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Retrospectiva 2020: Novos ares ao planejamento tributário?

Alterações legislativas e relevantes posicionamentos do STF e CARF inspiram maior viabilidade de planejamentos tributários.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

Atualizado às 15:31

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Em um ano marcado por uma pandemia sem precedentes na sociedade moderna e que impôs a adaptação de diversos aspectos e procedimentos, dentre eles a polêmica virtualização dos julgamentos colegiados, é certo que o ano de 2020 trouxe relevantes posicionamentos quanto a alguns temas e teses relevantes ao Direito Tributário brasileiro.

Dentre esses relevantes posicionamentos, traremos uma breve reflexão a respeito de alguns temas analisados pelos Tribunais (judiciais e administrativos) ao longo desse ano, bem como as alterações legislativas que, em nosso sentir, podem representar uma mudança de paradigma favorável aos contribuintes, especialmente quanto ao direito de se planejar tributariamente.

1) ADI 2446: alcance da atual redação do parágrafo único do artigo 116 do CTN

Por meio da ADI 2446, questiona-se a constitucionalidade da LC 104/2001 quanto à inclusão do parágrafo único ao artigo 116 do CTN, que prevê a possibilidade de a autoridade fiscal desconsiderar atos ou negócios jurídicos que considere terem sido praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador tributário ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, conforme procedimentos a serem estabelecidos por lei ordinária.

A constitucionalidade, necessidade de suspensão e a eficácia limitada dessa disposição é questionada desde então pelos contribuintes, especialmente por vir sendo empregada pelo Fisco como norma geral antielisiva (general anti-avoidance rule), a despeito de o próprio dispositivo estabelecer a eficácia limitada da norma à edição de lei com a determinação dos procedimentos específicos para se impor tal desconsideração.

Na prática, o que se observa é que o Fisco se utiliza de referida disposição para desconsiderar operações e negócios que julga terem sido realizados objetivando economia fiscal de forma artificiosa, havendo, nesse entendimento, grande espaço para uma discricionariedade indiscriminada e sem respaldo de lei nos procedimentos da apuração do suposto ilícito. As cobranças nesse sentido são majoritariamente mantidas pelos tribunais administrativos sob os mesmos fundamentos, ainda que o contribuinte demonstre a validade das operações.

Mesmo não tendo sido concluído em razão do pedido de vistas formulado pelo ministro Ricardo Lewandowski, os cinco votos já proferidos no julgamento da ADI 2446 perante o Supremo Tribunal Federal (STF) trazem importantes sinalizações à discussão.

Em que pese votar pela constitucionalidade do dispositivo em referência, a relatora do caso, ministra Cármen Lúcia, asseverou que, além de depender de regulamentação em lei para a sua aplicação, a norma não impede que o contribuinte busque economia fiscal respaldada em vias lícitas e coerentes à ordem jurídica. Em seu voto, a Ministra Relatora também acrescentou que à autoridade fiscal não cabe a utilização de analogias para definição do fato gerador tributário, dado também o comando contido do artigo 110 do CTN.

Considerando o longo histórico de discussões na doutrina e na seara do contencioso administrativo, não há dúvidas de que os relevantes votos já apresentados ao julgamento da ADI 2446 representam um importante marco quanto à validação do planejamento tributário à luz dos questionamentos fazendários quanto à aplicação do parágrafo único do artigo 116 do CTN.

2) ADC 66: validade da denominada "pejotização"

Por maioria de votos, o STF confirmou a constitucionalidade do artigo 129 da lei 11.196/2005, que estabeleceu a possibilidade de submissão aos regimes fiscais e previdenciários da pessoa jurídica na prestação de serviços intelectuais, bem como os de natureza científica, artística ou cultural, ainda que em caráter personalíssimo.

O tema há muito vinha sendo discutido quanto à validade da adoção da denominada "pejotização", já que a Receita Federal do Brasil (RFB) desconsiderava diversas relações jurídicas de prestação de serviços nesse sentido, por entender tratar-se de adoção de estrutura com intuito fraudulento de ocultar vínculo empregatício entre prestador e tomador do serviço.

Em seu voto, a relatora ministra Cármen Lúcia pontuou que a norma está alinhada ao princípio da liberdade econômica, sendo que qualquer desconsideração da pessoa jurídica sem a devida comprovação caracteriza-se como interferência indevida na atividade econômica do contribuinte, que possui a liberdade de organizar suas atividades e de atuar profissionalmente da forma que lhe parecer economicamente mais viável e desde que de acordo com o ordenamento jurídico.

Com o entendimento firmado por meio da ADC 66, essa espécie de planejamento tributário não pode ser desqualificada pelo simples apontamento de elementos de identificação de eventual vínculo empregatício, sendo necessário, ainda, a demonstração de desvio de finalidade ou de confusão patrimonial nos termos do previsto no artigo 50 do Código Civil, para a desconsideração da personalidade jurídica a ser apurada e validada pelas autoridades públicas e pelo Poder Judiciário.

3) Judiciário e operações societárias envolvendo amortização de ágio, no regime anterior à lei 12.973/2014

Ao menos nas últimas duas décadas, o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF) se inclinou para uma visão restritiva do direito previsto na lei 9.532/1997, inerente ao próprio conceito de renda tributável, que permite ao contribuinte se aproveitar do ágio pago em uma aquisição societária em caso de incorporação, fusão ou cisão com a sociedade cuja participação foi adquirida.

Inspirados por doutrinas estrangeiras, como a business purpose ou da substance over form, mas sem base legal para tanto, o Fisco Federal passou a desqualificar diversas operações de M&A quando identificado fundamento de eficiência fiscal, glosando o ágio aproveitado pelo contribuinte.

Muitas das controvérsias dessas autuações foram endereçadas pela lei 12.973/2014, que, além de adequar a amortização do ágio aos novos critérios contábeis adotados pelo Brasil, também estabeleceu algumas regras específicas antielisivas - specific anti-avoidance rules (como, e.g., a vedação da utilização do ágio interno). Já as cobranças mantidas sob a égide anterior a essas alterações, especialmente em razão do posicionamento restritivo do CARF, passaram a ser discutidas no âmbito do Poder Judiciário.

Neste cenário, o ano de 2020 foi marcado por decisões judiciais que, por exemplo, reconheceram inexistir norma (vigente à época dos fatos autuados) que vedasse a utilização de uma holding criada para aquisição da empresa alvo1.

Em uma manifestação judicial digna de menção, quanto a uma autuação envolvendo a utilização de empresa veículo por investidor estrangeiro para o aproveitamento de ágio, bem como a geração ágio interno, o juízo da 2ª Vara Federal da Subseção Judiciária de Blumenau2 sentenciou afastando a teoria do propósito negocial, reconhecendo que a legislação tributária vigente à época não vedava, para  fins fiscais, a geração de ágio entre partes relacionadas e dependentes do mesmo grupo (neste ponto, decidiu-se pela irretroatividade da  lei 12.973 de 2014 aos fatos ocorridos 10 anos antes).

Ponderou-se ainda que a criação de uma holding para ser utilizada como empresa veículo por vezes é pressuposto necessário para que uma empresa estrangeira adquira uma empresa nacional em patamar de igualdade tributária com outras adquirentes nacionais. Enfim, reconheceu-se que havia propósito na utilização de empresa veículo.

4) CARF e redução de capital com entrega de ativos (a valor de custo) para sócios, com posterior alienação na pessoa física

Um dos planejamentos tributários mais conhecidos para a alienação de bens por pessoa jurídica consiste na utilização da opção fiscal contida no artigo 22 da lei 9.249/1995, que permite a redução de capital com entrega de ativos aos sócios ou acionistas, pelo valor do custo histórico de aquisição.

Na prática, o contribuinte que pretende lucrar com a alienação onerosa de algum ativo, entrega-o a valor contábil para sócio pessoa física a título de redução de capital, que posteriormente aliena o bem onerosamente a terceiro. Evitando-se a tributação de ganho de capital para pessoa jurídica (34%), porquanto não há variação positiva na entrega do bem a valor de custo mediante redução de capital na alienação, a venda é tributada apenas posteriormente, pela alíquota progressiva do ganho de capital da pessoa física (15% a 22,5%), quando da alienação onerosa do ativo pelo sócio.

Inicialmente, este planejamento encontrava respaldado na antiga jurisprudência do CARF3. Entretanto, nos últimos anos o CARF alterou seu posicionamento para classificar essas operações como "abuso de direito", "simulação", "dissimulação" ou "planejamento tributário abusivo"4, argumentando com a ausência de intenção do contribuinte pela redução do capital social, mas apenas o objetivo de lucro na alienação do bem.

Recentemente, o tema ganhou novos ares perante a 1ª turma da CSRF5, que validou uma redução de capital, afastando a jurisprudência recente constituída, com base em método de distinguishing, pelo fato da referida redução de capital ao sócio pessoa física ter ocorrido em meio a divergência de interesses e conflitos societários entre as partes, o que afastaria a acusação de intuito de dissimular uma venda (ou outra alienação onerosa) futura.

Apesar disso, o fator de distinção acima narrado foi suscitado apenas em uma das declarações de voto, sendo que o voto condutor6 remete ao entendimento da antiga jurisprudência, no sentido de que a redução de capital pelo valor de custo não teria impedimento legal ou caráter abusivo, por se tratar de uma opção fiscal concedida objetivamente pela Lei Tributária.

Ao nosso ver, tais razões do voto condutor são relevantes, sobretudo como um sinal de que a jurisprudência administrativa, doravante, pode voltar a se inclinar favoravelmente aos contribuintes nestes tipos de planejamentos.

5) Fim do voto de qualidade no âmbito do CARF

Uma das mais marcantes e polêmicas alterações legislativas do ano de 2020 foi trazida pela Lei nº 13.988 que, em seu artigo 28, alterou a lei 10.522/2002 para estabelecer a resolução favorável ao contribuinte dos julgamentos com empate de votos no âmbito do CARF.

Antes de referida alteração, os empates ocorridos nos julgamentos no âmbito do CARF eram solucionados pelo voto do presidente do órgão fracionário, denominado como "voto de qualidade". Sem se adentrar no mérito quanto à constitucionalidade da norma em questão, fato é que, como a presidência é sempre exercida por um representante do fisco, os julgamentos envolvendo planejamento tributário se orientavam majoritariamente pela manutenção da cobrança fundamentada em argumentos antielisivos.

Não se trata de atribuir qualquer qualificação ao posicionamento dos representantes dos contribuintes, mas sim a simples observância que que diversos julgamentos ocorridos nos últimos anos perante o CARF quanto a este tema foram concluídos de forma desfavorável ao contribuinte, fundamentados na desqualificação da adoção de operações com substância e propósito negocial pelo simples fato de terem sido a via de maior economia tributária dentre tantas outras possibilidades lícitas ao contribuinte.

Com o fim do voto de qualidade, a expectativa é que não somente caberá ao contribuinte a demonstração da legalidade do planejamento tributário utilizado, como também caberá ao fisco, desde a autoridade autuante aos representantes perante o CARF, a demonstração de fraude e de abuso de direito do contribuinte com a finalidade de se artificializar a efetiva ocorrência do fato gerador tributário.

Como visto, dentre as tantas observações que se podem documentar do peculiar ano de 2020, certamente podemos contar com a sinalização de boas perspectivas para uma maior segurança jurídica nos negócios e para que os contribuintes possam escolher, sem receio, a opção que lhe for mais eficiente dentre aquelas legalmente permitidas.

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1 Neste sentido, decisão liminar exarada pelo juízo da 6ª Vara Cível da Seção Judiciária do Estado de Minas Gerais nos autos do processo 1006997-96.2019.4.01.3800
2 Seção Judiciária do Estado do Rio Grande do Sul, nos autos do Processo nº 5010311-02.2018.4.04.7205/SC.
3 Acórdão 101-94.008
4 Neste sentido os Acórdãos 1402-002.196, 1401-002.347 e 1401-002.835.
5 Com prolação do Acórdão 9101-004.709
6 Voto da lavra da Conselheira Cristiane Silva Costas (designada para relatar o entendimento vencedor).

 
Danielle Caldeirão Santos Castilho

Danielle Caldeirão Santos Castilho

Advogada coordenadora da área de contencioso tributário da Ayres Ribeiro Advogados, em São Paulo. Graduada em Direito pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo. Possui MBA em Gestão Tributária pela FIPECAFI. É Especialista em Direito Tributário pela PUC/SP.

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Caio Cezar Soares Malpighi

Caio Cezar Soares Malpighi

Advogado na equipe de contencioso tributário do escritório Ayres Ribeiro Advogados. Graduado em Direito pelas Faculdades Metropolitanas Unidas. Pós-graduando no curso de especialização em Direito Tributário Nacional do IBDT.

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