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A locação de imóvel comercial e o bem de família do fiador - Uma tentativa de mutação injustificada do tema 295/STF

A respeitável ministra, talvez induzida por alegações inverídicas do fiador em seu recurso, tomou por verdade que as premissas fáticas dos precedentes obrigatórios

sexta-feira, 27 de novembro de 2020

Atualizado às 08:04

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Em março de 2019 publiquei um artigo aqui no "migalhas" abordando o equívoco cometido no voto divergente da min. Rosa Weber, quando do julgamento do RE 605.709 pela 1º turma do Supremo Tribunal Federal.

A pretexto de tornar impenhorável o bem de família do fiador em contrato de locação de imóvel comercial, impossibilitando a satisfação do crédito do locador, a respeitável ministra, talvez induzida por alegações inverídicas do fiador em seu recurso, tomou por verdade que as premissas fáticas dos precedentes obrigatórios, tanto do RE 612.360 (que deu origem ao tema 295/STF), quanto do RE 407.688 (citado no inteiro teor do RE 612.360) abordaram a locação de imóvel residencial.

Com base nessa premissa fática, comprovadamente equivocada, a ministra aplicou o método do distinguishing para afastar a possibilidade da penhora do bem de família do fiador em contrato de locação de imóvel comercial, ocasionando grave risco de "calote" a centenas ou, talvez, milhares de locadores que, neste momento, estão com seus créditos sub judice experimentando o amargo sabor da insegurança jurídica.

Analisando o caso concreto (RE 605.709), que, até a publicação deste artigo, ainda se encontra em tramitação perante o Plenário do STF, verifica-se que a premissa fática fundamental deste caso (possibilidade de penhora do bem de família do fiador de contrato de locação de imóvel comercial) é idêntica a dos precedentes que deram origem ao tema 295/STF, ao tema 708/STJ e à súmula 549/STJ. Portanto, não há distinção entre o caso concreto e os precedentes obrigatórios.

O Código de Processo Civil atua energicamente nestas hipóteses de caracterização de desigualdades em casos semelhantes, ao dispor que, deixando de aplicar precedente obrigatório, indicado pelas partes, o julgador deve explicar porque o entende inadequado ao caso que está julgando, demonstrando a distinção dos casos, mostrando que a hipótese fática em julgamento difere daquela que gerou o precedente (art. 489, § 1º, VI, do CPC). Medida legal, esta, que não foi atendida pelo órgão julgador na apreciação do RE 605.709.

Em nome da segurança jurídica e da isonomia de tratamentos, sendo respeitado, com o rigor imposto pelo próprio ordenamento jurídico, o referido dispositivo legal (art. 489, § 1º, VI do CPC), verifica-se facilmente a "reprovação" do provimento judicial exarado no RE 605.709, porque, como a análise detida evidencia, reporta-se ou simplesmente transcreve ementas de julgados, à guisa de observações detalhadas sobre as premissas fáticas dos referidos precedentes obrigatórios, sem justificativa plausível sobre a flagrante discriminação gerada entre os locadores de imóveis urbanos referente à satisfação de seus créditos.

A ministra relatora do voto divergente, na verdade, não se desincumbiu de demonstrar a existência da suposta distinção fática em relação aos precedentes obrigatórios, mormente em relação ao leading case do tema 295/STF, que permitisse a aplicação da metodologia do distinguishing.

Neste aspecto, nos afiliando à doutrina de Ravi Peixoto, é possível verificar a aplicação da figura processual denominada de inconsistent distinguishing (distinção inconsistente), que nada mais é que um equívoco do órgão julgador na utilização do método do distinguishing. Para o citado doutrinador:

"Quando ocorre a distinção inconsistente, tem-se uma deturpação da técnica da distinção, mediante um discurso da Corte de que há fatos relevantes que sustentam a criação de uma nova norma judicial, mesmo quando eles inexistem. Ou seja, há um discurso de que há distinção, mas ele é injustificado".1

Pior! Com a aplicação do inconsistent distinguishing, é possível observar verdadeiro aviltamento dos princípios da igualdade, da separação de poderes, da segurança jurídica, e da proteção da confiança no Judiciário.

Explico em síntese.

A doutrina e a jurisprudência já assentaram o princípio de que a igualdade jurídica consiste em assegurar às pessoas de situações iguais os mesmos direitos, prerrogativas e vantagens, com as obrigações correspondentes, o que significa tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na medida em que eles se desigualam, visando sempre o equilíbrio entre todos. Esta é a expressão máxima do art. 5º da CF.

De acordo com o min. Alexandre de Moraes, o princípio da igualdade consagrado pela constituição opera em dois planos distintos:

"De um lado, frente ao legislador ou ao próprio executivo, na edição, respectivamente, de leis, atos normativos e medidas provisórias, impedindo que possam criar tratamentos abusivamente diferenciados a pessoas que se encontram em situações idênticas. A desigualdade na lei se produz quando a norma distingue de forma não razoável ou arbitrária um tratamento específico a pessoas diversas".2

Ao aplicar o inconsistent distinguishing entre a locação residencial e a locação comercial para fins da possibilidade da penhora do bem de família do fiador, o precedente em estudo (RE 605.709) deixou de analisar ponto de extrema relevância constitucional no que diz respeito à igualdade material, na própria lei, entre os locadores de imóveis urbanos (residenciais ou comerciais). Na verdade, de maneira injustificada, criou duas categorias nunca antes vistas no ordenamento jurídico: locador de imóvel urbano residencial e locador de imóvel urbano comercial.

Para ler o artigo completo clique aqui.

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1 PEIXOTO, Ravi. O sistema de precedentes desenvolvido pelo CPC/2015: Uma análise sobre a adaptabilidade da distinção (distinguishing) e da distinção inconsistente (inconsistent distinguishing). Revista de Processo, São Paulo: RT, 2015, v. 248, p. 348.

2 MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 36. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2020. p. 36.

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 *Abílio Veloso de Araújo é LL.M em Direito Societário pela Fundação Getulio Vargas. Pós-graduado Lato Sensu em Direito Civil e Processual Civil. Membro da Comissão de Di­reito Notarial e Registral da OAB/PE. Sócio fundador do escritório Ve­loso de Araújo Advogados.

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