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A pandemia e um olhar renovado sobre as relações trabalhistas

É inegável que a rápida evolução tecnológica clama pela adequação permanente das leis, mas os duros tempos atuais revelaram que já existem mecanismos para regular as novas relações trabalhistas, cada vez mais digitais.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

Atualizado às 10:21

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

A nossa Consolidação das Leis Trabalhistas é uma senhora de quase 80 anos. Apesar da sua inegável importância social ela é, por vezes, rabugenta e retrógada. Porém, confesso que sempre vi leveza e modernidade naquelas letras que há tanto tempo me acompanham. Depende do nosso olhar. A pandemia de covid-19, fato inédito na nossa geração, só fez aumentar a minha admiração pela CLT e por sua capacidade de resignação. Da crise, antigos paradigmas ressurgiram e outros, que já estavam em sedimentação, viraram senso comum. É como se a sociedade, de alguma maneira, estivesse se preparando para o que estamos vivendo.

Era 2013, quando um cliente de nosso escritório, hoje um dos maiores varejistas de moda do Brasil, sempre à frente do seu tempo, me ligou dizendo o seguinte: 'Cara, meu e-commerce está começando a bombar e eu preciso reduzir a concorrência com a minha equipe de loja, então tive uma ideia, mas acho que você não vai deixar irmos para frente...'. No dia seguinte, já estava reunido com ele e sua equipe comercial. Me disseram então que pretendiam distribuir códigos para que as vendedoras de loja os divulgassem em suas relações pessoais e nas ainda incipientes redes sociais. Com a inclusão dos códigos nas vendas, quem comprasse on-line teria direito a um benefício e a vendedora ganharia um percentual de comissão sobre a venda atrelada ao código. As indagações vieram: 'Isso é possível? Não vai gerar horas extras? E nos períodos de férias e licenças?'. Como advogado, sempre evito tolher a imaginação de meus clientes, desde que as ideias estejam dentro do princípio da legalidade. Alertando dos riscos, criamos o primeiro "regulamento de vendas virtuais" de uma empresa de moda no Brasil prevendo, dentre outras regras, a liberdade de participação, a orientação para que não divulgue os códigos fora da jornada de trabalho e em período de férias e licenças e ainda regras de responsabilidade do empregado pela divulgação equivocada de produtos e preços. Com o passar do tempo (e do sucesso da empreitada...), tive que pedir permissão ao inventor para desenvolver regras para outros clientes. A resposta foi: 'Cara, eu não posso ir contra o mundo. Manda bala...'. Rapidamente, a coisa se espalhou, os códigos passaram a valer para todos os empregados das empresas, para funcionários dos prestadores de serviços, das multimarcas, das franquias e até para quem não tem qualquer vínculo com a companhia, que agora poderia se tornar seu "parceiro" de vendas, sem relação de emprego, com ampla liberdade de atuação e de horário, como há tanto tempo já se usava em alguns setores do comércio, como o de perfumaria e cosméticos. De lá para cá, tivemos poucas ações judiciais em nosso escritório contestando essa prática e saímos vencedores na maioria. Não vieram grandes embates com sindicatos ou com os órgãos de fiscalização. Todo mundo olhou da mesma forma e deu tudo super certo!

Sete anos depois, em tempos de pandemia, de uma renda extra no final do mês, os tais códigos se transformaram numa das principais ferramentas de vendas e fonte de sobrevivência de empregados, empregadores e profissionais liberais que atuam no comércio de bens. É bom para todo mundo! A empresa gera receita, empregados e autônomos sustentam suas famílias e favorecem sua autoestima (quem não gosta de vender???) e a economia respira. Tudo dentro da lei e do novo mundo digital.

A pandemia nos ensinou ainda que os então esquecidos artigos da CLT dedicados à força maior, que já previam a redução de jornada e salário em tempos de crise  têm sim a sua serventia e foram a base para a lei 14.020/20, que evitou um mal ainda maior à economia e salvou inúmeros empregos e empresas.

Era impensável que menos de três anos após a reforma trabalhista de 2017, o trabalho remoto ou em casa passaria ser a regra geral em boa parte da economia. E já tínhamos lei para regulamentá-lo, o que reduzirá de sobremaneira discussões e judicializações sobre esse tema.

O processo trabalhista também se adequou forçosamente, aos novos tempos. Com a necessária redução dos riscos de contágio, não há mais audiência presencial de conciliação e todos os acordos passaram a ser homologados virtualmente. As sessões de julgamento dos tribunais agora acontecem on-line. O que já era legalmente possível, mas exceção na prática, hoje é o ordinário e esperamos que assim continue, mesmo com o fim da pandemia, quando o foco terá que ser na realização das audiências de instrução, represadas há tanto tempo e cuja realização virtual é recheada de controvérsias.

É inegável que a rápida evolução tecnológica clama pela adequação permanente das leis, mas os duros tempos atuais revelaram que já existem mecanismos para regular as novas relações trabalhistas, cada vez mais digitais. É preciso, no entanto, que as ferramentas sejam usadas com sensatez e diálogo, sem as amarras ideológicas de qualquer direção. Dessa forma, o Direito do Trabalho será sempre uma rica ferramenta de desenvolvimento sustentável, regulação econômica e paz social.

Juliano Mansur

Juliano Mansur

Advogado, sócio responsável pela área trabalhista do escritório Vieira de Castro, Mansur & Faver Advogados.

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