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O machismo presente na criação das assistentes virtuais e os consequentes assédios cibernéticos

Como sabido, o avanço tecnológico mundial traz benefícios e facilidades para toda a sociedade, entretanto, este progresso veloz e frenético acaba desencadeando também diversas problemáticas.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

Atualizado às 17:58

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

De acordo com o dicionário Aurélio1, a palavra tecnologia, em seu sentido literal, tem como significado um conjunto de conhecimentos e princípios científicos, que se aplicam em um determinado ramo da atividade humana. Diferentemente do que muitos pensam, a tecnologia não está ligada somente a evoluções industriais ou avanços na internet e sim, com os diferentes métodos utilizados pelo homem, ao longo de toda sua existência, com o fim de aperfeiçoar técnicas e facilitar suas atividades, tornando-as mais fáceis e produtivas. Uma dessas técnicas, reconhecida popularmente nos dias atuais, porém que está inserida há tempos na história mundial é a inteligência artificial ou A.I (de artificial intelligence), a qual passa por diversos estágios para ser formada, sendo o Machine Learning, o Deep Learning e por fim o Processamento de Linguagem Natural. O ramo da Inteligência Artificial possui diversas vertentes, umas delas, tem chamado muito a atenção, mais notadamente nos últimos cinco anos, são as chamadas Assistentes Virtuais Inteligentes. Igualmente a forma como a A.I. foi lançada, as assistentes virtuais também têm como finalidade o auxílio ao homem. Foi percebendo a evolução deste instrumento da inteligência artificial e as facilidades que a inserção dele traria a sociedade que grandes empresas reconhecidas e utilizadas pelo mundo inteiro, iniciaram o implemento desta nova tendência, de modo que, hoje em dia grandes marcas que possuem reconhecimento mundial, como Apple, Microsoft, Amazon, Sansumg e Google, além de empresas brasileiras como Magazine Luiza, Vivo, Bradesco, Natura, também concederam aos seus clientes uma nova oportunidade de aproximação e comunicação mais eficaz e imediata ao serem atendidos e auxiliados por suas respectivas assistentes virtuais inteligentes conforme visitam seus devidos sites para compras.

Ante todo esse avanço da criação e inserção das assistentes virtuais inteligentes, um fato que chama a atenção, no entanto, é que mesmo as assistentes sendo de diferentes empresas e até mesmo dispondo de funções distintas, todas elas possuem um marco semelhante: são figuras femininas. Siri (assistente da empresa Apple), Alexa (Amazon), Cortana (Windows), além da Lu (Magazine Luiza), Nat (Natura), Bia (Bradesco), são alguns dos nomes de assistentes digitais mais conhecidas e utilizadas pelos usuários no Brasil e no mundo. O que entra em discussão, a partir de agora, não é mais a tecnologia avançada e os anos de estudo que levaram a humanidade chegar onde chegamos hoje e sim, a forma machista com que esse sistema foi criado.

Ao longo de toda a história e mesmo com as individualidades de cada cultura, o machismo possui uma particularidade importante que é a esteriotipização do que é masculino e do que é feminino, ou seja, o senso comum das características que devem ser próprias de homens e de mulheres. Entretanto isto não passa de uma utopia que é constantemente reforçada por toda comunidade, mesmo que de forma subconsciente, e é exatamente isso que a tecnologia, mesmo com tanta evolução, ainda não foi capaz de alterar.

Assistentes virtuais inteligentes com compleições somente femininas, belas e arrumadas, magras de características físicas impecáveis, com voz calma, suave e doce sem se exceder em nenhum momento, sempre disposta a dar respostas civilizadas, muito bem-humoradas independentemente da circunstância em que esteja inserida a pergunta e, o mais importante, elas estão contínua e incessantemente disponíveis para auxiliar.

O mundo precisa prestar muito mais atenção a como, quando e se as tecnologias de Inteligência Artificial recebem um gênero e, o que é crucial, quem lhes dá um gênero.2

Estas foram as palavras de Saniye Gulser Corat, diretora de igualdade de gênero da Unesco. Na fala dela, Saniye quis atentar a sociedade exatamente ao modo de como estão sendo desenvolvidas as assistentes virtuais e todas as suas características de construção, além disso, a diretora salienta que devemos observar com muita atenção quem atribui aos instrumentos de inteligência artificial estas qualidades.

Como já dito acima, ante toda a nossa história que desde os primórdios foi cercada pelo machismo e patriarcalismo, não é possível que deixemos esse mal enraizado na sociedade continuar perpetuando na vida das mulheres e inserido em inovações. Em uma realidade mundial onde sete em cada dez mulheres já foram ou ainda serão violentadas em algum momento da vida por homens, onde 50% (cinquenta por cento) da sociedade feminina assassinada foi vítima dos cônjuges ou de outros homens da família, contando ainda que mais de quarenta países no mundo não possuem legislação própria para a punição da violência contra a mulher, mesmo com o cada vez mais crescente número de agressões, já podemos ter alguma noção dos responsáveis por enraizar mais uma vez o machismo na criação das assistentes virtuais. É notório que apesar de algum avanço na participação de mulheres no campo científico de inovações tecnológicas, essa atuação ainda é menor que a masculina, apontando que as mulheres não seguem na carreira científica de forma igualitária aos homens. E é neste ponto que entendemos a problemática do ideal machista inserido na criação das assistentes virtuais. O fato das assistentes digitais serem criadas para parecerem mulheres, do tom de voz até a personalidade, e elaboradas para serem submissas e gentis, o que também implica em responder educada e atenciosamente a insultos, faz com que a propensão a esteriotipização de gênero e o assédio sexista sejam normalizados. E deveria ser diferente, já que estamos falando de uma inovação, ou seja, algo novo inserido na sociedade, não faz sentido que em pleno século XXI ainda temos que conviver com essa diferenciação e diminuição do poder feminino, até mesmo em revoluções tecnológicas que foram criadas com o fim de auxiliar a sociedade como um todo.

O que resta evidenciado com isso é que este tipo de criação das assistentes inteligentes de tecnologia só potencializa ainda mais o estereótipo da mulher perfeita criado com o machismo, de modo que estas robôs estão atualmente propensas as mesmas problemáticas que qualquer mulher humana passa por todos os dias da sua vida. Isso significa que as assistentes virtuais inteligentes, ou seus programadores, já comeram a sentir "na pele" ou melhor, no seu sistema computacional, o que nós mulheres já estamos vivenciando por longos séculos.

Os assédios cibernéticos, ou cyberbullying, já estão na lista de problemas enfrentados pelos programadores das assistentes virtuais inteligentes, isso porque elas vêm comumente sofrendo agressões verbais, desonra, piadas sexistas e até mesmo os inconvenientes convites sexuais.

Foi exatamente por esse fato do machismo e pelas agressões sofridas também pelas assistentes virtuais inteligentes que no mês de maio do ano de 2019 a UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) realizou um estudo denominado "I'd Blush If I Could" traduzido livremente para "Eu coraria se pudesse", onde foi constatado que as assistentes virtuais inteligentes estão, cada vez mais comumente, sofrendo agressões verbais e assédios. Segundo a pesquisa, a atividade masculina tem predominância no ramo de criar, configurar e programar as assistentes virtuais, deste modo, coincidentemente ou não, todas as assistentes virtuais inteligentes, ou sua maioria, representam a figura feminina, delicada e bondosa, como já destacado nos capítulos anteriores. Após este estudo, ainda, não ficou revelado apenas o exorbitante número de agressões contra as assistentes, mas também de extrema importância, o fato de todas elas não estarem programadas para responder a altura um assédio, quando são agredidas verbalmente sempre respondem de forma tolerante, subserviente e passiva. Foi baseando-se neste fato comprovado que a UNESCO, no mesmo ano, promoveu uma campanha mundial batizada de "Hey, Update My Voice" ou "Hey, Atualize Minha Voz" em tradução livre, onde o objetivo é chamar a atenção das pessoas para essa problemática contemporânea.

Constatou-se na matéria da pesquisa que as assistentes virtuais inteligentes de todas as empresas, sendo elas nacionais ou não, são diariamente expostas a agressões verbais de clientes e usuários da internet. Convites para sexo, insinuações quanto a suas aparências físicas, agressões verbais em xingamentos como "estúpida, burra, idiota" e solicitações de fotos íntimas são apenas algumas das ações dos agressores. Porém, outra coisa que chamou muito a atenção de pesquisadores mundiais foi que aos serem verbalmente agredidas e constrangidas as assistentes virtuais inteligentes continuam respondendo de forma educada e cordial, inclusive se desculpando por não "saberem" a resposta de dado questionamento, vez que não foram programadas para isso.

O que a Organização quer sinalizar é que o problema típico, cultural e desordenado da violência contra a mulher da nossa realidade que todos os dias está cada vez mais tentando ser combatido por mulheres que não aceitam mais este fato, atualmente, já ultrapassou o real, invadindo agora o campo virtual. Além disso, entendem que o fato das assistentes serem subservientes e passivas nas respostas as agressões, gera um certo retrocesso ao movimento que tenta acabar com o machismo impregnado na sociedade.

Importante destacar ainda que algumas companhias já aderiram a esta campanha tão importante e estão empenhadas em acabar ou talvez, por ora, diminuir os ataques as assistentes virtuais inteligentes. Entretanto, outra preocupação vem à tona, será que talvez a certeza da impunidade e a falta de normas concretas sobre o assunto não sejam facilitadoras para estas ações dos agressores?

Nossa sociedade tem como necessidade imediata parar de aceitar comportamentos machistas, não importando se a vítima é um mero robô. As agressões verbais, sexuais e psicológicas contra a mulher, a sexualização e esteriotipização do feminino e todo o machismo inserido na nossa sociedade não cabem mais, não devem mais ocupar lugares nem muito menos os ideais das pessoas. Temos que, urgentemente mudar a concepção das pessoas, seja por reeducação, ou ainda, aplicação de normas mais atualizadas e eficazes capazes de amedrontar quem ouse agredir, em qualquer forma, uma mulher pelo fato de ela ser mulher.

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1 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Mini Aurélio, o dicionário da língua portuguesa. 7ª ed. rev. e ampl. de acordo com a nova ortografia. Curitiba: Ed. Positivo, 2008.
2 Palavras de Saniye Gulser Corat, diretora de igualdade de gênero da Unesco, em um relatório publicado pela Organização das Nações Unidas (ONU), no mês de maio de 2019

 

Júlia Lopes Morassi

Júlia Lopes Morassi

Bacharel em Direito pela Faculdade Esamc Sorocaba.

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