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A ação de regresso por violação do dever de cooperação com a manutenção da saúde pública: uma proposta para responsabilização por abuso do direito à saúde em tempos de pandemia

Uma proposta e sua fundamentação jurídica para a responsabilização do descumpridor das normas sanitárias de prevenção à disseminação do Covid-19 quanto aos gastos públicos de saúde.

quarta-feira, 26 de agosto de 2020

Atualizado às 09:51

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Introdução

O ano de 2020 será marcado na história da humanidade como aquele em que uma pandemia com proporções mundiais demandou uma brusca mudança no estilo de vida dos indivíduos e a alteração da agenda político-econômica mundial. O vírus Sars-Cov-2 chegou ao Brasil somente após uma experiência traumática anterior ter ocorrido em alguns lugares do mundo, anunciando que, naquele momento, a única forma viável de enfrentamento da peste seria a imposição de um distanciamento social e a disponibilização de uma robusta estrutura médica para atendimento dos infectados.

Apesar da vantagem temporal e a lição dada por outros países, o Brasil, por uma série de fatores, não adotou de forma consistente e suficiente as medidas de precaução para a mitigação do espalhamento do vírus.

Alguns estados-federados definiram restrições ao funcionamento de estabelecimentos comerciais não essenciais, de modo a facilitar o distanciamento social. Inicialmente, sob uma abordagem branda de diminuição das possibilidades de aglomeração, que passaram a ser intensificadas à medida que os leitos eram integralmente ocupados na rede pública e privada de saúde.

Contando com milhares de infectados e uma média diária superior a mil mortos pelo vírus pandêmico, ainda assim estabelecimentos comerciais foram reiteradamente surpreendidos promovendo aglomerações, a despeito de proibições definidas pelos estados e municípios. Embora haja alguma divergência motivada por questões de ordem política ou econômica, é certo que há um consenso dos especialistas de que tais ações implicam em uma grande probabilidade de contaminação de muitos indivíduos, conforme revelam diversas notícias oriundas de países que adotam seriamente contact tracing1 2. Nestas localidades uma fração considerável dos "aglomeradores" ocuparam leitos hospitalares nas semanas seguintes, o que representaria, na realidade brasileira uma crescente ocupação de leitos de UTI, em grande parte públicos e gratuitos.

Este é o contexto sob estudo. O embate entre a política pública de distanciamento social e a sua violação pelos indivíduos que promovem aglomerações clandestinas, aumentando a demanda por saúde e, ao fim e ao cabo, o custo estatal com o sistema público de saúde.

Para isso, primeiramente, explana-se brevemente sobre o sistema de saúde público e os seus beneficiários. Após, traremos um pequeno aporte teórico sobre deveres fundamentais, custos do direito, princípios parcelares da boa-fé objetiva e uma medida de compensação que vem sendo utilizada ainda de forma incipiente pela União para ressarcimento de despesas previdenciárias. Ao final, testaremos a seguinte hipótese: seria juridicamente possível a responsabilização dos empresários e seus clientes, que foram surpreendidos promovendo aglomerações em tempos de pandemia, pelas despesas públicas com o atendimento destes, caso venham a utilizar a rede pública de saúde?

Trata-se de uma contribuição para o debate público sobre as medidas possíveis diante da pandemia vivenciada, sem a pretensão de responder a todas as dificuldades jurídicas envoltas ao tema, mas possibilitando um passo a mais na construção de uma doutrina jurídica capaz de entregar alternativas em momentos de crise.   

2 O SISTEMA PÚBLICO DE SAÚDE E A COBERTURA DIANTE DA PANDEMIA DE SARS-COV-2

Inegavelmente o direito à saúde recebeu contornos bem definidos com a promulgação da Constituição Federal de 1988, tendo sido inserido em seção própria no Capítulo da Seguridade Social e se tornou universal, cristalizando-se como genuíno direito público subjetivo. O art. 196, precisamente, categorizou a saúde como um direito de todos e um dever do Estado.

O constituinte fundou o Sistema Único de Saúde, conhecido como SUS, que viria a ser regulado posteriormente. A Lei nº 8.080/1990, responsável por esta regulação, aderiu ao comando constitucional de qualificar a saúde como direito fundamental do ser humano e um dever permanente do Estado, definindo os objetivos, diretrizes e princípios associados ao SUS.

Das três décadas da fundação deste sistema é indiscutível a constatação da sua grandeza na efetivação deste direito fundamental, prestado gratuitamente e sem privilégios, pois pautado na igualdade dos cidadãos. Seu funcionamento está calcado em um modelo descentralizado, regionalizado e hierarquizado, contando com a atuação conjunta e solidária da União, Estados, Distrito Federal e Municípios.

Há, por consequência da sua desafiadora concretização em um país continental e desigual, dispêndio vultuoso de gastos públicos, que enfrenta uma realidade de mordaz escassez de recursos. Contudo, esse fator limitante não impede o exercício do direito, alcançado mediante amplo esforço coletivo, que é deveras intenso, em face da própria abrangência conferida ao SUS, que envolve amplo espectro de redução de riscos de doenças, bem como a garantia "à coletividade de bem-estar físico, mental e social", conforme prevê o art.3º da citada lei regulamentadora.

Por seu turno, aceitada a premissa de que o dever de garantir a saúde não é exclusivo do Estado, mas também das pessoas, da família, das empresas e da sociedade3, é que surge a indagação: aquele que, injustificadamente, desincumbiu-se do referido dever e se prestou a um gravoso e desprezível papel de disseminação de um vírus com capacidade letal, ao contrariar as recomendações sanitárias, teria direito de receber atendimento na rede pública de saúde? Evidentemente que sim.

Ainda que se admita a incidência de limitações aos direitos fundamentais, especialmente em relação aos direitos prestacionais, como é o caso, deve-se respeito ao seu núcleo essencial. Explica-se.

Diante sempre de situações concretas, é tolerável que determinados direitos possam ser limitados, seja pelo embate com outros direitos em uma atividade de ponderação, ou mesmo diante de contingências informadas pela reserva do possível. Todavia, cada direito fundamental guarda um núcleo essencial que deve ser respeitado, um ponto a partir do qual a sua não concretização implica na própria negação do direito.

Diante de uma situação de pandemia de um vírus mortal, negar o atendimento do indivíduo na rede pública ao qual se socorre, ou mesmo impor condições prévias pode ser a própria negação do direito à saúde, ou, no limite, a própria mitigação do direito fundamental à vida.

Destarte, por ser genuinamente um "direito fundamental do ser humano"4, universal e gratuito é que não há qualquer cogitação de se obstar o acesso de quem quer que seja. Porém, como se verá, a cobrança dos gastos públicos decorrentes da conduta reprovável é envolta de possibilidades.

Apesar dessas reflexões, não significa isto que não possam haver consequências de outra natureza caso constatado o abuso de seu direito, como, por exemplo, de natureza econômica.

É oportuno mencionar, antes de um maior esmiuçamento, que o art. 32 da Lei nº 9.656/1998 prevê o ressarcimento por parte das operadoras de planos privados de saúde, na medida dos contratos, dos gastos gerados pelos seus contratantes que venham a utilizar o SUS. A previsão em apreço foi inclusive chancelada pelo STF5.

A problemática que habita o âmago deste artigo parte do aqui, sumariamente, tratado.

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1- Para o significado e objeto do contact tracing: Clique aqui.  Acesso em: 3/7/20.

2- BONIS, Gabriel. As lições de três eventos catalisadores do novo coronavirus na Europa. Disponível em: Clique aqui. Acesso em: 3/7/20.

3- Previsão contida no art. 2º, §2º da Lei 8.080 de 19 de Setembro de 1990.

4- Previsão contida no art. 2º da Lei 8.080 de 19 de Setembro de 1990.

5- ADI nº 1.931

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*César Henrique Sanfelice Rocha de Oliveira é advogado, servidor público federal com lotação no Instituto Nacional do Seguro Social. Graduado em Direto (UEMS).

*José Galbio de Oliveira Júnior é procurador do Estado de São Paulo. Mestrando em Direito Tributário (PUC-SP). Especialista em Direito Tributário (PUC-MG) e Direito do Estado (UCAM-RJ). Graduado em Direito (UEMS).

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