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Lavagem de dinheiro: expressão de preconceitos

Quem quiser fazer ciência a partir do entendimento de que o tipo penal descreve um fato, precisa aprimorar a linguagem, ao cuidar do agir típico denominado lavagem de dinheiro.

segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

Atualizado às 08:53

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Faz mais de 20 anos das minhas primeiras pesquisas sobre o crime de lavagem de dinheiro. Naquele tempo, já havia verificado que a expressão tendia a levar agentes públicos ao arbítrio. Lavagem mostra-se palavra que denota limpeza, o que faz lembrar da defesa social, bem assim do higienismo em relação aos indivíduos perigosos.

Por sua vez, dinheiro constitui-se em vocábulo que carrega aura do mal na tradição da literatura, bastando aludir às desgraças que o metal pôde trazer no Fausto de Goethe, bem assim no Tímon de Atenas, de Shakespeare - autores que influenciaram Karl Marx a cunhar a ideia da força disruptiva do dinheiro.  

Não se conhece a origem exata de money laundering. Todavia, a política internacional norte-americana influenciou os países a traduzirem-na em seus ordenamentos jurídicos, a contar da Convenção de Viena de 1988 (Decreto 154, de 26 de junho de 1991). Aqui e ali, viram-se variantes (v.g., riciclaggio del denaro, blanqueo de capitales), todas muito próximas dessa carga valorativa negativa.

Há quem afirme que as palavras correspondem ao que as pessoas, que as cunharam, pretendiam. Acredito mais no vínculo entre significado e história. Prefiro a concepção de Wittgenstein, na linha de que a língua surge como conjunto de práticas usuais para coordenar nossas ações com as dos outros.

Ora, no direito penal, não se permite amplitude de interpretações quanto ao sentido do tipo. A legalidade estrita (art. 5º, XXXIX da CR c.c. art. 1º., do CP) impõe texto curto e objetivo, rico em significado. Nada como a singeleza do "Matar alguém. Pena:" (art. 121, do CP), para sintetizar a vasta gama de formas de alguém pôr fim à vida humana.

Daí está a necessidade de se ter cuidado ao estudar a infração penal, tipificada pelo artigo 1º, da Lei 9.613/98. Não bastasse a equivocidade dos termos, o tipo penal espelha-se na tradução do art. 3º, 1, (b), (i) e (ii), da referida Convenção de Viena. Foge ao método de tipificação em direito penal brasileiro e segue modelo legal da Common law, no qual se crê que o maior número de palavras numa sentença permitiria melhor compreensão do fato.

Em língua portuguesa se tem o oposto: bem escolhido o verbo, as orações e períodos melhor se desenvolvem. Por essa razão, usar de muitas palavras com acepção próxima acarreta maior número de problemas para aplicação do tipo e risco à tipicidade penal.

Essas observações me vêm à mente, depois de assistir à maratona de exposições de operadores do Direito, no âmbito da Comissão de Reforma da Lei de Lavagem de Dinheiro, nomeada pela Presidência da Câmara dos Deputados. Curioso notar dois fenômenos corriqueiros, porém, graves quanto à interpretação da lei.     

Algumas pessoas não entenderam até hoje que a conduta típica na lavagem de dinheiro nada tem a ver com a ocultação do bem, produto ou proveito do crime antecedente. Quem perpetua o crime, sob exame, esconde (conceal) ou dá nova aparência (disguise) à procedência do bem, resultado do comportamento típico precedente. O agente quer se utilizar na economia legal daquilo (bem, ou valor) que foi obtido com a perpetuação do delito anterior, sob a aparência de ter origem legítima. Portanto, não almeja ocultá-lo (hide).

Além disso, existe quem permaneça a pensar o tipo penal da lavagem de dinheiro sob a influência de vocabulário atécnico estrangeiro. Pior, há aqueles que ainda adotam as palavras de ordem da estratégia internacional dos Estados Unidos da América no War on drugs, popularizada no ano de 1971 por Richard Nixon. Assim, cinquenta anos depois, ouvem-se nossos magistrados e procuradores da República a acreditarem que estão a combater e a perseguir inimigos. 

Em resumo, quem quiser fazer ciência a partir do entendimento de que o tipo penal descreve um fato, precisa aprimorar a linguagem, ao cuidar do agir típico denominado lavagem de dinheiro. Não serão preconceitos importados que trarão eficácia à legislação, nem melhora à Justiça Criminal.

Sugiro eliminar das mentes esse ideário fracassado, para se fazer lei penal brasileira, escrita em vernáculo. Afinal, raras vezes, se encontrou hipótese tão perfeita, como da Lei 9.613/98, para se repetir o clássico trocadilho: Traduttore, Traditore.  


 

Antônio Sérgio Altieri de Moraes Pitombo

Antônio Sérgio Altieri de Moraes Pitombo

Advogado, mestre e doutor em Direito Penal pela USP, pós-doutor em Democracia e Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra. Advoga no escritório Moraes Pitombo Advogados.

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