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STF estabelece marcos de resistência civilizatória

Em acórdão publicado no início de agosto, o STF repudia a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn) 3.446/DF, impetrada pelo Partido Social Liberal (PSL), visando à destruição dos alicerces do Estatuto da Criança e do Adolescente, o ECA, que acaba de completar 30 anos.

sexta-feira, 18 de setembro de 2020

Atualizado às 08:30

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Hoje o obscurantismo violento mostra sua cara e seus impulsos sem disfarces. Diante dela, hesitação e tergiversação permitem retrocessos inaceitáveis, e ações inequívocas em defesa das conquistas democráticas e civilizacionais tornam-se imprescindíveis. Neste contexto, o Supremo Tribunal Federal acaba de publicar uma decisão que poderá se mostrar a mais importante das que irão compor a história da Justiça brasileira neste período.

Em acórdão publicado no início de agosto, o STF repudia a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn) 3.446/DF, impetrada pelo Partido Social Liberal (PSL), visando à destruição dos alicerces do Estatuto da Criança e do Adolescente, o ECA, que acaba de completar 30 anos. Em decisão unânime, o plenário não apenas julga improcedentes os argumentos do PSL como consagra e reforça, na jurisprudência, os fundamentos constitucionais do ECA. E mais: o Supremo cobra do sistema de justiça e dos governos o cumprimento do estatuto.

A ADIn do PSL mirava o coração do ECA, alegando que seria inconstitucional o reconhecimento de que crianças e adolescentes são titulares dos mesmos direitos fundamentais dos adultos, sendo-lhes devidos cuidado e proteção especiais por sua maior vulnerabilidade e por se encontrarem em especial fase de desenvolvimento. Constatações sustentadas pelo senso comum e pelo conhecimento acumulado em todos os campos da ciência pertinentes ao tema, como biologia, medicina, psicologia, educação, neurociência e ciências sociais.

A ADIn pedia o reconhecimento de inconstitucionalidade do direito de ir e vir de crianças e adolescentes, pretendendo instituir prisões por perambulação ou para averiguação - tipificações abertas a todo tipo de abuso de poder policial. Segundo o ministro Gilmar Mendes, isso configuraria "implementação de uma política higienista que, em vez de reforçar a tutela dos direitos dos menores, restringiria ainda mais o nível de fruição de direitos, amontoando crianças em unidades institucionais sem qualquer cuidado ou preocupação com o bem-estar desses indivíduos". Algo que o ministro Alexandre de Moraes, citando o advogado Guilherme Amorim, que atuou como amicus curiae, deixou claro tratar-se de um desejo de instituir a criminalização da pobreza.

Em relação ao tratamento de atos infracionais, a ADIn do PSL requeria o fim dos cuidados especiais no tratamento de crianças e adolescentes, que incluem a condução dos processos com a participação dos conselhos tutelares e regimes diferenciados para crianças de até 12 anos de idade e para adolescentes entre 12 e 18 anos. Nos termos da ADIn, até uma criança menor de 12 anos seria tratada e encarcerada como um adulto.

Prioridade só no papel

As justificativas para essa devastação do sistema de proteção de crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade ou de conflito com a lei se referiam a um pretenso quadro de "licença para transgredir", que resultaria da aplicação do ECA. Visão sem lastro na realidade, que os impetrantes da ADIn, como ressaltou Alexandre de Moraes, nem ao menos tentaram embasar em evidências empíricas.

A visão "moral" expressa na ADIn é a de que, diante da realidade de crianças e adolescentes em situação de rua ou em conflito com a lei, carentes de proteção e amparo que a sociedade e o Estado devem lhes prover, a "solução", em vez de lhes dar acolhida e oportunidades, seria puni-los duramente. Verdadeira imoralidade, essa visão levaria a um desastroso fracasso na segurança pública, uma vez que reforçaria a reprodução do crime e da violência.

Conforme descreve o acordão, o ECA não é permissivo em relação a comportamentos que põem em risco a sociedade. O estatuto prevê medidas protetivas adequadas às diferentes infrações. Se em suas três décadas de vigência o ECA não produziu todos os benefícios almejados, isso se deve ao fato de que sua implementação tem sido parcial e precária. A realidade, reconhecida pelo STF, é que a sociedade e o Estado brasileiros estão longe de tratar crianças e adolescentes como prioridade, conforme exigem as leis do país.

De acordo com dados da PNAD usados em relatório da Unicef e citados no voto de Gilmar Mendes, em 2015 um total de 61% das meninas e meninos brasileiros viviam com privação de direitos como educação, informação, proteção contra o trabalho infantil, moradia, água e saneamento. Diante das tendências dos últimos anos, infelizmente não é de se esperar que esse quadro vergonhoso venha melhorando.

Hora de salvar o futuro

Semanas depois da publicação do acórdão, o STF tomou outra decisão importante em face do descumprimento amplo e sistemático dos direitos de crianças e adolescentes. Por decisão da sua 2ª turma, sob a relatoria do ministro Edson Fachin, o Supremo decidiu, novamente por unanimidade, que as unidades de internação para cumprimento de medidas socioeducativas não podem mais abrigar quantidades de meninos e meninas acima da capacidade de lotação. Passo importante para que o sistema de justiça seja instado a finalmente superar práticas punitivistas que sabotam e tornam ineficazes o espírito e os dispositivos da Constituição e das leis. Complementando a decisão, Fachin propôs a criação de um observatório judicial para monitorar o cumprimento das internações socioeducativas.

Para nos lembrar da realidade que hoje vivemos, poucos dias depois dessa decisão do STF, o presidente Jair Bolsonaro chamou de "bons tempos" a época em que a exploração do trabalho infantil não era ilegal no Brasil.

Momentos trevosos como o que estamos vivendo demandam resistência corajosa.

Que a defesa das crianças e adolescentes erguida pelo STF seja apoiada e implementada pelo restante do poder público e pela sociedade civil. A vida dos nossos mais jovens e vulneráveis está em jogo e, junto com ela, o direito de todos nós a um futuro melhor.

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t*Rubens Naves é advogado, conselheiro e ex-presidente da Fundação Abrinq pelos Direitos da Criança e do Adolescente. Sócio do escritório Rubens Naves Santos Jr. Advogados.

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