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Impactos das patentes de medicamentos na relação de consumo

A relação de consumo, tal como definida na lei 8.078/90, é aquela encetada entre o fornecedor e o consumidor.

terça-feira, 6 de outubro de 2020

Atualizado às 08:34

1 - Introdução

Neste texto, pretendemos fazer uma breve análise dos potenciais impactos que o tema relacionado às patentes de medicamentos provoca nas relações de consumo. De início, essa avaliação pode parecer um pouco improvável, na medida em que o consumidor, tal como definido em lei, não manifesta qualquer intervenção ou interação com esse privilégio temporário que é concedido aos titulares de direitos patentários. Todavia, quando avaliamos mais detidamente essas duas dimensões de relações jurídicas (propriedade industrial e consumo), podemos concluir que há uma séria e relevante influência recíproca, como adiante será indicado. A avaliação dessa interação de relações jurídicas é de suma importância para que se possa refletir sobre uma melhoria das políticas públicas direcionadas ao sistema de saúde em nosso país.

2 - Relação de consumo

A relação jurídica de consumo encontra-se alicerçada em nosso sistema jurídico, com sólidos fundamentos constitucionais e legais. A defesa do consumidor foi elevada, desde 1988, à categoria de princípio basilar da Ordem Econômica, como expressamente dispõe o art. 170, inciso V, de nossa Constituição Federal (CF).

Em decorrência dessa relevância, foi inserido o art. 48, no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que determina a elaboração, pelo Congresso Nacional, de um conjunto normativo que discipline a relação de consumo. Nesse artigo, o legislador constituinte já se preocupava em construir uma determinada codificação para regulamentar tais relações jurídicas.

Quase dois anos após a promulgação da Constituição de 1988, em 11 de setembro de 1990, foi editado o Código de Defesa do Consumidor, por meio da lei 8.078/90, devida e posteriormente regulamentado pelo decreto 2.181/97 e demais decretos e leis esparsas.

A relação de consumo, tal como definida na lei 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor, adiante também referido como CDC), é aquela encetada entre o fornecedor ("pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços" - art. 3º do CDC) e o consumidor ("pessoa física ou jurídica, que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final" - art. 2º do CDC).

O objeto da relação jurídica de consumo consiste no produto ("qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial" - art. 3º, § 1º, do CDC); e serviço ("qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista" - art. 3º, § 2º, do CDC).

Uma vez presentes os aspectos objetivos (produto e ou serviço) e subjetivos (consumidor e fornecedor) da relação jurídica, hão de ser respeitados não só os princípios de proteção ao consumidor, como também as demais normas protetivas.

Acrescente-se que os princípios informadores das normas disciplinadoras da relação de consumo podem ser encontrados no art. 4º, dentre os quais ressalta-se o respeito à dignidade e saúde do consumidor.1

A relação de consumo, tal como definida na lei 8.078/90, é aquela encetada entre o fornecedor e o consumidor.

O texto do CDC foi exaustivamente discutido pela nossa Corte Superior de Justiça, que tem, por definição constitucional, a missão de fornecer aos cidadãos a última palavra sobre a interpretação desse conjunto normativo, também definido como microssistema de proteção do consumidor.

Nesses últimos 30 anos de vigência do CDC, houve um amplo debate de temas que, com grande frequência, permearam as discussões em nossas cortes estaduais e federais, sendo levados ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) para solucionar as contradições e homogeneizar a interpretação da lei federal em questão. Atualmente, diversos temas já encontram um certo grau de pacificação na jurisprudência (a título de exemplo, podemos citar: definição de limites para caracterização de abusividade de cláusulas contratuais, limitações para cobranças em contratos diversos, inclusive imobiliários e bancários, distinção entre as categorias de vício e fato, na responsabilidade civil, forma de contagem de prazos prescricionais e decadenciais, definição dos limites para a proteção dos direitos coletivos e difusos, etc.).

De qualquer forma, também se mostrou, nos últimos anos, bastante efetiva a atuação do SupremoTribunal Federal (STF) em temas de relações de consumo, principalmente quando tratamos da discussão sobre a competência legislativa da União, concorrentemente com Estados e Distrito Federal.

A esse respeito, vale citar a ADI 750, de relatoria do ministro Gilmar Mendes, na qual ficou decidido que, quando houver predominância do interesse federal, os entes públicos subnacionais devem se abster de regulamentar a matéria, sob pena de invasão de competência.2

Por outro lado, quando o STF se deparou com discussão que envolvia relações de consumoe direito à saúde, tema também de interesse do presente texto, foi promovida a técnica de ponderação de valores, que mais adiante será comentada.3

Na aplicação e interpretação de princípios diversos de estatura constitucional, o STF leva em consideração a harmonização desses princípios, conforme anotado na obra Curso de Direito Constitucional, do ministro Gilmar Mendes.4 Essa ponderação de valores é de suma importância para entendermos a necessária compatibilidade dos direitos do consumidor aos direitos de propriedade intelectual, decorrentes da concessão de patentes de medicamentos.

3 - Medicamento e saúde

A produção e comercialização de medicamento está submetida às normas de Direito sanitário, especialmente às leis 5.991/73, 6.360/76, bem como à lei 9.782/99, além das normas regulamentadoras da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

Na lei 6.360/76, com suas posteriores alterações, são estabelecidas as definições a respeito dos medicamentos que podem ser produzidos e comercializados em nosso país: inovadores ou referência, similares e genéricos (art. 3º, incisos XX a XXII).

A existência do medicamento genérico é condicionada à expiração ou renúncia de proteção patentária.

Na definição do medicamento genérico, pode-se, desde já, constatar que a questão relacionada à propriedade industrial é identificada pelo legislador como fator componente dessa caracterização, ao descrever o medicamento genérico como sendo aquele que é semelhante a um "produto de referência ou inovador, que se pretende ser com este intercambiável, geralmente produzido após a expiração ou renúncia da proteção patentária ou de outros direitos de exclusividade, comprovada a sua eficácia, segurança e qualidade, e designado pela DCB ou, na sua ausência, pela DCI".

Ou seja, a existência do medicamento genérico é condicionada à expiração ou renúncia de proteção patentária. O surgimento do medicamento genérico, no final da década de 1990, veio trazer para o nosso país um conceito já consolidado em vários outros países, como EUA, Alemanha, França, etc.

A categoria do medicamento genérico, que constitui cópia do medicamento inovador, sem marca e submetido a exames de bioequivalência e biodisponibilidade, foi instituída para propiciar o maior acesso da população a tratamentos de saúde. Essa necessária garantia de acesso a medicamentos, por meio de políticas públicas, é reconhecida desde o início da vigência das normas que criaram os medicamentos genéricos, conforme bem identificado pelo ex-presidente da Anvisa, doutor Dirceu Raposo de Mello.5

Ainda na seara da regulamentação governamental sobre medicamentos, foi promulgada a lei 10.742, de 6/10/2003, que criou a Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED) e regulamentou o ajuste e determinação dos respectivos preços. A CMED é o órgão interministerial responsável pela regulação econômica do mercado de medicamentos no Brasil e a Anvisa exerce o papel de Secretaria Executiva da Câmara, fixando os preços máximos dos medicamentos. Para garantiado acesso da população aos medicamentos, os preços dos medicamentos genéricos são estabelecidos em patamar de redução de, no mínimo, 35% do preço do medicamento inovador.

Essa relevância do medicamento genérico é destacada com grande ênfase pela professora Patrícia Luciane de Carvalho, que reconhece o papel deste na facilitação do acesso da população amedicamentos.6

Ultrapassada essa questão regulatória e sanitária dos medicamentos genéricos, também possui repercussão a questão patentária, ou de propriedade industrial.

Ora, se a vigência da proteção patentária é essencial para que uma determinada molécula possa, ou não, ser utilizada em determinado medicamento, no caso o medicamento genérico, é preciso avaliar quais as características e alcance de tal proteção.

4 - Patente de medicamento

A proteção à patente é um direito fundamental, consagrado na CF, em seu art. 5º, inciso XXIX, queestabelece que "a lei assegurará aos autores de inventos industriais privilégio temporário para sua utilização, bem como proteção às criações industriais, à propriedade das marcas, aos nomes de empresas e a outros signos distintivos, tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País".

A lei 9.279/96 (Lei de Propriedade Industrial), para assegurar os direitos constitucionalmente garantidos aos detentores de patentes, promovendo a inovação, fixou o prazo regular de proteção no caput do art. 40, tendo estabelecido, em seu parágrafo único, o período mínimo de vigência do privilégio, para o fim de compensar o depositante na hipótese de haver demora no processamento e exame do pedido pelo Instituto Nacional de Propriedade Industrial (Inpi).7

No que se refere à patente de fármacos, ou medicamentos, após longo período em que nosso país não possuía qualquer proteção às patentes de medicamentos, foram inseridas disposições legais, na Lei de Propriedade Industrial, em 1996, para refletir as disposições constantes do Acordo sobre Aspectosdo Direito de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (Agreementon Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights - TRIPs).

Os arts. 230 a 232 da LPI expressamente estabelecem a proteção patentária para "substâncias, matérias ou produtos obtidos por meios ou processos químicos e as substâncias, matérias, misturas ou produtos alimentícios, químico-farmacêuticos e medicamentos de qualquer espécie, bem como os respectivos processos de obtenção ou modificação, mesmo que protegidos por patente de produto ou processo em outro país, de conformidade com tratado ou convenção em vigor no Brasil".

Diante da complexidade das patentes de medicamentos e da falta de estrutura do Estado para análisede tais pedidos de patente, o prazo de concessão de patentes de medicamentos foi sendo estendido poranos, chegando à média de 10 ou 11 anos.

O efeito prático dessa demora na análise e concessão, ou indeferimento, da patente foi a obtenção de maior tempo para a exclusividade de uso e comercialização de determinados fármacos.

A questão é relativamente simples: a Lei de Propriedade Industrial trouxe uma forma de compensação para o depositante de pedido de patente (art. 40, parágrafo único), segundo a qual, caso haja demora na análise e concessão da patente, o depositante terá direito a, no mínimo, dez anos de privilégio temporário.

Significa dizer que, mesmo que tenham decorrido mais de 20 anos do depósito de determinado pedido de patente de medicamento, haverá a garantia de proteção dessa exclusividade por mais dez anos.

Essa extensão do prazo de validade da patente impacta diretamente a consecução de políticas públicas da saúde, notadamente no que se refere à produção e comercialização de medicamentos genéricos.

Apresentadas as diversas questões que se relacionam com a produção e comercialização de medicamentos em nosso país, notadamente no que se refere ao medicamento genérico (regulação e propriedade industrial), devemos levar em conta, na interpretação das normas correspondentes, o vetor principiológico que informa as normas protetivas do consumidor.

5 - Conclusão

Os princípios que foram destacados, direta ou indiretamente, nesse texto - livre-iniciativa, proteção à inovação, dignidade e saúde do consumidor - reclamam a interpretação que os harmonize.

Nesse sentido, se de um lado mostra-se de grande relevância o incentivo à inovação, garantindo-se a proteção aos direitos temporários de exclusividade, de outro lado deve-se restringir qualquer tentativa de extensão de exercício da exclusividade em questão, para que seja propiciado o acesso do consumidor aos medicamentos que lhe propiciemos cuidados com a saúde, com a produção e comercialização de medicamentos genéricos, mantendo balizas da dignidade do ser humano.

Ademais, sob a ótica da análise econômica do Direito, disposição legal que, por exemplo, estipule uniformidade de prazo de duração de determinado monopólio, tal como ocorre com a disposição do parágrafo único do art. 40 da Lei de Propriedade Industrial, configura ineficiência odiosa, que deve ser corrigida em prol da função econômica e social da propriedade, conclusão essa que encontra eco em artigo de lavrado professor da Universidade Federal de Minas Gerais e doutor em Direito Fabiano Teodoro de Rezende Lara.As limitações e regras da relação jurídica de consumo são propícias e adequadas para a busca do equilíbrio e harmonização dos princípios e direitos já mencionados.

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1 "A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo [.]."
2 "Ementa: Ação Direta de Inconstitucionalidade. Repartição de competências. Lei 1.939, de 30 de dezembro de 2009, do Estado do Rio de Janeiro, que dispõe sobre a obrigatoriedade de informações nas embalagens dos produtos alimentícios comercializados no Estado do Rio de Janeiro. Alegação de ofensa aos artigos 22, VIII, e 24, V, da Constituição Federal. Ocorrência. Ausência de justificativa plausível que autorize restrições às embalagens de alimentos comercializados no Estado do Rio de Janeiro. Competência legislativa concorrente em direito do consumidor. Ausência.
Predominância de interesse federal a evitar limitações ao mercado interestadual. Ação julgada parcialmente procedente."
3 "RE 1249715 / SP - SÃO PAULO RECURSO EXTRAORDINÁRIO Relator(a): Min. GILMAR MENDES Julgamento: 3/6/2020 Partes RECTE.(S): SINDICATO DE RESTAURANTES, BARES E SIMILARES DE SÃO PAULO ADV.(A/S): CARLOS AUGUSTO PINTO DIASADV.(A/S): LUIZ COELHO PAMPLONA ADV.(A/S): EDUARDO HENRIQUE DE OLIVEIRA YOSHIKAWA RECDO. (A/S): ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO ESTADO DE SÃO PAULO ADV.(A/S): ALEXANDRE ISSA KIMURA RECDO.(A/S): PROCURADORA-GERAL DO ESTADO DE SÃO PAULO PROC.(A/S)(ES): PROCURADOR-GERAL DO ESTADO DE SÃO PAULO ÔÔ. Decisão: Trata-se de recurso extraordinário (eDOC 17) interposto contra acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, ementado nos seguintes termos: 'AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - Lei Estadual 16.796, de 14 de julhode 2018, que 'determina a todos os estabelecimentos comerciais no Estado que disponibilizem copos descartáveis de cor predominantemente azul, com a inscrição 'zero açúcar' visível, para utilização em máquinas de refrigerantes'. I. COMPETÊNCIA LEGISLATIVA DO ESTADO - Competência concorrente para legislar sobre consumo - Estado que apenas especificou a legislação federal, que já garante aos consumidores os direitos à vida, saúde e segurança e à informação - Precedente do E. STF -Atendimento ao princípio federativo (artigo 1º da Constituição do Estado de São Paulo - Legislação sobre matéria vinculada a consumo apenas suplementar, respeitadas as normas federais existentes.
II. INEXISTÊNCIA DE OFENSA AOS PRINCÍPIOS DA LIVRE-INICIATIVA E DA RAZOABILIDADE - Legislação estadual que tem por objeto específico ampliar a segurança e a informação prestadas ao consumidor - Obrigação imposta que atende às finalidades perseguidas pelo legislador - Eventuais impactos em contratos e parcerias entre fornecedores e distribuidores de bebidas que deverão ser ajustados nos termos da nova lei - Prevalência do direito à liberdade de escolha do consumidor e do princípio da dignidade da pessoa humana sobre o princípio da livre-iniciativa. Inocorrência de inconstitucionalidade. Ação julgada improcedente, revogada a liminar concedida. Agravo internoprejudicado.' (eDOC 13, p. 2-3) O Sindicato dos Restaurantes, Bares e similares de São Paulo - SindResBar/SP interpôs recurso extraordinário com fundamento no art. 102, III, a, da Constituição Federal, suscitando violação ao art. 22, XXIX, art. 170, caput, e art.196 do texto constitucional. Nas razões recursais, o recorrente sustenta que a Lei do Estado de São Paulo 16.796/2018 invade acompetência da União ao legislar sobre propaganda comercial.
Nesse ponto, argumenta o seguinte: '18. Segundo o acórdão recorrido, não houve invasão de competência de privativa da União, porque a lei em questão trataria de matéria relativa a consumo, albergada no art. 24, V, da CF, e não relativa a propaganda comercial.
19. Tal interpretação estaria correta se a lei tivesse se limitado a determinar o fornecimento de refrigerantes 'zero açúcar' em copos diferentes dos utilizados para o fornecimento de refrigerante sem açúcar. 20. A lei paulista, porém, foi além, não apenas determinando o fornecimento de um copo especial para os refrigerantes sem açúcar, como criando para tais produtos uma identidade visual, ao estabelecer, de forma impositiva e sem margem para adaptações, que os copos deveriam ter uma cor predeterminada e escolhendo que essa cor deveria ser o azul. 21. Veja-se, Exa., na linha do quanto alegado nos embargos de declaração, que a determinação da utilização de copos de cores distintas para os refrigerantes 'com' e 'sem' açúcar, deixando-se a critério do estabelecimento definir quais seriam elas (v.g., preto x branco; vermelho x amarelo etc.), já seria por si só suficiente para atender ao propósito legislativo. 22. O legislador, contudo, foi além do que seria necessário e decidiu, de forma impositiva, qual seria a cor a ser adotada (= azul), providência que desborda da competência para legislar sobre consumo e invade a competência para legislar sobre propaganda comercial, pois as cores de produtos e serviçosi ntegram a sua identidade visual. 23. Em matéria de refrigerantes, por exemplo, é público e notório que duas das maiores marcas são identificadas pelas cores vermelha (Coca-Cola) e azul (Pepsi), de tal forma que obrigar estabelecimentos comerciais a usar uma delas quando estes comercializam produtos da outra (concorrente!) é providência que ultrapassa o mero interesse do consumidor, para influir na identificação dos produtos e na sua divulgação pelos estabelecimentos, invadindo a seara da propaganda comercial. 24. De rigor, portanto, o reconhecimento da inconstitucionalidade formal da lei, por violação do art. 22, XXIX, da CF.' (eDOC 17, p. 9-10) Aduz que a legislação municipal também ofende o princípio da livre-iniciativa ao 'determinar que estabelecimentos comerciais forneçam um tipo de copo especial para refrigerantes sem açúcar' (eDOC 17, p. 11). Intimadas, as partes reclamadas apresentam contrarrazões, manifestando-se pela constitucionalidade da norma estadual ante (i) a competência concorrente para legislar sobre proteção ao consumidor e à saúde (art. 24, V e XII, do texto constitucional); (ii) a inexistência de afronta ao princípio da livre-iniciativa por se tratar de norma sem caráter absoluto; e (iii) a razoabilidade e a adequação do ato para atingir os fins a que se propõe (eDOCs 22 e 24). A Procuradoria-Geral da República manifesta-se em parecer assimementado: 'PROCESSUAL CIVIL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI ESTADUAL Nº 16.796/2018. COMPETÊNCIA CONCORRENTE DO ESTADO PARA LEGISLAR SOBRE CONSUMO. PREVALÊNCIA DO DIREITO À LIBERDADE DE ESCOLHA DO CONSUMIDOR E DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA SOBRE O PRINCÍPIO DA LIVRE-INICIATIVA. AUSÊNCIA DE OFENSA AO PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE. FUNDAMENTOS DO ACÓRDÃO NÃO ATACADOS. NÃO OBSERVADO O PRINCÍPIO DA DIALETICIDADE. SÚMULA 283/STF. PARECER PELO NÃO CONHECIMENTO DORECURSO EXTRAORDINÁRIO.' (eDOC 35, p. 1) É o relatório. Decido. Assiste razão ao recorrente. A irresignação impugna oacórdão do Tribunal local que reputou constitucional a Lei do Estado de São Paulo 16.796/2018, conhecida como Lei do CopoAzul, em Ação Direta de Inconstitucionalidade de âmbito estadual. Eis o inteiro teor da norma contestada: 'LEI Nº 16.796, DE 13 DE JULHO DE 2018 Determina a todos os estabelecimentos comerciais no Estado que disponibilizem copos descartáveis de cor predominantemente azul, com a inscrição 'zero açúcar' visível, para utilização em máquinas de refrigerantes. Artigo 1º - Todos os estabelecimentos comerciais no Estado devem disponibilizar copos descartáveis de cor predominantemente azul, com a inscrição 'zero açúcar' visível, para utilização em máquinas de refrigerantes. Parágrafo único - Os estabelecimentos de que trata o caput ficam obrigados a manter o uso de sinalização na tampa do copo com a marcação de produto zero açúcar. Artigo 2º - Os copos referidos no artigo 1º só podem ser utilizados para refrigerantes com zero açúcar, ficando vedada utilização diversa. Parágrafo único - Fica vedado o uso do respectivo copo em sucos naturais ou artificiais. Artigo 3º - Os estabelecimentos devem garantir ao menos 10% (dez por cento) da quantidade habitual dos copos utilizados para a finalidade de que trata esta lei. Artigo 4º - Fica estabelecida multa de 100 (cem) Unidades Fiscais do Estado de São Paulo (Ufesps) em caso de descumprimento da presente lei. Artigo 5º - Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.' (eDOC 5, p. 19) Relembro que, no julgamento da ADI estadual,  o parâmetro para a averiguação de constitucionalidade da norma é a Constituição do Estado de São Paulo, na qual também se fazem garantidas a proteção à saúde, a defesa ao consumidor e o princípio da livre-iniciativa. Em jurisdição extraordinária, a insurgência recursal, que toma como parâmetro a Constituição Federal - cujo zelo e proteção incumbem a esta Suprema Corte -, rodeia a usurpação de competência legiferante privativa da União e o conflito aparente entre regras e princípios constitucionais. Em primeiro lugar, afasto o argumento de inconstitucionalidade no que tange à incompetência da Assembleia Legislativa de São Paulo para editar norma de tal conteúdo (art. 22, XXIX, do texto constitucional). Entendo que a norma estadual não versa sobre propaganda comercial - matéria destinada à atuação legiferante privativa da União -, pois não dispõe sobre as formas pelas quais os copos descartáveis devem ser anunciados ao mercado consumidor.
Trata-se de questão correlata, porém distinta. Ao determinar que os estabelecimentos comerciais disponibilizem copos descartáveis de cor predominantemente azul, com a inscrição 'zero açúcar' visível, para utilização em máquinas de refrigerantes, a norma visa regulamentar, no âmbito estadual, aspecto sensível que diz respeito à proteção da saúde e do consumidor, o que é devidamente autorizado pelo art. 24, V e XII, da Constituição Federal. O texto constitucional, inclusive, discrimina as matérias próprias de cada ente federativo e, a partir disso, procede à centralização de poder, ora na própria Federação, ora nos Estados-membros, a depender da apuração do princípio geral que norteia a repartição de competência entre as entidades componentes do Estado Federal, qual seja a predominância do interesse. A partir da verificação da predominância do interesse é que se determinam à União aquelas matérias e questões de predominância do interesse geral, ao passo que aos Estados são reservadas as matérias de predominante interesse regional e, por fim, aos municípios os assuntos de interesse local. Na espécie, foi identificada pela Casa Legislativa estadual a necessidade de regulamentação da matéria, em especial para a proteção de consumidores diabéticos, para melhor identificarem os produtos que podem consumir. Esse ônus informativo dos estabelecimentos decorre, inclusive, da legislação federal (Código de Defesa do Consumidor), de modo que a norma estadual especifica o tratamento da matéria para a regionalidade. Reconheço, portanto, que o Estado é competente para legislar sobre proteção ao consumidor e saúde, concorrentemente, com a União, no limite de seu interesse local e desde que tal regramento seja harmônico com a disciplina estabelecida pelos demais entes federados. Em relação ao argumentode afronta à livre-iniciativa, no entanto, entendo que o pleito recursal merece provimento. É cediço que o princípio constitucional mencionado não é dotado de caráter absoluto, sendo as suas balizas, inclusive, especificadas na própria Constituição Federal. Desse modo, a atuação legislativa que resulta na intervenção em atividades econômicas, através de medidas diretas ou indiretas, precisa pautar-se na razoabilidade e na proporcionalidade, a evitar que a norma constitucional esvazie o seu objeto. A esse propósito, Lúcia Valle Figueiredo alerta que 'As balizas da intervenção serão, sempre e sempre, ditadas pela principiologia constitucional, pela declaração expressa dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, dentre eles a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre-iniciativa' (DIÓGENES GASPARINI, in Curso de Direito Administrativo, 8ª edição, Ed. Saraiva, p. 64). Em exame de proporcionalidade da norma legal, é preciso conferir se a limitação da livre-iniciativa impacta o maior grau de realização dos outros preceitos constitucionais. Robert Alexy, nesse sentido, explica que 'quanto mais intensa se revelar a intervenção em um dado direito fundamental, mais significativos ou relevantes hão de ser os fundamentos justificadores dessa intervenção'(ROBERT ALEXY. Kollision und Abwägung, in Mendes, Gilmar Ferreira. Branco, Paulo Gonet. Curso de direito constitucional.
15. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020, p. 171). Pois bem. Dos autos em análise, verifico que as finalidades pretendidas pela norma impugnada, no que tange à ampliação da segurança e da informação prestadas ao consumidor, não legitimam a profunda limitação à livre-iniciativa, vez que tal objetivo pode ser realizado por outras vias menos restritivas ao direito constitucional do recorrente.
A coerção legislativa, nesse caso, acaba por ultrapassar os limites imanentes da realização da norma constitucional.
Nesse ínterim, destaco que a jurisprudência desta Suprema Corte vem sendo reafirmada em torno da utilização do princípio da proporcionalidade em casos envolvendo a colisão entre preceitos constitucionais e livre-iniciativa econômica (RE 632644AgR, Rel. Min. Luiz Fux, DJe 10.05.2012; RE 422941, Rel. Min. Carlos Velloso, DJe 24.03.2006; ADPF 101, Rel. Min. CármenLúcia, DJe 04.06.2012; ADI 3.540-MC, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 03.02.2006). Ante o exposto, dou provimento ao recurso extraordinário para declarar a inconstitucionalidade da Lei nº 16.796/2018, do Estado de São Paulo, ante a ofensa ao princípio constitucional da livre-iniciativa. Publique-se. Brasília, 03 de junho de 2020. Ministro Gilmar Mendes Relator."
4 "Intimamente ligado ao princípio da unidade da Constituição, que nele se concretiza, o princípio da harmonização ou da concordância prática consiste, essencialmente, numa recomendação para que o aplicador das normas constitucionais, em se deparando com situações de concorrência entre bens constitucionalmente protegidos, adote a solução que otimize a realização de todos eles, mas ao mesmo tempo não acarrete a negação de nenhum" (MENDES; COELHO; BRANCO, 2008, p. 114).
5 "Visando alcançar tais objetivos, o país consolidou, a partir da década de 1990, marcos importantes na política de saúde no que se refere ao acesso a medicamentos. Dentre estas se destacam: a formulação de políticas farmacêuticas nacionais, englobando melhorias do arcabouço regulatório; a garantia de acesso aos medicamentos essenciais; a implementação de uma políticade medicamentos genéricos; e a promoção do uso racional de medicamentos. [.] Nesse sentido, então, as políticas públicas queenvolvem a alocação de recursos em saúde, de maneira geral, e de medicamentos, em particular, são colocadas frente a frente comas restrições ao acesso decorrentes do custo a determinadas tecnologias e produtos" (RAPOSO DE MELLO, 2007, p. 19, grifo nosso).
6 "A OMS, normalmente, vincula o uso dos genéricos aos medicamentos essenciais; os países, no mínimo, devem promover a fabricação dos medicamentos que são essenciais, no sentido de que o acesso seria facilitado em decorrência da redução dospreços. Contudo, essa espécie de medicamento pode atender a toda e qualquer necessidade e classe social. Outro dado sobreo qual a OMS trabalha é a constatação, nos países da América Latina, de que 30% (trinta por cento) dos gastos em saúde são para aquisição de medicamentos" (CARVALHO, 2007, p. 181).
7 "Art. 40 - A patente de invenção vigorará pelo prazo de 20 (vinte) anos e a de modelo de utilidade pelo prazo de 15 (quinze) anos contados da data de depósito. Parágrafo único - O prazo de vigência não será inferior a 10 (dez) anos para a patente de invenção e a 7 (sete) anos para a patente de modelo de utilidade, a contar da data de concessão, ressalvada a hipótese de o INPI estar impedido de proceder ao exame de mérito do pedido, por pendência judicial comprovada ou por motivo de força maior."
8 "Pode-se concluir que as normas postas para a concessão das patentes têm evidente sentido de eficiência econômica. De uma forma geral, essas normas são capazes de estabelecer, com eficiência, institutos que funcionam como mecanismos de estímulo ao desenvolvimento de novas tecnologias, que, por sua vez, são elementos importantíssimos do desenvolvimento econômico.
No entanto, são ineficientes e devem ser objeto de preocupação das políticas públicas institucionais econômicas as normas de uniformidade dos prazos de duração, bem como as de limitação da publicidade após o depósito" (LARA, 2012, p. 371).

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O artigo foi publicado na Revista do Advogado, da AASP, ano 2020, nº 147, de setembro de 2020.

 

 

 

 

 

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 *Arystóbulo de Oliveira Freitas é advogado do escritório Arystóbulo Freitas Advogados. Pós-graduando em Direitos Difusos e Coletivos pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Ex-presidente da AASP - Associação dos Advogados de São Paulo. Ex-conselheiro da Ordem dos Advogados do Brasil, Secção São Paulo.  Membro do corpo de árbitros da Fiesp e da BBM. Integrante do Comitê Brasileiro de Arbitragem (CBar).

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