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A contramão legislativa: permissão das penas restritivas de direitos

Apenas para não pensarmos se tratar de questão pontual, lembremos que vários são os fatores reveladores desta ausência técnica.

segunda-feira, 23 de novembro de 2020

Atualizado às 13:08

  (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Novamente, e da mesma forma tratada em artigo publicado preteritamente1, no qual se discorreu sobre as inúmeras alterações perpetradas em nosso Jovem Código de Trânsito brasileiro (CTB), instituído pela lei 9.503/07 que, no interregno dos seus 23 anos de existência, já possui 36 alterações em seu texto2, voltamos a comentar uma nova e anacrônica mudança perpetrada pelo parlamento, com a recente inserção do Art. 312-B ao referido Codex.

O artigo recém-inserido pela lei 14.071/20, publicada em 14 de outubro do corrente ano, e que possui uma vacatio legis de 180 dias, é assim redigido:

Art. 312-B. Aos crimes previstos no § 3º do art. 302 e no § 2º do art. 303 deste Código não se aplica o disposto no inciso I do caput do art. 44 do decreto-lei  2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal).3

Importante de início explicitar que a nova disposição legal se aplica a dois crimes também recentemente alterados pelo legislador com a edição da lei 13.546, de 2017, quais sejam: o crime de homicídio culposo na direção de veículo automotor perpetrado pelo agente que se está sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência ( Art. 302 § 3º); e o crime de Lesão corporal culposa na direção de veículo automotor em que o agente conduz o veículo com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência, e se do crime resultar lesão corporal de natureza grave ou gravíssima (Art. 303, § 2º)4.

Voltando à incipiente lei 14.071/20 e, ao efetuarmos análise textual da novel disposição legal, se observa que o legislador fez inserir vedação expressa à aplicação do inciso I, do Art. 44 do Código Penal, o qual dispõe sobre um dos requisitos que deve ser observado quando da conversão das penas privativas de liberdade em penas restritivas de direito.

Vejamos o que preleciona o caput e os incisos do Art. 44 do Código Penal:

Art. 44. As penas restritivas de direitos são autônomas e substituem as privativas de liberdade, quando: 
I - aplicada pena privativa de liberdade não superior a quatro anos e o crime não for cometido com violência ou grave ameaça à pessoa ou, qualquer que seja a pena aplicada, se o crime for culposo;
II - o réu não for reincidente em crime doloso; 
III - a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do condenado, bem como os motivos e as circunstâncias indicarem que essa substituição seja suficiente.5

Destarte, efetuando-se pormenorizada análise da disposição supra, uma indagação de pronto ecoa: os crimes citados alhures, dos Art. 302 § 3º e Art. 303 § 2º, ambos do CTB, podem ter suas penas privativas de liberdade convertidas em penas restritivas e direitos? Vejamos, se cotejarmos os seguintes requisitos: ser o réu não reincidente em crime doloso específico, pois é necessário conjugar o inciso II com § 3º do Art. 44 do CP, possuir ele circunstâncias judiciais favoráveis e essas circunstâncias indicarem que a substituição seja suficiente e, ainda, vislumbrada a inexistência de limites da quantidade da pena, pois se tratam de crimes culposos, concluir-se-ia pela inexistência de óbice à substituição das penas privativas por restritivas de direitos.

Desta feita, ao se considerar a situação atual, ou seja, antes da vigência e consequente aplicação da alteração legislativa, que possui uma vacatio legis de 180 dias, ainda não transcorrida no momento em que se redige esse texto, se constata ser plenamente possível a aplicação da conversão disposta no Art. 44 do Código Penal aos crimes citados, eis que o inciso I se revela apenas como mais uma exigência que complementa uma série de vindicações da cabeça do artigo e que não comprometem a aplicação do instituto.

Lado outro, analisando-se de maneira prospectiva, ou seja, a partir da vigência do novo texto, constata-se a implementação de uma maior facilidade de aplicação do instituto, isto é, não haverá recrudescimento na aplicação da conversão, mas um abrandamento, eis que o legislador apenas impôs vedação à aplicação do inciso I do Art. 44, permitindo, por consequente, aplicação do caput e demais incisos.

Diante do explanado, o leitor pode chegar à seguinte conclusão: o legislador quis tornar mais fácil a conversão da pena privativa de liberdade em restritiva de direitos. Para nossa surpresa, trata-se de um ledo engano, pois ao analisar as matérias vinculadas nos sites oficiais do Senado Federal e da Presidência da República, constatou-se que a intenção do legislador foi bem diversa, vejamos:

O presidente Jair Bolsonaro sancionou a lei 14.071, que promove uma série de alterações no Código de Trânsito Brasileiro (CTB). A norma, que foi publicada com vetos na edição desta quarta-feira (13) do Diário Oficial da União, entra em vigor dentro de 180 dias.
(...)
A nova norma prevê também que, em casos de lesão corporal e homicídio causados por motorista embriagado, mesmo que sem intenção, a pena de reclusão não pode mais ser substituída por outra mais branda, restritiva de direitos.6
O presidente da República, Jair Bolsonaro, sancionou a Lei 14.071/20, com mudanças na lei de trânsito aprovadas pelo Congresso Nacional. Dentre as principais alterações, destacam-se:
(...)
Proibir a conversão de pena privativa de liberdade em pena restritiva de direitos quando o motorista comete homicídio culposo ou lesão corporal sob efeito de álcool ou outro psicoativo;7

Em suma, diante das razões supramencionadas, a única conclusão que se pode abstrair é de estar a cada dia mais difícil acompanhar a direção do parlamento. E esse, infelizmente, é apenas mais um dos inúmeros casos reveladores da ausência da utilização da Ciência Total do Direito Penal8, a qual propiciaria escorreito suporte técnico e científico à criação de novas figuras típicas eficazes, característica que se revela cada vez mais distante da realidade brasileira.

Por derradeiro, apenas para não pensarmos se tratar de questão pontual, lembremos que vários são os fatores reveladores desta ausência técnica, cujo resultado é evidenciado pela criação de tipos penais em dissonância com princípios dogmáticos basilares, como o da proporcionalidade. Esses vícios têm desvendado um descrédito ao processo legislativo brasileiro, o qual revela institutos que se tornaram hodiernamente mais conhecidos pela coletividade com as rubricas de "inflação legislativa", "contrabando legislativo" e "leis simbólicas", estas popularmente conhecidas como "leis que não pegam", como a que acabamos de perquirir.

_______

1- Cuidado, legislador ao volante! 

2- Leis alteradoras: 9.602/98, 9.792/99, 10.350/01, 10.830/03, 11.275/06, 11.334/06, 11.705/08, 12.006/09, 12.009/09, 12.058/09, 11.910/09, 12.217/10, 12.249/10, 12.452/11, 12.547/11, 12.619/12, 12694/12, 12.760/12, 12.865/13, 12.971/14, 12.998/14, 13.097/15, 13.103/15, 13.146/15, 13.154/15, 13.160/15, 13.258/16, 13.281/16, 13.290/16, 13.495/17, 13.546/17, 13.614/18, 13.804/19, 13.840/19, 13.855/19, 13.886/19,14.071/2020.

3- https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/lei-n-14.071-de-13-de-outubro-de-2020-282461197

4- BRASIL Lei nº 9.503, de 23 de setembro de 1997. Código de Trânsito Brasileiro. Legislação Federal. Sítio eletrônico internet - planalto.gov.br  

5- Código Penal. 

6- Mudanças no Código de Trânsito são sancionadas com vetos  

7- Presidente Bolsonaro sanciona alterações no Código de Trânsito Brasileiro 

8- Você já deve ter lido em algum lugar sobre a expressão ciência conjunta (ou total) do Direito Penal. Trata-se de uma forma diferente de se refletir o fenômeno criminal. Ele passa a ser abordado pelos ângulos da Criminologia, Direito Penal e pela Política Criminal. O modelo rompe com aquela visão formal e abstrata do interprete da norma penal que fica postado numa torre de marfim, alijado da realidade social (CALHAU, Lélio de Braga. Resumo de criminologia6ª ed. Niterói/RJ: Impetus, 2011. p. 25.)

_______

*Marcelo Ricardo Colaço é mestre em Desenvolvimento e Sociedade (Uniarp). Especialista em Ciências Criminais (Uniderp-Anhanguera). Especialista em Docência no Ensino Superior pela Universidade Alto Vale do Rio do Peixe (Uniarp)- Campus Caçador. Professor no programa de Pós-Graduação da UNOESC- Campus Videira/SC, no curso de Direito Penal e Processo Penal, onde ministra as matérias de Teoria Geral do Crime e Tópicos Especiais de Direito Penal. Professor no programa de Pós-Graduação da UNIGUAÇU- Campus União da Vitória/PR, no curso de Direito Penal e Processo Penal, onde ministra as matérias de Teoria Geral do Crime e Tópicos Especiais de Direito Penal. Professor das matérias de Direito Constitucional e Direito Processual Penal no curso preparatório para concursos Club da Aprovação. Delegado de Polícia na Secretaria da Segurança Pública e Defesa do Cidadão de Santa Catarina.

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