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A ilegalidade da suspensão do pagamento de acordos na Justiça do Trabalho durante a pandemia da covid-19

O medo da insolvência e da liquidação vem causando grande preocupação entre o empresariado brasileiro e, na busca de garantias de manutenção, mesmo que mínimas, de sua saúde econômica, estes vêm procurando soluções para a redução de seu passivo judicial.

segunda-feira, 31 de agosto de 2020

Atualizado às 08:08

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Tendo em vista a comoção social e as medidas restritivas que diversos Estados estão tomando para a contenção do vírus "covid-19", uma das questões que mais vem sendo abordada advém das consequências econômicas, possivelmente catastróficas, que poderão atingir o país.

O medo da insolvência e da liquidação vem causando grande preocupação entre o empresariado brasileiro e, na busca de garantias de manutenção, mesmo que mínimas, de sua saúde econômica, estes vêm procurando soluções para a redução de seu passivo judicial.

No âmbito do Judiciário trabalhista, verifica-se que a tendência é a de requerer a suspensão do pagamento das parcelas de acordos homologados anteriormente, bem como da aplicação de multa em caso de mora.

Esta medida está sendo analisada e inclusive deferida por alguns juízes do trabalho pelo país, adotando como argumento a existência de caso fortuito ou força maior, na forma do art. 393 do Código Civil, além da aplicação analógica da teoria civilista da imprevisão do artigo 480 da mesma legislação, por exemplo.

Entretanto, essas decisões estão revestidas de polêmicas, bem como possuem graves vícios, uma vez que deixam de verificar diversos dispositivos legais e, inclusive, os contrariam frontalmente.

É necessário, inicialmente, frisar que o acordo judicial homologado não possui natureza de contrato civil. Ao acordo judicial homologado, ante a disposição do parágrafo único do artigo 831 da CLT, se dá o valor de decisão irrecorrível, sendo permitida sua modificação apenas por ação rescisória, em conformidade com a súmula 259 do C. TST.

Neste passo, qualquer discussão no sentido de alterar as disposições de um acordo homologado se trata de alteração da coisa julgada. Estes são os termos do art. 836 da CLT: "É vedado aos órgãos de Justiça do Trabalho conhecer de questões já decididas, excetuados os casos expressamente previstos neste Título e a ação rescisória".

Logo, por não haver nenhuma previsão legal, mesmo que considerando a crise pandêmica atual, qualquer decisão que realize a alteração unilateral do transacionado é ofensa à coisa julgada imutável e irrecorrível.

Neste contexto, pode-se argumentar que tal decisão inclusive violaria direito fundamental, consubstanciado no art. 5º caput e inciso XXXVI da Constituição Federal.

Ainda, contradiz os argumentos a favor dessa tese o fato de a verba discutida em reclamações trabalhistas ter natureza alimentar, protegida pelo princípio constitucional da proteção ao trabalhador (arts. 6º a 11 da Constituição Federal).

E, mais, mesmo que se ignore a afronta ao legislado e à Constituição, privilegiando os argumentos dos riscos econômicos a que estão expostas as empresas, faz-se necessária uma provocação: se um reclamante, em uma situação análoga e com a devida comprovação, estivesse com sua saúde financeira em risco devida à pandemia e requeresse a alteração do acordo homologado para que fossem antecipadas as parcelas vincendas, poderia o juiz acolher tal pedido?

A coisa julgada, independente de qual for a situação e qual das partes pretender sua revisão, não pode ser alterada por mero requerimento unilateral e por decisão interlocutória simples. Neste sentido, inclusive, os tribunais já estão decidindo pela cassação de tais decisões por meio de liminares em mandados de segurança1.

Entretanto, ao empresário que esteja em situação de dificuldades financeiras devido à crise pandêmica, é possível a repactuação do acordo realizado para melhor acomodar sua atual situação financeira, desde que seja realizada com a devida concordância da parte contrária e com a homologação judicial.

Ainda, pode o juiz que receba requerimento para suspensão de acordo optar pelo intermédio de uma conciliação entre as partes.

Aliás, pode-se verificar interessantes iniciativas nesta toada, como a criação de grupo pelo aplicativo mensageiro WhatsApp entre os patronos de cada parte a os magistrados2, buscando contornar a impossibilidade do atual de comparecimento de todos perante o juízo para sessão conciliatória.

A utilização de meios eletrônicos para permitir a mediação e conciliação de conflitos coletivos e individuais é fomentada pelo Conselho Superior da Justiça do Trabalho, conforme recomendação CSJT.GVP 01/203, que, inclusive, prevê a possibilidade da utilização de programas e aplicativos de acesso público e gratuito até que seja implantada solução unificada para tanto.

Não se deve utilizar da infeliz crise que acomete o planeta como forma de ignorar preceitos legais e constitucionais, principalmente no que tange a alteração de coisa julgada sem previsão legal que o autorize.

Porém, cabe ao Judiciário e às partes, seja à empresa que roga pela suspensão dos efeitos do acordo judicial, seja ao trabalhador que se depara com este requerimento, terem bom senso para que, sem que haja afronta aos dispositivos legais e prejuízos imensuráveis a quaisquer das partes, cheguem numa melhor solução na resolução de tais situações pelos meios da mediação e conciliação.

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1 MSCiv 1000948-45.2020.5.02.0000, TRT 02ª. R., rel. Desembargador Benedito Valentini, j. 07/4/20. Disponível clicando aqui

2 ATSum-1001605-09.2019.5.02.0004, TRT 02ª. R., Juíza Camila Costa Koerich, j. 12/4/20. Disponível clicando aqui

3 CONSELHO SUPERIOR DA JUSTIÇA DO TRABALHO (Brasil). Recomendação n. 1/CSJT.GVP, de 25 de março de 2020. Diário Eletrônico da Justiça do Trabalho: caderno administrativo [do] Conselho Superior da Justiça do Trabalho, Brasília, DF, n. 2942, p. 3-5, 26 mar. 2020. Disponível clicando aqui

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t*Gabriel Alessandro Marinho Lodi é advogado na área do Direito do Trabalho. Pós-graduando em Direito Processual Civil pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.





t*Ricardo Souza Calcini é mestre em Direito pela PUC/SP. Professor de pós-graduação em Direito do Trabalho da FMU. Palestrante e instrutor de eventos corporativos "in company" pela empresa Ricardo Calcini | Cursos e Treinamentos.

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