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Mediação uma abordagem interdisciplinar

Neste texto discutiremos o papel do mediador e a possibilidade dele atuar como um facilitador no processo de aprendizagem dos mediandos, no decorrer da mediação transformativa.

quarta-feira, 23 de setembro de 2020

Atualizado às 07:55

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Introdução 

O processo de mediação tem como objetivo, a princípio, a resolução de alguma disputa ou situação conflituosa. A resolução destes conflitos, está, em última análise, vinculada à obtenção de justiça para os envolvidos.   Este processo pode gerar ganhos que ultrapassam a solução do conflito inicial. O aprendizado que permeia todo este processo está presente não somente na situação trabalhada, mas, em situações futuras.

O aprendizado decorrente da situação de mediação é apontado por diversos autores, buscaremos aqui levantar algumas hipóteses teóricas que auxiliem explicar esta possibilidade de aprendizado, e abordaremos também alguns conceitos de justiça. Destacaremos alguns autores como Piaget e Vigotski que elaboraram teorias de aprendizagem, levando em conta tanto o indivíduo como sua interação social. Suas teorias divergem em muitos pontos, mas apontam, consensualmente, para o professor como mediador do processo de aprendizagem.     

Neste texto discutiremos o papel do mediador e a possibilidade dele atuar como um facilitador no processo de aprendizagem dos mediandos, no decorrer da mediação transformativa.

Breve história de mediação

A mediação pode ser observada em várias culturas milenares, encontramos exemplos de mediação nas culturas judaica, cristã, budista, chinesa, islâmica, hinduísta e outras (Moore, 1989)

Na tradição judaica, onde a justiça é estabelecida pelos tribunais rabínicos (Beit Din), há milhares de anos, encontramos várias referências à importância da busca do consenso a ser estabelecido entre as próprias partes do conflito. É considerada uma Mitzvá (preceito positivo) que um Juiz de um tribunal rabínico, primeiro ofereça a conciliação como forma de resolver a questão, por acordo e boa vontade das partes e não seja necessário que haja um julgamento.

A partir do final do século XIX já observamos um maior avanço da mediação, especialmente nos Estados Unidos, os imigrantes ajudaram a disseminar este instrumento já conhecido nas suas culturas, especialmente os imigrantes chineses, japoneses e judeus.  A mediação progrediu especialmente no âmbito trabalhista e no comercial, tanto na área privada quanto pública.

Modelos mais estruturados de mediação passaram a ser difundidos a partir do século XX, podemos constatar o avanço simultâneo na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos, seguidos de Canadá e França.

No Brasil, observamos uma grande influência dos modelos norte-americanos de mediação. É a partir da década de 1990 que ocorre uma maior implementação de políticas públicas voltadas à mediação e outros métodos alternativos de solução de conflitos.

Atualmente convivem várias linhas de mediação: facilitativa, avaliativa, transformativa e circular narrativa, entre outras. Nosso foco neste trabalho será a mediação transformativa.

Mediação transformativa

Nesta abordagem o conflito é identificado como uma possibilidade de crescimento moral e transformação, chegar a um acordo é uma possibilidade, mas não o principal objetivo. Este método trabalha com os interesses e necessidades das partes envolvidas e busca superar as posições cristalizadas geradas pelos conflitos.

Skinner define comportamento verbal como todo aquele mediado por outra pessoa, e assim inclui, no verbal, gestos, sinais e ritos e obviamente a linguagem. Assim podemos dizer que o homem ao falar transforma o outro e, por sua vez é transformado pelas consequências de sua fala. (Lane, P. 32)

O modelo transformativo elaborado por Robert A. Baruch Bush e Joseph Folger, aponta para a possibilidade de transformação tanto do indivíduo envolvido na disputa como da sociedade como um todo. O exercício da autodeterminação, inicia-se na escolha de se engajar, ou não, em uma disputa, e como fazê-lo, faculta a aquisição da competência em lidar com circunstâncias adversas de vários tipos, em inúmeras ocasiões e não somente do caso imediato, objeto da mediação. Os participantes adquirem um senso de auto respeito e confiança, isso tem sido chamado de dimensão do empoderamento do processo de mediação (Bush e Folger, 1994).

A possibilidade de transformação na relação faculta o reestabelecimento de laços afetivos possibilitando o acordo, mas também, e principalmente, a possibilidade de convivência.

O papel do mediador, neste modelo, preconiza uma atuação não diretiva na qual há a adoção de uma postura aberta e que busca instigar o questionamento e livre manifestação dos envolvidos. São utilizadas diversas técnicas, que incentivem e facilitem o diálogo entre as partes, para que elas mesmas possam construir suas decisões e refletir sobre elas.

O empoderamento das partes é fundamental para que elas possam chegar por si mesmas a uma solução. O conflito neste modelo é trabalhado de forma integral, abrangendo os aspectos psicológicos, emocionais, afetivos, financeiros e legais. Além disso, busca cuidar dos litigantes mais do que do acordo. Este cuidado, se inicia no acolhimento e passa por todas as fases do processo de mediação, possibilitando um ambiente seguro para todo o movimento que ocorrerá.

A conquista do empoderamento e do reconhecimento, objetivos da mediação transformativa, muitas vezes não pode ser identificada com tanta clareza quanto os objetivos da mediação que visa unicamente solucionar os conflitos. Busch e Folger apontam que os conceitos de empoderamento e reconhecimento precisam ser claramente definidos.

No que diz respeito a definição destes conceitos; o empoderamento é notado quando qualquer um dos envolvidos entende os seus objetivos e interesses como importantes. O empoderamento pode ser constatado também quando a parte entende o espectro possível de opções e a possibilidade e controle das escolhas que pode fazer, tem consciência das suas habilidades e recursos para tomada de decisões.

Bush e Folger, mencionam o reconhecimento como outro dos objetivos fundamentais da mediação transformativa, eles se referem ao reconhecimento dado ao outro, e não recebido. Este reconhecimento pode ocorrer através de palavras, pensamentos ou ações. Reconhecer o outro significa perceber a sua posição, seus sentimentos, suas ações. Não é necessário concordar com o ponto de vista do outro para reconhecê-lo, e esta aceitação não implica também, necessariamente, em uma reconciliação, sendo, porém, um passo nesta direção. (Bush e Folger. P.97).

Quando eu discuto e procuro sinceramente compreender outrem, comprometo-me não somente a não me contradizer, a não jogar com as palavras..., mas ainda me comprometo a entrar numa série indefinida de pontos de vista que não são os meus.  (Piaget, Vigotksi e Wallon. P.29).

A interdisciplinaridade na Mediação

A psicologia tem muito a contribuir para a evolução e compreensão da mediação, seus métodos e práticas. A psicologia social agrega a sua visão de homem e sua inserção no mundo, o estudo das dinâmicas dos grupos, estudo do desenvolvimento, a compreensão das dinâmicas familiares e dos grupos, entre outras contribuições possíveis.

Não optamos por nenhuma linha especifica da psicologia, abordamos aqui diversos autores que tratam do tema aprendizado e não pretendemos esgotar neste trabalho nenhuma das teorias apresentadas.

A psicologia social e as teorias de aprendizagem

Piaget e Vigotski desenvolveram teorias de aprendizagem, ambos enfatizam a importância das relações sociais para o crescimento do indivíduo.  A teoria Psicogenética de Piaget, explica o desenvolvimento da inteligência a partir da evolução biológica do indivíduo durante a qual ocorre o amadurecimento do sistema nervoso em interação com o ambiente social.

Piaget elaborou sua teoria de aprendizagem diretamente relacionada ao desenvolvimento da inteligência, este amadurecimento está intrinsecamente relacionado à maturação neurológica, interação social e estímulos. Sua teoria aponta diversas fases do desenvolvimento infantil e sua correlação com as possibilidades de aprendizagem de cada fase.

As interações sociais promovem o desenvolvimento da inteligência, a possibilidade e a qualidade destas relações evolui de acordo com o desenvolvimento individual, por exemplo; não encontramos a mesma possibilidade de interação social em uma criança pequena que encontramos em um adulto. Piaget aponta que esta troca intelectual, iniciada na primeira infância, vai sendo gradualmente ampliada e atinge um ótimo grau de socialização quando há um equilíbrio nas relações, um ser social de mais "alto nível" seria o que conseguiria relacionar-se de forma mais equilibrada com o meio e as outras pessoas.  

A socialização significa a possibilidade de o indivíduo trocar e compartilhar, efetivamente, significados e de submeter-se racionalmente às regras morais (Lindaci de Souza Scagnolato. A construção da afetividade para Jean Piaget -2009 Webartigos)

Para Piaget as relações sociais podem ser estabelecidas através de coação ou cooperação. Nas relações em que a coação predomina notamos que há o estabelecimento de uma relação onde a autoridade ou prestígio de um dos dois indivíduos leva o outro a aceitar o que é dito, sem que sejam necessários argumentos ou provas.  A fonte de onde surge informação, orientação ou diretiva é suficiente para sua credibilidade, por exemplo, um professor ou um pai, apresenta uma regra para uma criança e ele a aceita, sem que haja necessidade de qualquer questionamento (até uma certa fase). Este modelo de socialização, pode se perpetuar nas relações mesmo na fase adulta, nele não há um verdadeiro diálogo entre as partes, apenas a aceitação, é um tipo de relação empobrecedora, para os dois lados, pois o diálogo é restrito, não há questionamento.

Já as relações de cooperação, que surgem em outra fase do desenvolvimento infantil, levam ao diálogo e a discussão de pontos de vista diferentes, possibilitam a chegada a novos parâmetros, aquisição de novos pontos de vista. A criança quando ingressa nesta etapa busca generalizar este padrão para todas suas relações, passa a valorizar a igualdade e o respeito mútuo, exigindo de seus pares e praticando estes valores no seu cotidiano.

Os dois modelos propiciam o aprendizado, mas, o aprendizado advindo da coação é bem mais pobre pois limita-se a repetição do que foi imposto. Neste modelo de aprendizagem não é necessário o questionamento ou elaboração do que está sendo aprendido, e num outro momento este mesmo modelo (coação) será reproduzido, nas relações estabelecidas por este indivíduo. Por outro lado, o aprendizado estabelecido em relações de cooperação possibilita o desenvolvimento, pois há discussão e troca entre os indivíduos de uma forma equilibrada.

Estes modelos de relações se mantem nas relações entre adultos (coação e cooperação) sendo também evidenciadas em modelos sociais, autoritários ou democráticos.

O modelo de cooperação tem grande influência na obtenção da autonomia, as relações são simétricas, recíprocas, possibilitando o desenvolvimento intelectual e moral, onde é possível entender o ponto de vista do outro.

No que tange à moral, da cooperação derivam o respeito mútuo e a autonomia. (Piaget, Vigotski, Wallon. P.91/92).

O desenvolvimento da autonomia se dá de forma gradual, observamos primeiro uma fase de heteronímia na qual o indivíduo, ainda é dependente de um outro (pai/professor/responsável), ele não é responsável por suas escolhas e decisões. Este estágio evolui com o crescimento e aprendizagem para fase da autonomia onde pode refletir, escolher e elaborar julgamentos morais. 

Uma criança estabelece parâmetros e segue regras próprias à etapa de desenvolvimento em que sem encontra, sendo inicialmente dependente dos pais ou outra autoridade responsável, seus julgamentos seguem parâmetros externos.  Após atingir o desenvolvimento intelectual esperado, um adulto tem a capacidade de tomar as próprias decisões, há uma autonomia do pensamento, pode fazer julgamentos e elaborar conceitos, construindo inclusive a sua definição de justiça.

Henri Bergson considera que o conceito de justiça é um dos mais elaborados envolvendo vários outros conceitos como os de quantidade, igualdade, reciprocidade e compensação. Piaget também se dedicou a estudar o conceito de justiça, abordando temas como "justiça distributiva, imanente, justiça entre crianças, igualdade, autoridade, justiça coletiva" A busca pela justiça ocorre a cada momento e, muitas vezes, não estão claros os procedimentos precisos para que se alcance este objetivo.

O processo de desenvolvimento é mais amplo o que o processo de aprendizagem segundo K. Koffka e o os Gestaltistas  

O processo de aprendizado não pode ser reduzido simplesmente à formação de habilidades, mas, incorpora uma ordem intelectual que torna possível a transferência de princípios gerais descobertos durante a solução de uma tarefa para várias outras tarefas (Hilgard, P.93).

Conclusões - Mediação e aprendizagem

O processo de aprendizagem, assim como o desenvolvimento pessoal, está presente durante toda a vida, não sendo restrito aos primeiros anos de crescimento. Ao analisar os conceitos de aprendizagem apresentados sob a luz da prática e teoria da mediação, podemos observar as inúmeras possibilidades.

A interação entre o homem e o seu ambiente, a reação dialética entre suas ações e consequências, assim como as interações que acontecem no ambiente de mediação geram modificações nos sujeitos no momento da mediação e são também aprendidas para serem utilizadas em outras ocasiões, gerando novas formas de lidar com as questões e novas formas de pensar acerca destas mesmas questões. Há o aumento da autonomia e possibilita o estabelecimento de novas relações de cooperação.  

O aprendizado, que pode ser obtido através do modelo cooperativo e não coercitivo, é mais duradouro e é justamente o que observamos na mediação transformativa; as decisões advém dos próprios sujeitos que estão na situação conflituosa e não de um terceiro que ocupa o lugar de autoridade, moral ou detentor do conhecimento

Na mediação o processo dialético de escuta e fala, pode instigar os participantes a pensar sobre suas questões, elaborá-las e estabelecer novos patamares nas relações, atingindo o que Piaget aponta como um ser social de 'alto nível", que atua de forma equilibrada no seu ambiente e relações sociais.

A obtenção do empoderamento e reconhecimento, pelos sujeitos da mediação, objetivos fundamentais da mediação transformativa, é facilitada pelo mediador, o mediador desempenha papel fundamental neste processo de aprendizagem dos sujeitos da mediação. Ela é um instrumento, e através de suas técnicas, pode levar seus participantes a adquirir e elaborar conceitos e formas de estabelecer interações sociais positivas.

A prática da mediação, especialmente a mediação transformativa é um novo instrumento e enquanto tal possibilita a elaboração de novas formas de pensamento, que podem contribuir significativamente para o aprimoramento das relações sociais.

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Bush, Robert A. Baruch e Folger, Joseph P. The Promise of Mediation. Responding to Conflict Through Empowerment and Recognition. Jossey-Bass Publishers. San Francisco. 1994

Cole, M. Stiner, Vera, Scribner, Sylvia, Soubermen Ellen org. Vigostki, L, S. A formação social da mente. Martins Fontes. São Paulo. 2010

Faleck, Diego. Tartuce, Fernanda. Introdução histórica e modelos de mediação. Disponível em clique aqui da professora.

Hilgard, Ernest. Teorias de Aprendizagem. Ed. Da Universidade de São Paulo, São Paulo. 1972

Lane, Silvia T. M e Codo, Wanderley, org. Psicologia Social. O homem em movimento. Ed Brasiliense. São  Paulo. 1984

Prahas, Marcelo. Piaget Explica! Manual de solução de conflitos. Literare Books. 2019

Taille, Yves dela, Oliveira, Marta Kohl, Dantas Heloisa. Piaget, Vigotski, Wallon Teorias psicogenéticas em discussão. Summus Editorial, São Paulo. 2019 

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*Silvia Fernanda Rosenbaum é psicóloga, mediadora Certificada ICFML, mestre em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Integra a equipe do escritório Flavio Goldberg Advogados.

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