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A teoria da encampação no mandado de segurança e a interpretação do Superior Tribunal de Justiça

Uma das características mais importantes do procedimento do mandamus é a presença da autoridade coatora. Contudo, em qual condição? Parte, litisconsorte ou terceiro interveniente? O erro na indicação da autoridade coatora gera a extinção do processo?

quarta-feira, 16 de setembro de 2020

Atualizado às 15:15

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Este ensaio tem por objetivo discutir os conceitos de autoridade coatora e a aplicação da chamada teoria da encampação, seguindo o entendimento firmado em precedentes do Superior Tribunal de Justiça.

Como é sabido, no mandado de segurança desenvolveu-se a teoria da encampação do ato impugnado pela autoridade coatora inicialmente inadequada ou ilegítima, com o claro objetivo de aproveitar o procedimento e evitar sua extinção ou mesmo deslocamento de competência para outro órgão jurisdicional.

A questão maior a ser enfrentada, especialmente diante do texto contido no Enunciado 628, de Súmula da Jurisprudência dominante do Superior Tribunal de Justiça e da própria jurisprudência anterior daquela Corte, é quais os requisitos para esse aproveitamento e possibilidade de prosseguimento da demanda mesmo em caso de erro na indicação da autoridade coatora, como se passa a demonstrar.

Uma das características mais importantes do procedimento do mandamus é a presença da autoridade coatora. Contudo, em qual condição? Parte, litisconsorte ou terceiro interveniente? O erro na indicação da autoridade coatora gera a extinção do processo? Essas perguntas são relevantes para o desenvolvimento da teoria da encampação.

Em verdade, devem ser interpretadas as normas fundamentais do CPC/15 (como boa-fé, dever de cooperação, contraditório prévio) em consonância com o procedimento do mandado de segurança. Da mesma forma, a primazia de resolução de mérito (arts. 4º e 6º, do CPC/15) deve ser vislumbrada com os olhos voltados ao mandado de segurança.

Em que pese a existência de manifestações em sentido contrário, acompanho o posicionamento de que a autoridade coatora não é ré no procedimento mandamental, mas mera informante, não devendo ser considerada a peça informativa como defesa, mas meio de prova1. Sendo informante, exclui-se a alegação de que seria litisconsorte passivo2, parte ou assistente litisconsorcial passivo3.

Em decorrência deste raciocínio, o erro na indicação da autoridade não gera a extinção do processo por ilegitimidade (desde que não seja alterada a pessoa jurídica indicada no polo passivo), sendo possível, dependendo do caso concreto, a decretação de incompetência absoluta do Órgão Jurisdicional a quem foi distribuído o feito.

O próprio CPC permite a correção do polo passivo (arts. 338 e 339), visando o atendimento aos princípios da efetividade, celeridade, duração razoável do processo e primazia da resolução de mérito.

O Superior Tribunal de Justiça admite, com alguns regramentos, a correção da autoridade coatora (AgInt no REsp 1505709/SC, Rel. Ministro GURGEL DE FARIA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 23/06/2016, DJe 19/08/2016; AgRg no RMS 32184/PI, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 22/05/2012, DJe 29/05/2012; AgRg no RMS 35638/MA, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 12/04/2012, DJe 24/04/2012) como forma de evitar a extinção do processo sem resolução de mérito e atender, como consequência, os princípios constitucionais indicados acima.

A questão ligada à correção da autoridade coatora pode ficar superada, ao se entender que a parte passiva no mandado de segurança é a pessoa jurídica. Aliás, alguns precedentes da Corte da Cidadania permitem essa correção do aspecto procedimental, desde que seja mantida a competência do Órgão Jurisdicional e ambas as autoridades pertençam à mesma pessoa jurídica (STJ -AgRg no AREsp 368.159/PE, Rel. Min. Humberto Martins, Segunda Turma, julgado em 1º/10/2013)5.

Mesmo em caso de erro na indicação da autoridade coatora, eventualmente poderá ocorrer a aplicação da chamada teoria da encampação. Contudo, é necessário atender alguns requisitos para a encampação, partindo de duas afirmações: a) a competência no mandado de segurança é estabelecida pela autoridade apontada como coatora pelo impetrante; b) o sujeito passivo é a pessoa jurídica, ressalvados os posicionamentos anteriormente apontados.

O equívoco em relação à autoridade pode gerar a decretação de incompetência absoluta do Órgão Jurisdicional originário, tendo em vista que, dependendo do caso concreto, a alteração da autoridade apontada como coatora, v.g, de uma que detém prerrogativa de foro para o processamento em Tribunal (Local ou Superior) para outra que não a possui, poderá gerar a modificação do órgão competente para apreciação do mandamus. Neste caso, mesmo que tenha adentrado no mérito, não há que se falar em possibilidade de aplicação da encampação.

Os Tribunais pátrios (especialmente o Superior Tribunal) têm enfrentado os requisitos para a aplicação da teoria, quando, apesar de indicada incorretamente, a autoridade ultrapassa as preliminares processuais e adentra no mérito do ato impugnado pelo impetrante, não devendo ser extinto o processo por ilegitimidade .

Contudo, três indagações devem ser enfrentadas para o correto aproveitamento processual do MS: a) qualquer autoridade pode encampar o ato supostamente imputado a outra ou apenas aquela com competência hierárquica superior? c) amplia-se a competência funcional no caso de modificação da autoridade? c) a encampação será na condição de parte ou de terceiro?

A aplicação da teoria pressupõe a atuação de autoridade hierarquicamente superior. No RMS 28745/AM, a Corte Superior entendeu inaplicável a teoria exatamente pelo fato de que a autoridade era de hierarquia inferior e não poderia encampar ato que deveria ser praticado pela superior: 

"Processual civil. Recursos ordinário e especial em mandado de segurança. Art. 535 do CPC: Súmula 284/STF. Legitimidade ativa do contribuinte de fato para questionar a alíquota do ICMS. Mandado de segurança com efeitos patrimoniais pretéritos: Descabimento. Súmulas 269 e 271  do STF. Teoria da encampação: inviabilidade. Alteração, pelo Judiciário, de ato normativo: Descabimento. 1. O contribuinte de fato, por suportar o encargo financeiro do ICMS, tem legitimidade para questionar judicialmente a alíquota do imposto. 2. Não cabe mandado de segurança objetivando efeitos patrimoniais pretéritos (súmulas 269 e 271 do STF). 3. A chamada "teoria da encampação" não pode ser invocada quando a autoridade apontada como coatora (e que "encampa" o ato atacado), é hierarquicamente subordinada da que deveria, legitimamente, figurar no processo. Não se pode ter por eficaz, juridicamente, qualquer "encampação" (que melhor poderia ser qualificada como usurpação) de competência superior por autoridade hierarquicamente inferior. 4. Não cabe mandado de segurança objetivando, sob fundamento de inconstitucionalidade, substituir por percentual menor as alíquotas de ICMS fixadas em ato normativo (decreto estadual). A sentença que atendesse a tal pedido produziria efeitos semelhantes ao da procedência de ação direta de inconstitucionalidade, e, mais ainda, transformaria o Judiciário em legislador positivo. 5. Recurso ordinário improvido. Recurso especial provido. (RMS 28745 / AM - Rel. Min. Teori Albino Zavascki - 1ª Turma - J. em 19/05/2009 - DJ de DJe 01/06/2009).

Como se pode perceber, deve o intérprete, ao analisar o caso concreto, realizar duas ponderações antes de concluir pela aplicação ou não da teoria em comento: i) se a autoridade que figura como coatora é de hierarquia superior ou inferior em relação à que deveria atuar no mandamus; b) se as informações impugnam o mérito do ato, ou apenas alega a ilegitimidade.

Outrossim, assunto que também provoca reflexão respeita a consequência processual em casos de (in) competência absoluta. Apenas é aplicável a encampação nos casos de inexistência de modificação da competência do órgão jurisdicional, como bem definiu o Ministro Sérgio Kukina, ao Relatar o AgInt no RMS 58354 / RJ (1ª T - J. em 26/02/2019 - DJe 01/03/2019)6.

No tema, aliás, é importante ratificar que o Superior Tribunal editou o Enunciado 628, de Súmula de sua Jurisprudência dominante (DJe 17/12/2018 - RSSTJ vol. 48 p. 241 - RSTJ vol. 252 p. 1304 Decisão: 12/12/2018), consagrando, em definitivo, os requisitos para a aplicação da teoria, senão vejamos:

"A teoria da encampação é aplicada no mandado de segurança quando presentes, cumulativamente, os seguintes requisitos: a) existência de vínculo hierárquico entre a autoridade que prestou informações e a que ordenou a prática do ato impugnado; b) manifestação a respeito do mérito nas informações prestadas; e c) ausência de modificação de competência estabelecida na Constituição Federal".

Trata-se, portanto, de uma tentativa de colocar a última pá de cal em relação à aplicação da teoria da encampação e seus requisitos obrigatórios. A encampação, aliás, também pode ocorrer nas informações prestadas no habeas data, com semelhantes requisitos7.

Contudo, resta analisar a terceira indagação feita anteriormente e ora ratificada: em qual qualidade será aproveitada a manifestação da autoridade (parte ou terceiro)?

A ressalva interpretativa a ser feita é no sentido de que a encampação, caso prevaleça o entendimento de que a autoridade coatora não é parte e sim informante, ocorre nesta condição, não passando a ser considerada legitimada passiva aquela que, na peça informativa, adentrou no mérito da causa discutida no MS.

Neste particular, se a pessoa jurídica (sujeito passivo) não for alterada, mas apenas a autoridade coatora, inexistirá ilegitimidade, em que pese a possibilidade de decretação de incompetência absoluta do órgão jurisdicional.

É razoável aduzir que, mesmo em caso de aplicação da teoria da encampação na qualidade de informante - e não de parte - o caso concreto poderá demonstrar a necessidade de decretação de incompetência absoluta como consequência da alteração da autoridade.

Não se deve esquecer que a legitimidade recursal é da pessoa jurídica, podendo a autoridade apresentar apelo, na condição de terceiro interessado para evitar, quem já mencionado anteriormente, procedimento administrativo em decorrência da decisão judicial ou mesmo ação de regresso a ser eventualmente proposta pelo poder público.

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*José Henrique Mouta Araújo é pós-doutor (Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa), doutor e mestre (Universidade Federal do Pará), Professor do Centro Universitário do Estado do Pará (CESUPA) e do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), procurador do estado do Pará e advogado. 

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