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O patrocínio de interesse privado em licitações e contratos administrativos e o tipo penal sui generis de consumação condicionada

Os tipos penais são dotados de elementares, que são figuras essenciais e indispensáveis à caracterização da tipicidade de determinada conduta social, sob pena de se configurar verdadeira atipicidade.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

Atualizado às 13:36

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Estas breves linhas pretenderão apresentar e debater o momento de consumação do crime insculpido no art. 91 da lei 8.666/93, Lei de Licitações, que assim versa:

Art. 91. Patrocinar, direta ou indiretamente, interesse privado perante a Administração, dando causa à instauração de licitação ou à celebração de contrato, cuja invalidação vier a ser decretada pelo Poder Judiciário:

Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.

E, mesmo com a proximidade da revogação da lei 8.666/93, a análise se mantém adequada, na medida em que o dispositivo foi mantido à integralidade no PL 4.253/2020, conforme aprovado pelo Senado Federal, no art. 337-G:

Art. 337-G Patrocinar, direta ou indiretamente, interesse privado perante a Administração Pública, dando causa à instauração de licitação ou à celebração de contrato cuja invalidação vier a ser decretada pelo Poder Judiciário: Pena - reclusão, de 6 (seis) meses a 3 (três) anos, e multa.

Os tribunais pátrios apresentam pouquíssimos julgados com condenações incidentes neste tipo penal em razão da interpretação aplicada quanto ao momento de consumação do crime, já que a última parte do art. 91 impõe a necessidade de invalidação do procedimento licitatório por Juízo competente para, só então, se analisar a conduta criminosa.

O STJ, ao apreciar o HC 114.717/MG1, red. para acórdão min. Maria Thereza de Assis Moura, vencido em parte o min. Nilson Naves, afirmou, citando Hely Lopes Meireles, que

'O crime é material: consuma-se com a realização da licitação ou celebração do contrato, mas a persecução fica subordinada à condição objetiva de punibilidade, que é a invalidação pelo Poder Judiciário. Em razão dessa condição, não admite a tentativa' (STJ, 2009, on-line)

A partir desta diferença de datas entre o momento da consumação e o do início da persecução penal, a prescrição se inicia, sempre, antes da possibilidade de provocação ao Poder Judiciário, tendo em vista a redação do art. 111, I, do Código Penal, que ensina que a prescrição começa a correr do dia em que o crime se consumou (BRASIL, 1940). Com isto, a decretação de prescrição da pretensão punitiva do Estado impede a responsabilização dos ofensores reiteradamente.

Conduto, é necessário analisar a natureza jurídica do trecho "cuja invalidação vier a ser decretada pelo Poder Judiciário", a fim de declararmos o momento da consumação do delito, ou corroborar sua aparente inutilidade jurídica.

Os tipos penais são dotados de elementares, que são figuras essenciais e indispensáveis à caracterização da tipicidade de determinada conduta social, sob pena de se configurar verdadeira atipicidade. Os elementos são fundamentais à interpretação da ocorrência de determinado tipo penal (ou da completa atipicidade da conduta), tendo em vista que "exerce o tipo uma função de garantia, uma vez que o agente somente poderá ser penalmente responsabilizado se cometer uma das condutas proibidas ou deixar de praticar aquelas impostas pela lei penal" (GRECO, 2007, p. 181).

A atipicidade absoluta, por exemplo, nos dizeres do prof. Rogério GRECO (2007, p. 170), se dá por faltar uma elementar indispensável ao tipo, tornando a conduta praticada pelo agente um indiferente penal.

Também, o Código Penal (BRASIL, 1940) discorre, em seu art. 14, I, que o crime está consumado quando "nele se reúnem todos os elementos de sua definição legal". Assim, o momento de consumação dos crimes se dá de acordo com cada tipo e suas circunstâncias no caso concreto.

Assim, quando já se constata a presença de todas as elementares de dado tipo, com sua consumação (ou tentativa, quando esta é permitida por lei), há que se avaliar a punibilidade da conduta.

Neste sentido, a punibilidade é requisito alheio ao crime, com existência condicionada. Ensina JESUS (1990, p. 590) que "quando o sujeito pratica um crime, surge a relação punitiva: de um lado, aparece o Estado com o jus puniendi; de outro, o réu, com a obrigação de não obstaculizar o direito de o Estado impor a sanção penal. Com a prática do crime, o direito de punir do Estado, que era abstrato, torna-se concreto, surgindo a punibilidade, que é a possibilidade jurídica de o Estado impor a sanção". Portanto, a análise da punibilidade é posterior e condicionada à consumação ou tentativa de dado crime, sendo desnecessária sua avaliação em momento anterior.

Após este arrazoado doutrinário, adentrando o art. 91 da Lei de Licitações propriamente dito, importante mencionar o que ensina FREITAS (2010, p. 111), quando "destaca que para ser garantido o bom funcionamento da Administração Pública, imprescindível é que a atuação do servidor público seja voltada unicamente para o interesse público".

É neste aspecto que, sob pena de inocorrência do tipo em análise, GRECO FILHO (1994, p. 21) ensina que "é prevista a invalidação, por parte do Poder Judiciário, da licitação causada pela advocacia administrativa. Isso significa que a licitação provocada pela atuação do funcionário deve corresponder a uma pretensão ilegítima, porque reconhecida como tal pelo Poder Judiciário".

Ocorre que, muito embora louvável a intenção do legislador ao elevar a prática à condição criminosa, a redação do tipo dificulta sua aplicação, redação esta que se manteve no PL 4.253/2020, na medida em que pressupõe, para sua existência, que o procedimento licitatório seja invalidado pelo Poder Judiciário, sendo de difícil definição o momento de sua consumação. GRECO FILHO (1994, p. 23) assim entende, uma vez que a "conduta do agente consiste em patrocinar, e o resultado é a instauração da licitação ou a celebração do contrato. Aqui estaria consumada a infração, mas depende a existência do crime de vir a licitação ou o contrato a serem invalidados pelo Poder Judiciário, evento futuro e incerto", futuro que independe da vontade do agente.

FREITAS (2010, p. 117) ainda destaca que não se trata de qualquer pronunciamento judicial precário, mas de invalidade decretada por "decisão judicial transitada em julgado, tendo em vista a segurança jurídica gerada por esse tipo de provimento jurisdicional, que tem como principal característica a imutabilidade", na medida em que estamos diante de persecução a direito de liberdade individual.

Na prática, alcançar a anulação de uma licitação, com trânsito em julgado, antes de escoado o prazo para a persecução penal acaba por tornar inócuo o tipo, o que leva os tribunais pátrios a decretar a prescrição dos crimes logo quando oferecida a denúncia, o que garante a impunidade dos criminosos. Este aspecto foi objeto de preocupação por LEONARDO (2001, p. 54), que destacou que "como a pena prevista é mais curta [...] é previsível a impunidade de condutas deste tipo, pois, com frequência, dar-se-á a prescrição penal, já que se impõe aguardar o julgamento final da ação cível precedente".

Entretanto, sendo de conhecimento basilar, em matéria de hermenêutica, que não existem palavras inúteis na legislação, a interpretação quanto ao momento da consumação do crime deve ser ajustada. Para tanto, é necessário entender a parte final do art. 91, ou seja, a invalidação da licitação pelo Poder Judiciário, como um elemento objetivo normativo do tipo, de modo que apenas "quando" e "se" tal fato ocorrer estará consumado o crime, sendo este o momento em que todos os elementos do tipo estariam completos e aperfeiçoados.

Esta posição é defendida por GRECO FILHO (1994, p. 24), que ensina que "o evento futuro, invalidação pelo Poder Judiciário, está expresso no tipo, de modo que é dele elemento, não se podendo reduzi-lo a mera condição de punibilidade. Se esse fato é elemento do tipo, estará consumada a infração somente quando ele ocorrer, com sentença transitada em julgado", em contraponto ao que defende FREITAS (2010, p. 115-119), que interpreta a invalidação pelo Judiciário como "condição objetiva de punibilidade" e que "entender como elemento do tipo a expressão 'cuja invalidação vier a ser decretada pelo Poder Judiciário' é afirmar que no momento da conduta, o agente também deverá ter dolo em relação a tal aspecto, isto é, quando pratica o patrocínio do interesse privado perante a Administração, já deverá, também, ter a intenção de patrocinar interesse que possa ser invalidado pelo Poder Judiciário", o que chama de fato externo ao tipo, que não poderia ser coberto pelo dolo ou culpa do agente.

Entretanto, entender a invalidação como condição de punibilidade estabeleceria como criminoso o simples fato de patrocinar interesses privados perante a Administração, o que não é vedado, mas sim causar desequilíbrio ao procedimento licitatório, que deve ser realizado seguindo os princípios da Administração Pública, da lisura dos procedimentos e da igualdade entre os concorrentes.

Além disto, somente poderia ser fruto de esquizofrenia alguém buscar uma contratação pelo poder público, e posteriormente, desejar sua invalidação, o que atrairia ao agente a possibilidade da invalidação dos procedimentos que patrocinou com vontade de ofender os princípios da Administração.

Imagine ainda que, caso entendêssemos pela corrente doutrinária que defende a existência de condição de punibilidade, em verdade, deveria ser instaurada ação penal pela mera ocorrência de patrocínio de interesse privado, mesmo que sem qualquer ofensa efetiva aos princípios da Administração Pública e sem que qualquer desequilíbrio licitatório fosse gerado, sem qualquer lesão, portanto.

Teríamos, portanto, ações penais sendo propostas e sendo suspensas, até que se ultrapasse o prazo para anulação dos procedimentos licitatórios, o que certamente inundaria o Poder Judiciário com demandas em efetividade.

Ademais, entender como condição de punibilidade vai de encontro aos mais basilares ditames do Direito Administrativo, na medida em que os atos da Administração se presumem legais e legítimos até que sobrevenha decisão judicial anulatória ou revisão pela própria Administração Pública. Esta é a razão pela qual o tipo do art. 91 da lei 8.333/93 estabeleceu que o crime surge no momento em que este véu da legalidade dos atos do poder público é retirado, ou seja, no momento em que o Poder Judiciário anula o ato eivado de incongruências geradas pela atuação de determinado particular no sentido de prejudicar as regras licitatórias. Esta é a interpretação que melhor harmoniza o Direito Administrativo e o Direito Penal.

É necessária uma interpretação sistêmica da lei 8.333/93, mais precisamente do art. 3º2, e demais procedimentos licitatórios capazes de invalidar uma licitação, juntamente com os princípios básicos da Administração Pública, contidos no art. 37 da Constituição Federal, para se aferir a real intenção do legislador ao tipificar o crime em questão, o que se argumenta para refutar o que GRECO FILHO (1994, p. 22) discorre em sua obra:

Simplesmente, esse crime jamais existirá, e qualquer persecução a respeito será manifestamente arbitrária. A incongruência e o disparate da redação violam o princípio da legalidade e o da responsabilidade penal por culpa, de modo que a eventual aplicação do dispositivo seria inconstitucional.

Em verdade, a invalidação da licitação pelo Judiciário, como elemento objetivo normativo do tipo, garantiria a persecução pela ocorrência do art. 91 da lei 8.666/93 aos casos em que o patrocínio de interesses privados nos procedimentos licitatórios, desde que capazes de serem anulados pelo Poder Judiciário, tenham efetivamente ferido princípios da Administração Pública.

Desta maneira, nos parece que a melhor interpretação da parte final do art. 91 da lei 8.666/93 é justamente a que o considera um elemento temporal do tipo, sob o qual recairia a existência da infração condicionada do crime a determinado acontecimento futuro e incerto.

Neste sentido, a consumação do crime previsto no art. 91 da Lei de Licitações seria um tipo criminal sui generis no que toca à sua consumação, que estaria condicionada a evento futuro e incerto, mas de ocorrência presumível pelo agente. E é justamente por esta razão que temos que a melhor corrente doutrinária é a que considera a invalidade pelo Judiciário como elemento objetivo normativo do tipo, integrante do injusto penal, interpretação que certamente contribuiria para a mitigação dos atos ímprobos e aplicação das penas contidas no dispositivo legal.

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1 PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS. PECULATO-DESVIO TENTADO. LEI 8.666/93: ARTS. 90 E 91. FALTA DE JUSTA CAUSA. RECONHECIMENTO EM PARTE.
1. (...)
2. Carece de justa causa a ação penal quando se imputa a prática do crime do art. 91 da Lei 8.666/93, que depende da invalidação da contratação, uma vez coarctada, ab ovo, a concretização da licitação.
3. Ordem concedida, em menor extensão, para trancar, em parte, a ação penal em relação ao paciente, apenas em relação ao art. 91 da Lei 8.666/93. (com voto-vencido)
(HC 114.717/MG, Rel. Ministro NILSON NAVES, Rel. p/ Acórdão Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 17/12/2009, DJe 14/06/2010)
2 Art. 3o A licitação destina-se a garantir a observância do princípio constitucional da isonomia, a seleção da proposta mais vantajosa para a administração e a promoção do desenvolvimento nacional sustentável e será processada e julgada em estrita conformidade com os princípios básicos da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhes são correlatos

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BRASIL. Decreto-lei 2.845/1940. Código Penal. Rio de Janeiro, 1940. Acesso em 7 jul. 2017.
BRASIL. Senado Federal. PL 4.253/2020. Estabelece normas gerais de licitação e contratação para as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios; altera as leis 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, e 11.079, de 30 de dezembro de 2004, e o decreto-lei 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal); e revoga dispositivos da lei 12.462, de 4 de agosto de 2011, e as leis 8.666, de 21 de junho de 1993, e 10.520, de 17 de julho de 2002. Disponível aqui. Acesso em: 18 dez. 2020. Texto Original.
FREITAS, André Guilherme Tavares de. Crime na Lei de licitações. 2.ed. Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2010.
GRECO FILHO, Vicente. Dos crimes da lei de licitações. São Paulo: Saraiva, 1994.
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. 8.ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2007.
JESUS, Damásio E. de. Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 1990, vol. 1, p. 590.
LEONARDO, Marcelo. Crimes de Responsabilidade Fiscal: crimes contra as finanças públicas; crimes nas licitações; crimes de responsabilidade de prefeitos. Belo Horizonte: Del Rey, 2001.
STJ. Habeas Corpus: 114.717/MG, Rel. Ministro NILSON NAVES, Rel. p/ Acórdão Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 17/12/2009, DJe 14/06/2010. 

 

Cássio Thito Alvares de Castro

Cássio Thito Alvares de Castro

Advogado, sócio da Castro & Mesquita Advogados e associado ao Petrarca Advogados. Graduado pelo Centro Universitário de Brasília. Pós-graduado em Direito Empresarial e Contratos pelo UniCEUB e em Direito Processual Civil pela Faculdade Batista de Minas Gerais. Pós-graduando em Direito Administrativo pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e em Direito Previdenciário e Administrativo pela Faculdade Legale, de São Paulo.

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