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Redação, interpretação e integração de contratos e de outros negócios jurídicos após a lei da liberdade econômica

Como identificar as regras de um negócio jurídico?

terça-feira, 10 de novembro de 2020

Atualizado às 15:49

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Ementa

1. O texto cuida de como identificar as regras de um contrato ou de um outro negócio jurídico e, para tanto, esmiúça as regras legais e voluntárias de interpretação e integração contratuais e negociais. Não basta a mera leitura do instrumento para esquadrinhá-lo (capítulo 1).

2. Embora o ideal seja que o instrumento contratual ou negocial seja o mais completo possível, a racionalidade limitada não permitirá que o redator esgote a infinitude de casos concretos que potencialmente podem vir a surgir, razão por que é fundamental dominar as regras legais e voluntárias de intepretação e integração contratuais e negociais (capítulo 2).

3. Interpretação contratual ou negocial é extrair um sentido possível do texto do instrumento (capítulo 3).

3.1. As regras legais de interpretação estão no § 1º do art. 113 em conjunto com o art. 112 do CC e são estas: (1) regra do contra proferentem; (2) regra da vontade presumível; (3) regra da confirmação posterior; (4) regra da boa-fé e dos costumes; (5) regra da primazia da intenção.

3.2. As regras voluntárias de interpretação podem afastar as legais, podem enfatizar qualquer delas ou podem ser uma inovação fruto da criatividade das partes.

4. Integração contratual ou negocial é preencher lacunas do texto do instrumento (capítulo 4).

4.1. As regras legais de integração são estas: (1) aplicação das normas dispositivas ou cogentes; ou, à sua falta, (2) aplicação, por analogia e com adaptações, tanto dos meios de integração legal previstos no art. 4º da LINDB quanto das regras legais de interpretação.

4.2. As regras voluntárias de integração prevalecem sobre as regras legais e decorrem da criatividade das partes.

5. As normas cogentes servem para suprir lacunas contratuais (integração contratual) ou para gerar a nulidade daquelas cláusulas que a contrariarem (invalidação) (capítulos 2 e 4).

6. Apesar de as regras acima terem sido explicitadas com a Lei da Liberdade Econômica, elas já tinham suporte no ordenamento jurídico anteriormente. A nova lei apenas positivou e deu maior didatismo ao assunto (capítulos 3 e 4).

1 - Introdução

Este artigo foca aspectos essenciais a serem observados por quem lida com redação ou leitura de contratos. Trata do tema à luz das mudanças feitas pela Lei da Liberdade Econômica (lei 13.874/2019), que inseriu regras de interpretação e de integração de contratos no Código Civil1.

O objetivo é expor como se identificarem todas as regras de um contrato (visto que várias regras podem não estar escritas no instrumento do contrato) e sistematizar os critérios legais e voluntários de interpretação e de integração contratuais.

As regras de um contrato e dos demais negócios jurídicos decorrem não apenas da interpretação das palavras com as quais as partes manifestaram sua vontade, mas também do preenchimento das lacunas (= integração) deixadas pelas partes diante dos inúmeros problemas concretos que podem surgir bem como da observâncias das normas de ordem pública (normas cogentes).

Trataremos, assim, de como deve ser feita a redação de um contrato e dos demais negócios jurídicos, bem como das regras de interpretação e de integração contratuais e negociais, tudo com o objetivo de demonstrar o caminho para identificar todas as regras de um contrato ou de um negócio jurídico.

Embora este texto foque os contratos, é certo que tudo quanto for exposto se estende também à redação de outros negócios jurídicos, como o testamento, com as adaptações que eventualmente forem reclamadas pelo regime jurídico específico.

2 - Como redigir contratos e outros negócios jurídicos?

Os negócios jurídicos envolvem atos por meio do quais os sujeitos, com sua própria vontade, modelam os efeitos jurídicos a serem produzidos. O testador determina como e sob quais condições se transmitirá a deixa testamentária. As partes de um contrato estabelecem as condições da negociação. Enfim, o sujeito que pratica o negócio jurídico é senhor dos efeitos a serem produzidos.

Daí se segue que cabe ao sujeito ter muita cautela no momento da formalização do negócio jurídico para deixar bem claros os efeitos que serão produzidos. Cabe-lhe delinear todas as regras do contrato com a lembrança de que há normas cogentes, normas dispositivas e métodos de interpretação e de integração que precisam ser levados em conta além da mera formalização da manifestação da vontade.

Passamos a expor cautelas a serem tomadas pelos sujeitos, focando o negócio jurídico mais recorrente no quotidiano: os contratos escritos. Tudo, porém, que for dito sobre os contratos escritos se estende aos demais negócios jurídicos formalizados por escrito e aos negócios verbais (com o detalhe de que a forma verbal é mais insegura diante da dificuldade de comprovar o que foi combinado2).

É um equívoco iludir-se que a simples leitura de um instrumento contratual é suficiente para tomar ciência de todas as regras de um contrato. Os contratos (assim como os demais negócios jurídicos) não se resumem ao que está escrito no instrumento, seja porque seria humanamente impossível que as partes lograssem ter um exercício de futurologia divino que regulasse todas as infinitas variações do casuísmo no futuro3, seja porque há normas do ordenamento que suprem as lacunas do contrato (normas supletivas, também chamadas de normas dispositivas ou não cogentes), seja em virtude de haver silêncios do contrato para os quais sequer existem normas dispositivas, seja em razão de haver normas que sequer admitem pacto em contrário por serem de ordem pública (normas cogentes).

Assim, a identificação das regras de um contrato não se extrai apenas da leitura do instrumento contratual, mas também do manejo adequado das técnicas de interpretação e integração contratuais.

Isso, porém, não quer dizer que a liberdade contratual e a autonomia da vontade estejam atrofiadas no ordenamento jurídico. Isso porque, em regra, prevalece tudo quanto está textualmente pactuado no contrato, respeitadas as normas de ordem pública. Por exemplo, se um contrato contém uma cláusula de aplicação de pena de morte à parte inadimplente, essa cláusula é nula por violar norma de ordem pública (arts. 166, II, CC), mas as demais cláusulas, se separáveis à luz do art. 184 do CC, são válidas por respeitarem essas normas cogentes.

O recomendável é que o instrumento contratual seja o mais completo possível, regulando o máximo de variações casuísticas futuras, o que exige do profissional redator do contrato grande criatividade no exercício de futurologia e muita experiência na prática contratual. Contudo, a humanidade do redator, que inexoravelmente o sujeita a uma racionalidade limitada, nunca lhe permitirá rastrear a infinitude de casos concretos que potencialmente podem surgir no futuro.

Apesar do esforço do redator do contrato, a efetiva identificação do contrato só ocorrerá posteriormente por meio da sua interpretação ou, no caso de haver algum silêncio do instrumento contratual (lacunas), por meio dos critérios de integração contratual.

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1- Para uma visão detalhada das mudanças feitas pela Lei da Liberdade Econômica, com inclusão das regras de integração e interpretação de contratos, reportamos a texto nosso intitulado "Lei da Liberdade Econômica: diretrizes interpretativas da nova Lei e Análise detalhada das mudanças no Direito Civil e no Registros Públicos" (Disponível em aqui. Elaborado em 21 de setembro de 2019).

2- Os romanos eram cirúrgicos: "as palavras voam; a escrita fica" (verba volant, scripta manent").

3- Costuma-se dizer que os contratos sempre são incompletos ou imperfeitos, pois é impossível eles preverem todas as infinitas variáveis casuísticas do futuro. Sobre as várias espécies de incompletude do contrato e sobre cautelas a serem tomadas pelo ordenamento para o preenchimento dessas lacunas, reportamo-nos a excelente artigo da Ceará Uina Caminha (doutora pela Universidade de São Paulo) e Juliana Cardoso Lima (mestre pela Universidade de Fortaleza), intitulado "Contrato incompleto: uma perspectiva entre direito e economia para contratos de longo termo" (CAMINHA, Uinie; LIMA, Juliana Cardoso. Contrato incompleto: uma perspectiva entre direito e economia para contratos de longo. In: Revista Direito GV, vol. 10, n. 1, São Paulo, Jan./junho, 2014. Disponível em: aqui. Publicado em 2014).

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*Carlos E. Elias de Oliveira é consultor Legislativo do Senado Federal, Advogado, Professor e Doutorando, mestre e bacharel em Direito na UnB.

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