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Carta à diplomacia brasileira

Fica aqui um pequeno ato de protesto, pela covardia da Diplomacia Brasileira ao negar sua vocação de paz e preocupação com a Dignidade de nossa gente.

quarta-feira, 22 de julho de 2020

Atualizado em 30 de julho de 2020 08:16

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O ano de 2020 continua com surpresas desagradáveis. Neste mês de julho, fiquei perplexo ao receber notícia de que o Brasil teria votado contra Projeto de Resolução da ONU que tinha por objeto combater a discriminação contra mulheres e meninas.

O veto brasileiro refere-se à "garantia de acesso universal à educação sexual como uma das formas de lidar com a discriminação e mesmo a violência, sendo que o Brasil foi acompanhado por governos ultra-conservadores e acusados de posturas de violação aos direitos das mulheres, como a Arábia Saudita, Catar, Bahrein, Paquistão e Iraque, em oposição aos demais países ocidentais que estavam em consonância de apoio ao projeto.

Quero apenas lembrar à Diplomacia Brasileira, assumindo o risco de ser pretencioso, que mesmo antes do mestre Rui Barbosa, nosso Itamaraty, historicamente, apresentou postura comprometida com os valores da Dignidade Humana.

É importante que se colacione que em relação ao objeto do veto, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, buscou pavimentar na comunidade internacional, por meio da Organização das Nações Unidas (ONU), a positivação de convenções internacionais de cooperação mútua e mecanismos de controle que garantam um elenco de direitos considerados básicos à vida digna, os chamados Direitos Humanos.

Em especial na dimensão sexual da Dignidade Humana, as últimas décadas registraram avanços na legislação nacional  e internacional sobre a reprodução e a sexualidade das mulheres, sendo neste ponto importante que expressamente se pontue duas conferências, já antigas, promovidas pela Organização das Nações Unidas.

O primeiro momento especial de discussão sobre a reprodução e utilizado da sexualidade foi a Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento (CIPD), realizada no Cairo, em 1994, que assentou ser essencial a proteção à saúde, aos direitos sexuais e aos direitos reprodutivos, abandonando a ênfase na necessidade de limitar o crescimento populacional como forma de combater a pobreza e as desigualdades, focando no desenvolvimento do ser humano.

Esta conferência trouxe novo olhar para o debate sobre população e desenvolvimento, lançando parâmetros arrimados aos direitos fundamentais da mulher enquanto ser humano, clarificando questões sobre a desigualdades de gênero.

Como apontado pela International Women's Health Coalition, "o Programa de Ação, aprovado por 179 governos, assinalou uma nova compreensão entre as entidades mundiais, ou seja, que a população e o desenvolvimento estão inextrincavelmente ligados e que a atribuição de poder à mulher é a chave de ambos. E, pela primeira vez, a saúde reprodutiva e sexual e os direitos da mulher tornaram-se o elemento central de um acordo internacional sobre população e desenvolvimento".

O segundo momento que merece atenção foi a Conferência Mundial sobre a Mulher, realizada em Beijing, Pequim, em 1995, em que se reafirmaram os acordos estabelecidos no Cairo e avançou-se na definição dos direitos sexuais e direitos reprodutivos como Direitos Humanos.

Com relação à saúde reprodutiva, estas conferências da ONU cristalizaram o conceito de saúde reprodutiva definido em 1988 pela Organização Mundial da Saúde (OMS):

"A saúde reprodutiva é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, em todos os aspectos relacionados com o sistema reprodutivo e as suas funções e processos, e não de mera ausência de doença ou enfermidade. A saúde reprodutiva implica, por conseguinte, que a pessoa possa ter uma vida sexual segura e satisfatória, tendo autonomia para se reproduzir e a liberdade de decidir sobre quando e quantas vezes deve fazê-lo. Implícito nessa última condição está o direito de homens e mulheres de serem informados e de terem acesso a métodos eficientes, seguros, permissíveis e aceitáveis de planejamento familiar de sua escolha, assim como outros métodos de regulação da fecundidade, de sua escolha, que não sejam contrários à lei, e o direito de acesso a serviços apropriados de saúde que deem à mulher condições de atravessar, com segurança, a gestação e o parto e proporcionem aos casais a melhor chance de ter um filho sadio. Em conformidade com a definição acima de saúde reprodutiva, a assistência à saúde reprodutiva é definida como a constelação de métodos, técnicas e serviços que contribuem para a saúde e o bem-estar reprodutivo, prevenindo e resolvendo problemas de saúde reprodutiva. Isso inclui também a saúde sexual, cuja finalidade é a intensificação das relações vitais e pessoais e não simples aconselhamento e assistência relativos à reprodução e a doenças sexualmente transmissíveis (NACIONES UNIDAS, 1995, anexo, cap. VII, par. 7.2)."

Apoiamos as duas Conferências e tivemos papel preponderante na conclusão dos trabalhos que asseguram Direitos às mulheres. Este sempre foi, portanto, o compromisso da nação brasileira. O Brasil votou favoravelmente aos dois textos das Conferências, tendo inclusive brilhado no palco da Conferência do Cairo. Fazíamos diplomacia de verdade!

Fica aqui um pequeno ato de protesto, pela covardia da Diplomacia Brasileira ao negar sua vocação de paz e preocupação com a Dignidade de nossa gente.

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t*Evandro Fabiani Capano é sócio fundador da Capano, Passafaro Advogados Associados. Doutor em Direito pela Universidad de Salamanca-Espanha e em Direito do Estado pela USP.

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