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Fase saneadora do processo?

Na atuação em processos judiciais cíveis, vez ou outra depara-se com despachos e/ou decisões judiciais que não guardam obediência aos procedimentos legalmente previstos.

terça-feira, 21 de julho de 2020

Atualizado em 22 de julho de 2020 09:37

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Na atuação em processos judiciais cíveis, vez ou outra - e está se tornando constante - depara-se com despachos e/ou decisões judiciais que não guardam obediência aos procedimentos  legalmente previstos, despachos e/ou decisões que criam procedimentos próprios, ilegais,  apesar de indicarem artigos do Código de Processo Civil em vigor como fundamento de seus atos.

Recentemente, na fase do saneamento do processo, defrontou-se com  decisões do Juízo Cível de determinada Comarca da região metropolitana da Capital Mineira,  in verbis:

"...Quanto às provas, foi requerida pela parte ré a produção de prova documental. Momento em que a defiro. 

Autorizo a juntada, no prazo de 15 (quinze) dias, de documentos novos, conforme estabelece o art. 435 do CPC.

Com a juntada, dê-se vista a parte autora, por 10 (dez) dias.

Após, faça-se conclusão, para apreciação dos demais requerimentos de provas."

Com a devida venia¸ observa-se que tais decisões  afrontam o Código de Processo Civil, na medida em que criam   uma "nova fase" no processo, dentro daquela que o legislador denominou de Do saneamento e da Organização do Processo(Seção IV, do Capítulo X, Título I, do Livro VI, do CPC).

Após  o contraditório entre as partes, e não sendo caso de julgamento conforme estado em que se encontra o processo (arts 354 a 356, CPC), deverá o juiz  proceder à organização do processo, ou seja, tem de sanear o processo e prepará-lo para a instrução e o julgamento, de acordo com o comando do art. 357, incisos I a V,  do CPC.

Documentos, "incumbe à parte instruir a petição inicial ou a contestação com os documentos destinados a provar suas alegações" (art. 434, CPC), sendo-lhes lícito, "...em qualquer tempo, juntar aos autos documentos novos, quando destinados a fazer prova de fatos ocorridos depois dos articulados ou para contrapô-los aos que foram produzidos nos autos"(art. 435, caput, CPC), ou, ainda, fazer "...a juntada posterior de documentos formados após a petição inicial ou a contestação, bem como dos que se tornaram conhecidos, acessíveis ou disponíveis após esses atos, cabendo à parte que os produzir comprovar o motivo que a impediu de juntá-los anteriormente e incumbindo ao juiz, em qualquer caso, avaliar a conduta da parte de acordo com o art. 5º" (parágrafo único, art. 535, CPC).

Da decisão acima transcrita, observa-se que o julgador, além de oportunizar à parte requerida a produção de prova documental, postergou o exame de requerimentos de provas outras. Criou, assim, uma nova fase - a de produção de prova documento pela parte ré - dentro da "fase do saneamento e organização do processo".

Não se pode perder de vista o disposto logo no primeiro parágrafo da exposição de motivos do Código de Processo Civil,ou seja: "Um sistema processual civil que não proporcione à sociedade o reconhecimento e a realização dos direitos, ameaçados ou violados, que têm cada um dos jurisdicionados, não se harmoniza com as garantidas constitucionais de um Estado de Direito.".

Também, como explicam os expositores, que "Há mudanças necessárias, porque reclamadas pela comunidade jurídica, e correspondentes a queixas recorrentes dos jurisdicionados e dos operadores do Direito, ouvidas em todo país. Na elaboração deste Anteprojeto de Código de Processo Civil, essa foi uma das linhas principais de trabalho: resolver problemas. Deixar de ver o processo como teoria descomprometida de sua natureza fundamental de método de resolução de conflitos, por meio do qual se realizam valores constitucionais."

Ora, criando fases processuais ao arrepio da lei ou desobedecendo o regramento legal próprio (art. 8º, CPC), o julgador não só desrespeita o devido processo legal, ele cria obstáculos à solução integral do mérito em prazo razoável (art. 5º, LXXVIII, CF).

De há muito o professor e jurista Lennio Luis Streck vem chamando a atenção para o voluntarismo do juiz brasileiro, que insiste em não cumprir a lei.

Recentemente, analisando decisão do STF no HC nº 161.658, a Desembargadora Aposentada do TJ-SP, Kenarik Boujikian(ver: BOUJIKIAN, Kenari. Consultor Jurídico. Escritos de Mulher. Juízes, da primeira à última instância, resistem a aplicar leis 24.jun.20200), alerta para a não aplicação das leis pelos órgãos do Poder Judiciário, ressaltando que "...Noutras palavras, parafraseando o professor Lenio Luiz Streck, se a lei processual penal, consubstanciada na presunção de inocência e na imparcialidade do juiz, prescreve a forma como deve ser procedida a audiência e o magistrado, a seu critério, resolve infringir, e no caso, ainda afirma que o artigo 212 do CPP é  norma de cunho orientador, a convalidação do ato configuraria puro "decisionismo judicial" e, consequentemente, negativa de vigência à lei federal, sem qualquer amparo no mundo jurídico (ver : STRECK, Lenio Luiz. Consultor Jurídico. Senso Incomum. Por que tanto se descumpre a lei e ninguém faz nada? 14.nov.2013).

É certo que a articulista analisa as questões relacionadas à esfera penal. Entretanto, como se observa da decisão cível acima transcrita, o fenômeno é geral e frequente, com danos irreparáveis à dignidade das partes e do próprio Poder Judiciário.

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*José Martinho Nunes Coelho é advogado, sócio da Pereira Coelho Sociedade de Advogados e juiz de Direito aposentado TJ/MG.

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