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O que mudou no procedimento do julgamento virtual no STF

As sessões por videoconferência vêm desempenhando papel importantíssimo nesta época de pandemia, que impôs o distanciamento social, com a suspensão do atendimento presencial nos órgãos do Poder Judiciário e restrições ao deslocamento das pessoas.

segunda-feira, 5 de outubro de 2020

Atualizado às 08:02

tImagem: Arte Migalhas

Primeiramente, não é demais destacar que o julgamento virtual não se confunde com o julgamento por videoconferência.

Os feitos, nas sessões virtuais, não são levados à mesa para julgamento em sessão pública. O procedimento é outro: o relator insere seu voto num sistema eletrônico. Na sequência, os demais integrantes do respectivo órgão julgador devem fazer o mesmo, num determinado prazo1, findo o qual, é, então, proclamado o resultado final.

Já as sessões telepresenciais, ou por videoconferência, são realizadas em tempo real, como se fossem sessões tradicionais, com a diferença de que os julgadores, membros do MP e advogados devem acessar o sistema de suas residências ou escritórios.2

As sessões por videoconferência vêm desempenhando papel importantíssimo nesta época de pandemia, que impôs o distanciamento social, com a suspensão do atendimento presencial nos órgãos do Poder Judiciário e restrições ao deslocamento das pessoas. O uso dessa ferramenta vem permitindo que os Tribunais, mesmo nesse contexto de emergência sanitária, continuem prestando a tutela jurisdicional.3

Mais especificamente quanto aos julgamentos virtuais, sua prática teve início no STF, com o procedimento instituído pela emenda regimental 21, de 30/4/07, para reconhecimento da repercussão geral, prevista no art. 102, § 3º da CF, segundo o qual "No recurso extraordinário, o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusa-lo pela manifestação de dois terços de seus membros". São, portanto, necessários 8 votos expressos, no mínimo, para inadmitir um recurso extraordinário por ausência desse requisito. Após lançado o voto do Relator, os demais ministros devem se manifestar no prazo de 20 dias4.

De acordo com a emenda regimental 21/07, decorrido o prazo sem manifestações suficientes, era de se reputar existente a repercussão geral. Note-se que, no que se refere ao reconhecimento da repercussão geral, a abstenção dos demais ministros em votar significava a existência de repercussão geral, ainda que o voto do relator tivesse sido pela inexistência.

A emenda regimental 54, de 1º/7/20, todavia, alterou alguns dispositivos do Regimento Interno do STF, relacionados à repercussão geral. Assim, por exemplo, somente será analisada a repercussão geral da questão se a maioria absoluta (6 ministros) reconhecerem a existência de matéria constitucional. A decisão da maioria absoluta dos ministros no sentido da natureza infraconstitucional da matéria terá os mesmos efeitos da ausência da repercussão geral, autorizando a negativa de seguimento aos recursos extraordinários sobrestados na origem que versem matéria idêntica (art. 324, § 2º do Regimento Interno).5 Além disso, com a recente alteração do Regimento Interno, o ministro que não se manifestar no prazo de 20 dias terá sua ausência registrada na ata de julgamento. Não alcançado o quórum necessário para o reconhecimento da natureza infraconstitucional da questão ou da existência ou não da repercussão geral, o julgamento será suspenso e automaticamente retomado na sessão por meio eletrônico seguinte, com a coleta da manifestação dos ausentes (art. 324, § 4º do Regimento Interno).

Por meio da emenda regimental 51, de 22/6/16, o julgamento virtual, que até então se limitava à análise da repercussão geral, estendeu-se, também, para os recursos internos do tribunal (agravo interno e embargos de declaração de declaração).

A resolução 642, de 14/6/19, ampliou, ainda mais, a abrangência do sistema virtual, para compreender o julgamento do mérito de recursos extraordinários e outras classes processuais, cuja matéria discutida seja objeto de jurisprudência dominante no âmbito do STF.

Com a edição da emenda regimental 53, de 18/3/20, e a resolução 669, de 19/3/20, operou-se mais uma ampliação, para abranger o julgamento do mérito de recursos extraordinários e outras classes processuais ainda que inexista jurisprudência dominante. O julgamento dar-se-á de maneira virtual a critério do relator ou do ministro vistor com a concordância do relator.6

A redação do art. 21-B do Regimento Interno do STF, após a referida emenda, passou a ser, então, a seguinte:

"Todos os processos de competência do Tribunal poderão, a critério do relator ou do ministro vistor com a concordância do relator, ser submetidos a julgamento em listas de processos em ambiente presencial ou eletrônico, observadas as respectivas competências das Turmas ou do Plenário.

§ 1º. Serão julgados preferencialmente em ambiente eletrônico os seguintes processos:

I. Agravos internos, agravos regimentais e embargos de declaração;

II. Medidas cautelares em ações de controle concentrado;

III. Referendo de medidas cautelares e de tutela provisórias;

IV. Demais classes processuais, inclusive recursos com repercussão geral reconhecida cuja matéria discutida tenha jurisprudência dominante no âmbito do STF.

(...)

§ 3º. No caso de pedido de destaque feito por qualquer ministro, o relator encaminhará o processo ao órgão colegiado competente para julgamento presencial, com publicação de nova pauta.

(...)".

Atualmente, portanto, parece-nos ser possível afirmar que o STF admite o julgamento virtual de qualquer classe processual: preferencialmente aquelas indicadas nos incisos do § 1º, do art. 21-B, do Regimento Interno, mas não exclusivamente. Tanto é assim que, aludindo "à crise aguda, sem qualquer previsão de o tribunal voltar às sessões presenciais", o min. Marco Aurélio, em caráter, segundo ele, excepcional, chamou a julgamento pelo sistema virtual vários Recursos Extraordinários, sem jurisprudência dominante ou súmula no STF. Destacam-se os REs 1.072.485, 700.922, 1.199.021 e 1.049.811, todos envolvendo matérias sensíveis.

As estatísticas revelam um salto mais que significativo na quantidade de decisões colegiadas proferidas, no período da pandemia, em julgamento virtual: se, em 2017, de 12.883 decisões colegiadas, apenas 50 tiveram origem no plenário virtual, atualmente só no período da quarentena7 somam 6.927!8

É importante salientar que, de início, conforme fazem ver Fabiano Carvalho, Rodrigo Barioni e demais subscritores de parecer apresentado pelo IASP9, o julgamento virtual apresentava-se como um julgamento secreto, interna corporis da causa, o que violava, a um só tempo, os princípios da publicidade e contraditório. A possibilidade de controle da atividade jurisdicional, pela sociedade em geral e pelos advogados, era muitíssimo mitigada. Ao advogado, por exemplo, não era possível intervir, nem tomar ciência dos votos dos ministros, mediante o acompanhamento eletrônico do julgamento.

O voto por omissão, em que a abstenção de um ministro era computada como adesão ao voto do relator (com a ressalva já feita em relação ao reconhecimento da repercussão geral), desafiava, por sua vez, o princípio da fundamentação.

Não se nega a relevância da utilização de recursos tecnológicos para aperfeiçoamento da prestação jurisdicional. Mas deve haver limites. A duração razoável do processo deve estar em sintonia com outros princípios, prestigiando-se, por exemplo, a garantia do contraditório, que compreende o diálogo entre as partes e juízes, e, também, destes entre si, nos julgamentos colegiados.10

Por isso, e certamente influenciado pelo intenso trabalho da OAB, paralelamente ao alargamento da abrangência dos julgamentos virtuais, o STF vem promovendo aprimoramentos nessa ferramenta, de modo a adequá-la ao princípio do devido processo legal.

Por meio da resolução 669, de 19/3/20, passou a ser admitida a sustentação oral por meio eletrônico. O respectivo arquivo, por áudio ou vídeo, deve ser encaminhado por meio do sistema de peticionamento eletrônico do STF, gerando protocolo de recebimento e registro no andamento do processo. Deve ser enviado até 48 horas antes do início do julgamento em ambiente virtual. Ou seja, para as sessões virtuais que começam a 0 hora de sextas-feiras, o arquivo deve ser enviado até 23h59 da terça-feira anterior. O arquivo será automaticamente disponibilizado aos ministros julgadores, no sistema de votação, e ficará acessível durante todo o período de julgamento.

Com a resolução 675, de 22/4/20, foi criado mecanismo que possibilitou aos advogados a obtenção, em tempo real, de informações online, e, portanto, acesso ao relatório e os votos inseridos no ambiente virtual. Os representantes das partes passaram, também, a poder realizar esclarecimentos sobre matéria de fato, por meio de peticionamento eletrônico, durante a sessão virtual, que serão automaticamente disponibilizados no sistema de votação dos ministros.

A votação é acompanhada em tempo real. Cada voto lançado aparece na página de acompanhamento processual. E há 4 opções de votos: os ministros podem acompanhar integralmente o relator; acompanhar com ressalva de entendimento; divergir; ou acompanhar a divergência.

Com a resolução 690, de 1/7/20, deixou de existir o voto por omissão. O ministro que não se pronunciar no prazo previsto em lei terá sua não participação registrada na ata de julgamento. Não alcançado o quórum de votação ou havendo empate, o julgamento será suspenso e incluído na sessão virtual subsequente, a fim de que sejam colhidos os votos dos ministros ausentes.11

Algumas garantias são mitigadas com os julgamentos virtuais? Sim. A restrição à sustentação oral é um exemplo. A falta de interação e de efetivo e transparente debate entre os julgadores, é outro. Além disso, os critérios para aferição dos feitos que deverão ir a julgamento virtual não são claros.

Mas a realidade é que o julgamento virtual é prática consolidada no STF, que se estendeu, ainda que com amplitude menor, ao STJ e demais Tribunais. É de se esperar que esses Tribunais, também, promovam as alterações necessárias para o aprimoramento da ferramenta, sem, contudo, ampliarem as hipóteses que se submetem ao julgamento nesse formato.

Não se pode perder de vista, por exemplo, que a interação entre os sujeitos processuais deve ser especialmente prestigiada nos juízos de 1º e 2º graus, porque é aí que as questões de fato são apuradas, colhendo-se e valorando-se as provas. Conforme já tivemos oportunidade de afirmar em outra oportunidade, em artigo publicado em Migalhas12, todas as garantias de que isso irá acontecer de forma a preservar o tratamento igualitário às partes, mediante efetivo contraditório, em que lhes sejam assegurados todos os meios legítimos para influenciar na construção da decisão judicial, devem ser observadas.

As ferramentas tecnológicas são bem-vindas e inquestionavelmente têm proporcionado maior agilidade na prestação da tutela jurisdicional. Sob esse ponto de vista, promovem a democratização da prestação da tutela jurisdicional e, sem sombra de dúvida, uma mudança de paradigma. Mas a busca do equilíbrio se impõe, porque o Direito se compõe de várias dimensões - normativa, social, política e filosófica - que não podem ser desprezadas, sob pena de se estar em face de uma pseudodemocratização, que, em verdade, acaba por distanciar o Judiciário dos jurisdicionados.

_________

1 Que, atualmente, no STF, por força da resolução 684, de 21/5/20, passou de 5 para 6 dias, salvo para análise da repercussão geral, em que o prazo é de 20 dias.

2 No STF, foi a resolução 672, de 26/3/20, que autorizou que as sessões de julgamento do Plenário e das Turmas pudessem passar a ser realizadas inteiramente por videoconferência.

3 No STF, conforme art. 1º da Res. 677 de 29/4/20, as sessões por videoconferência continuarão acontecendo até 31/1/21. No STJ, no último dia 27/8/20, foi editada a resolução 19/20, que prorrogou as sessões de videoconferência até 19/12/20 (art. 11, caput).

4 Os demais ministros se manifestarão quanto: I) a presença de questão constitucional; II) a existência de repercussão geral do tema constitucional; e III), se for o caso, a configuração de reafirmação da jurisprudência da corte.

5 No recente julgamento do RE 956.304 RG-ED, de relatoria do min. Dias Toffoli, j. 24/8/20, ficou consignado o seguinte: "Embargos de declaração na repercussão geral no recurso extraordinário. Tema 901 da repercussão geral. Momento da cessação do pagamento de abono de permanência. Processual. Deliberação do Plenário Virtual. Situação em que a maioria absoluta dos ministros votou pela ausência de questão constitucional. Consequências. Recurso aclaratório acolhido, com efeitos infringentes.

1. O reconhecimento da repercussão geral pelo Plenário Virtual não configura preclusão consumativa. O resultado da deliberação eletrônica não impede o posterior reexame dos requisitos de admissibilidade do recurso e dos efeitos do julgamento. Precedentes.

2. No Plenário Virtual, seis ministros votaram pelo caráter infraconstitucional da discussão relativa ao momento em que deve cessar o pagamento do abono de permanência - se do protocolo do pedido de aposentadoria ou do aperfeiçoamento do ato de jubilação -, mas, ainda assim, a repercussão geral foi admitida.

3. O quórum previsto no art. 102, § 3º, da Constituição Federal somente se aplica à rejeição do recurso por ausência de repercussão geral. A presença ou não de questão constitucional depende dos votos da maioria absoluta da Corte, isto é, seis votos. Concluindo-se que as questões postas repousam apenas na esfera da legalidade, há que se concluir que o Tribunal decidiu pela inexistência de questão constitucional e, por conseguinte, de repercussão geral, na medida em que essa pressupõe a existência daquela.

4. Na hipótese, a racionalidade do sistema e a vontade constitucional demandam a revisão do resultado proclamado, eis que, não havendo matéria constitucional e, por extensão, repercussão geral, não há sequer de se conhecer do recurso quanto a seu mérito.

5. Embargos de declaração acolhidos com efeitos infringentes para, reconhecendo-se o caráter infraconstitucional da controvérsia posta nos autos e, por conseguinte, a ausência de repercussão geral da matéria, não se conhecer do recurso extraordinário, nos termos do art. 543-A do CPC/1917 e do art. 1.035 do CPC/15. (.) 11. Portanto, em verdade o presente agravo em recurso extraordinário já não foi admitido, por não veicular a discussão de matéria constitucional. Desse modo, submeto ao Plenário a presente questão de ordem, para que se reconheça que o recurso extraordinário não foi admitido. 12. Ainda que assim não fosse, embora reconhecida a repercussão geral da matéria em exame no Plenário Virtual, nada impede nova deliberação dos membros da Corte quanto ao assunto, especialmente quando o reconhecimento da repercussão geral da matéria ocorreu por falta de manifestações suficientes para negar o recurso extraordinário".

6 Conforme prevê o art. 4º da resolução 642/19, com redação alterada pela resolução 669/20, "não serão julgados em ambiente virtual as listas ou os processos com pedido de destaque feito: (.) II - por qualquer das partes, desde que requerido até 48 (quarenta e oito) horas antes do início da sessão e deferido pelo relator;". O pedido pode se dar por petição simples, no prazo previsto na referida Resolução.

7 De 12/3/20 a 20/7/20.

8 Levantamento elaborado pela autora, com base nos dados estatísticos fornecidos pelo STF.

9 Fabiano Carvalho, Rodrigo Barioni, Pedro Dinamarco, Hélio Ribeiro Costa, António de Pádua Nogueira e Antonio Notariano Jr. são os integrantes da Comissão de Direito Processual Civil do Instituto dos Advogados de S. Paulo - IASP - que subscrevem o Parecer "sobre a criação dos julgamentos virtuais no âmbito do Tribunal de Justiça de S. Paulo".

10 A garantia do contraditório, segundo o posicionamento do STF, "envolve na~o so' o direito de manifestac¸a~o e o direito de informac¸a~o sobre o objeto do processo, mas tambe'm o direito de ver seus argumentos contemplados pelo o'rga~o julgador" (STF, RMS 24536/DF, 2.a T., j. 2/12/03, rel. min. Gilmar Mendes, DJ 5/3/04).

11 Há regra diversa para o empate no julgamento de habeas corpus e recurso de habeas corpus, hipótese em que prevalecerá a decisão mais favorável ao paciente.

12 "As audiências por videoconferência: haverá um 'novo normal' pós-pandemia?". Disponível clicando aqui.

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*Maria Lúcia Lins Conceição é doutora e mestra em Direito pela PUC/SP. Especialista em Didática de Ensino Superior pela PUC/PR. Membro da AASP - Associação dos Advogados de São Paulo. Advogada sócia do escritório Arruda Alvim, Aragão, Lins & Sato Advogados.

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