inconstitucionalidade da execução provisória da pena após condenação no Júri

Enquanto a primeira está vinculada ao princípio do juiz natural e acarreta mitigação do princípio tantum devolutum quantum apelattum, o princípio da presunção de inocência visa resguardar que ninguém será considerado culpado antes de sentença penal com trânsito em julgado, vedada a execução provisória de sentença.

sexta-feira, 19 de junho de 2020

Atualizado às 08:46

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O Supremo Tribunal Federal deu início ao julgamento do Recurso Extraordinário 1.235.340, no qual analisará a constitucionalidade da execução provisória da pena logo após a condenação no Tribunal do Júri.

É possível aduzir, de acordo com os votos até então proferidos e divulgados, que o caso sugere um conflito de dois Direitos Fundamentais: por um lado o da presunção de inocência (art. 5º, LVII) e, por outro a soberania dos veredictos (XXXVIII, c).

Entretanto, com todo respeito às opiniões contrárias, tal conflito inexiste dentro de uma ótica constitucional-processual, pois as normas em questão constituem garantias individuais, portanto, cláusulas pétreas, coexistindo de forma harmônica no ordenamento jurídico, sem haver qualquer colisão hermenêutica entre elas, bem como no âmbito de proteção dos bens jurídicos tutelados.

O constituinte originário atribuiu ao Tribunal do Júri competência para julgar os crimes dolosos contra vida, previstos nos arts. 121 a 127, preservando a soberania dos seus veredictos.

 A opção legislativa acolheu a tradição constitucional brasileira, inserida na Constituição do Império de 1824 (art. 151) e encontra-se vinculada à garantia do juiz natural para o processo e julgamento de crimes dolosos contra a vida.

Por outro lado, a soberania dos veredictos populares não se confunde com a impossibilidade de revisão e reanálise, por parte dos Tribunais, quanto à regularidade e legalidade dos atos proferidos nos processos de competência do Tribunal do Júri.

O Código de Processo Penal expressamente dispõe no seu art. 593, III, alíneas a, b, c e d, sobre a possibilidade de interposição de recurso de apelação das decisões proferidas pelo Júri, conferindo poder aos Tribunais -Juízes togados- de analisar os critérios formais de validade dos atos praticados, a legalidade da dosimetria da pena e, sobretudo, da possibilidade de anulação da decisão proferida por juízes leigos quando esta for manifestamente contrária a prova dos autos.

Assim, o princípio da soberania dos veredictos acolhido em nossa Constituição não atribui caráter de imutabilidade à decisão proferida pelos jurados, mas apenas delimita o princípio tantum devolutum quantum apelatum, vedando que Juízes togados alterem o mérito daquilo do que foi decidido majoritariamente pelos jurados quanto à absolvição ou condenação do réu.

Já a garantia Constitucional da presunção de inocência tem como objetivo impor ao Magistrado um dever de tratamento ao réu como inocente desde o nascedouro do inquérito ou das investigações até o trânsito em julgado de eventual sentença penal condenatória, impedindo, como corolário legal, a execução provisória da pena.

Definida a ratio essendi de ambas as garantias constitucionais, é possível perceber claramente a inexistência de conflito entre elas. Levando em consideração que a soberania dos veredictos encontra-se vinculada ao princípio da preservação do juiz natural e, como consequência, mitigar o efeito devolutivo do recurso de apelação, nenhum conflito há com a norma constitucional que estabelece o princípio da presunção de inocência, a qual veda a execução provisória da pena antes de sentença penal condenatória transitada em julgado.

A Suprema Corte, no julgamento da ADC 43, decidiu de forma definitiva quanto ao alcance da garantia constitucional da presunção de inocência, bem como a plena constitucionalidade do art. 283 do CPP, que ao prever as modalidades de prisões existentes no Direito Processual Penal Brasileiro, não contemplou a prisão para execução provisória da pena.

 Nesse sentido, vale menção a trecho do brilhante voto proferido naquela ocasião pelo Ministro Celso de Mello, em verbis.

"Indiscutível, desse modo, segundo penso, que o pressuposto legitimador das sanções de direito penal, notadamente a efetivação executória da pena privativa de liberdade, é a existência da coisa julgada penal, a significar que o ordenamento constitucional brasileiro (no ponto complementado pela legislação ordinária) - embora admitindo a utilização, pelo Estado, dos instrumentos de tutela cautelar penal (como, p. ex., a prisão temporária, a prisão preventiva e a prisão resultante de condenação criminal meramente recorrível), independentemente de decisão condenatória ou, até mesmo, do respectivo trânsito em julgado - não permite a antecipação executória da sanção penal, valendo relembrar, por oportuno, o magistério de CLAUS ROXIN a propósito da legislação alemã ("Derecho Procesal Penal", p. 435, 2000, Buenos Aires, Editores del Puerto), em lição segundo a qual, "en contraposición con el proceso civil, en lo proceso penal no hay una ejecución 'provisional', esto es, no es posible la ejecución sin cosa juzgada." 

Assim decidindo, o plenário do Supremo Tribunal Federal se posicionou, em caráter definitivo e sem qualquer exceção, no sentido de que a cláusula pétrea da Presunção de Inocência alcança o Processo Penal desde o seu nascedouro até o trânsito em julgado de eventual sentença penal condenatória, para todo e qualquer delito contido no Código Penal ou na legislação extravagante.

Os argumentos expostos pela corrente minoritária do Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADC 43, quanto à possível impunidade em relação àqueles acusados que tenham cometido homicídios bárbaros ou de forma reiterada, não encontra solução na mitigação da garantia constitucional da presunção de inocência e, tão pouco, na soberania dos Veredictos.

No caso de crimes bárbaros, de crimes praticados por esquadrões da morte e até de homicídios executados de forma cruel que tragam intranquilidade a sociedade, o legislador disponibilizou ao magistrado a prisão cautelar prevista em suas modalidades, preventiva e a temporária, que pode ser decretada caso seja demonstrada a necessidade cautelar.

Trata-se de medida cautelar que poderá ser requerida pelo Ministério Público em qualquer fase do processo desde que preenchidos os requisitos legais de contemporaneidade, do fummus comissi delicti e do periculum libertatis, cujos efeitos podem perdurar, conforme a necessidade, até o trânsito em julgado de eventual condenação,

Outro ponto a ser acrescentado a essa discussão, diz respeito aos crimes que tem resultado morte, mas que não estão entre aqueles de competência do Júri.

Dentre os crimes que não estão na competência constitucional do Tribunal do Júri, encontra-se o latrocínio (roubo seguido de morte) tipificado no § 3° do art. 157, inciso II, cuja pena é de 20 a 30 anos de reclusão, portanto, bem mais grave que a do homicídio qualificado, que possui pena de 12 a 30 de reclusão.

Assim, não há nenhuma lógica jurídica em afirmar que um acusado condenado por juízes leigos, dotados de íntima convicção, deve sair preso imediatamente após condenação de primeiro grau, desrespeitando-se a garantia constitucional da presunção de inocência, enquanto em crimes graves, envolvendo morte da vítima, seus autores, salvo a decretação de prisão preventiva, permanecerão soltos até o trânsito em julgado da condenação. Trata-se de contradição manifesta, não tolerada por um sistema jurídico harmônico.

Entender de forma contrária constituiria retrocesso inaceitável, represtinando, de uma forma ou de outra, a prisão obrigatória em delitos graves ou a necessidade de se recolher a prisão para apelar, modalidades de prisões há tempos banidas de nosso ordenamento jurídico.

Ademais, o STF não deve mitigar uma norma Constitucional e a sua recente jurisprudência pela justificativa teleológica da impunidade. Quem tem a função de prevenir o crime e resguardar a população não é Magistrado, mas sim as forças de segurança pública.

A presunção de inocência é uma garantia fundamental do devido processo penal. Na dimensão penal, o seu desrespeito consubstancia prejuízo a todas as outras garantias do processo.

Importante destacar ainda, a recente mudança legislativa contida na lei 13964/2019, a qual reformou o art. 492 do CPP, dando-lhe a seguinte redação:

Art. 492.  Em seguida, o presidente proferirá sentença que: 

e) mandará o acusado recolher-se ou recomendá-lo-á à prisão em que se encontra, se presentes os requisitos da prisão preventiva, ou, no caso de condenação a uma pena igual ou superior a 15 (quinze) anos de reclusão, determinará a execução provisória das penas, com expedição do mandado de prisão, se for o caso, sem prejuízo do conhecimento de recursos que vierem a ser interpostos;     (Redação dada pela Lei nº 13.964, de 2019)

Sem querer entrar no mérito da constitucionalidade da lei nova, é evidente que a sua inserção no ordenamento jurídico, dando novo tratamento à prisão decorrente de condenação pelo Tribunal do Júri, constitui fato novo, posterior a interposição do Recurso Extraordinário ora examinado pelo colendo Supremo Tribunal Federal, com evidente prejudicialidade sobre a tese vertida naquele recurso.

 A decisão eventualmente a ser proferida pelo Supremo Tribunal Federal pode ser ainda mais rigorosa do que a recente reforma processual, à medida que, com a mudança estabelecida na norma infraconstitucional, foi estabelecida uma sanção de no mínimo 15 anos como parâmetro para a execução provisória da pena, nas condenações emanadas pelo Tribunal do júri.

Em conclusão, o que se tem é a inexistência de conflito de Direitos Fundamentais, à medida que a soberania dos veredictos consegue conviver harmonicamente com a Presunção de inocência, pois estas duas garantias possuem âmbitos de proteção diversos.

Enquanto a primeira está vinculada ao princípio do juiz natural e acarreta mitigação do princípio tantum devolutum quantum apelattum, o princípio da presunção de inocência visa resguardar que ninguém será considerado culpado antes de sentença penal com trânsito em julgado, vedada a execução provisória de sentença.

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*Lucas Gomes de Vilhena Toledo é estagiário na Advocacia Assis Toledo & Vilhena Toledo. Acadêmico de direito do Uniceub (Brasília-DF).

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