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Estupro: atrocidade do judiciário

Afrouxar o que diz a lei é um retrocesso na proteção que o direito penal impõe aos vulneráveis, portanto, deve ser combatida pela sociedade.

quinta-feira, 12 de novembro de 2020

Atualizado às 13:14

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Em 28/10/2020 o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, através da 12ª Câmara de Direito Criminal, proferiu julgamento num caso de condenação por estupro o seguinte entendimento: "Quando não há penetração, o ato libidinoso cometido contra menor de 14 anos não é considerado estupro de vulnerável, mas importunação sexual." Toda comunidade jurídica ficou pavorosa diante dessa decisão teratológica que fragiliza a proteção que o direito penal deve oferecer às pessoas, e, em especial aos vulneráveis.

No caso descrito acima, o estuprador foi condenado em primeira instância a 18 anos de prisão depois de molestar sexualmente sua sobrinha de oito anos de idade. Em sede de apelação o TJ/SP reformou a sentença, minorando a condenação para um ano e quatro meses, em regime aberto. A pena foi substituída por prestação de serviços à comunidade. Para a Corte Estadual Paulista, a conduta descrita se enquadrou melhor no crime de importunação sexual, já que não houve conjunção carnal, ou seja, penetração.

Em seu voto, o desembargador João Morenghi, relator do recurso, aduziu: "Parece claro que, ao aludir a outros atos libidinosos alternativamente à conjunção carnal, o legislador não visou qualquer conduta movida pela concupiscência, mas apenas aquelas equiparáveis ao sexo vaginal. E os atos praticados pelo apelante - fazer a vítima se sentar em seu colo e movimentá-la para cima a fim de se esfregar nela e apertar os seus seios - por óbvio, não possuem tal gravidade". O togado, explica ainda, que o comportamento do acusado "se insere entre a contravenção (prevista no artigo 61 da lei 3.688/41) e o estupro, melhor se amoldando ao artigo 215-A do Código Penal, que tipifica a importunação sexual. Irrelevante que se trate de ofendida menor de 14 anos, a indicar violência presumida. À míngua de determinação legal em sentido contrário, nada obsta que pessoas nessa faixa etária sejam vítimas do crime identificado (no artigo 215-A do CP)", conclui a decisão.

O absurdo dessa decisão abala a imagem do Poder Judiciário, pois seguindo este raciocínio, para configurar estupro de uma criança ou de um deficiente mental se torna necessário a penetração. O próprio tipo penal descrito no artigo 217-A do CP fala em "Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos", assim, para a configuração deste crime o legislador exigiu apenas, a simples existência da ação libidinosa (beijo, toque ou apalpamento, por exemplo).

Se acontece esse tipo de atrocidade com uma criança, imaginem alguém enfermo, portador de retardo ou insuficiência mental, que não possuem o necessário e indispensável discernimento, nem tampouco capacidade de distinguir e conhecer o que se passa na prática do ato, ou alguém que, por outra causa, motivo ou razão não consegue oferecer resistência, será que vai conseguir se opor a alguma conduta lascívia de alguém? Com isso, surge a proteção estatal contidas nas figuras previstas no caput e no § 1.º, do art. 217-A do Código Penal, na qual há uma presunção absoluta instituída pela lei penal.

A respeito do caso, jurisprudência do STJ é pacífica neste sentido, vejamos as mais recentes: "Em razão do princípio da especialidade, é descabida a desclassificação do crime de estupro de vulnerável (art. 217-A do Código Penal - CP) para o crime de importunação sexual (art. 215-A do CP), uma vez que este é praticado sem violência ou grave ameaça, e aquele traz ínsito ao seu tipo penal a presunção absoluta de violência ou de grave ameaça. Habeas Corpus 568088/SP, julgado em 18/02/20." Ainda, "O delito de estupro de vulnerável (art. 217-A do CP) se consuma com a prática de qualquer ato de libidinagem ofensivo à dignidade sexual da vítima. AgRg no AREsp 1627379/CE, julgado em 19/05/2020." O Supremo Tribunal Federal também decidiu no Habeas Corpus 134591/SP, julgado em 27/04/2020 que existe a "impossibilidade de alterar a condenação por estupro de vulnerável pela condenação por importunação sexual."

O que muitos não sabem é que, se houver conjunção carnal com pessoa maior de 14 e menor de 18 anos de idade, pode ensejar autuação por corrupção de menores, mesmo que haja consentimento. Nesse diapasão, a decisão do TJ/SP abriu um precedente perigoso à proteção da criança, do enfermo e do deficiente mental, sendo assim, deve ser urgentemente eliminada do mundo jurídico. O estupro de vulnerável é um crime hediondo com pena de prisão de oito a quinze anos em regime fechado. Afrouxar o que diz a lei é um retrocesso na proteção que o direito penal impõe aos vulneráveis, portanto, deve ser combatida pela sociedade.

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*Kathiúscia Mariano Silva é advogada e membro de comissões da OAB/GO.

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