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A problemática da citação por WhatsApp e demais meios eletrônicos distintos do sistema próprio do Judiciário

A (in)existência jurídica das citações realizadas via aplicativos de mensagens instantâneas e e-mail, e seus desdobramentos no Processo Civil.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

Atualizado às 08:16

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Após o início da pandemia de covid-19, que assola países de todo o mundo, impondo mudanças de hábito urgentes e medidas drásticas no cotidiano da humanidade, os tribunais brasileiros vislumbraram, diante da natureza essencial da prestação jurisdicional, a necessidade de minimizar os prejuízos do inevitável isolamento.

Para tanto, houve uma enxurrada de edição de portarias e criação de procedimentos internos na tentativa de que o momento atual fosse ao menos suavizado.        

Vale a pena trazer à atenção o fato de que ao Direito é inerente acompanhar as mudanças sociais, ou seja, o Direito não deve ser estático. Nessa perspectiva, em relação às tecnologias, tanto o legislativo quanto o judiciário vêm ao longo dos anos buscando digitalizar e desburocratizar seus serviços como um todo.

A lei 11.419/06 dispõe sobre a informatização do processo judicial e é a legislação vigente mais específica sobre o assunto. Quando da edição do Código de Processo Civil o legislador preocupou-se em remeter certos dispositivos à mencionada lei e determinar a preferência pelo meio eletrônico.

O surto pandêmico trouxe o "futuro" esperado por muitos. Acarretou a aceleração da utilização das formas virtuais em todos os aspectos: todas as audiências e sessões agora são realizadas de forma telepresencial; aderência dos cartórios e gabinetes ao atendimento via e-mail e WhatsApp; os alvarás foram definitivamente substituídos por transferências bancárias, o que repercutiu de forma bem positiva para as partes e advogados.

Diversos atos processuais, entre eles a realização de citação por e-mail e WhatsApp, que já vinham em uma crescente, também se difundiram. A problemática surge quando os requisitos legais para realização não são observados.

A citação é ato indispensável do processo e pressuposto de sua existência. É o momento na qual se dá ciência ao réu não apenas sobre a existência da ação, mas também, e necessariamente, sobre os termos dela, perfectibilizando a triangulação processual. É elemento essencial para o contraditório e ampla defesa e a partir da data de sua ocorrência se produzem efeitos de alta repercussão, como a constituição do devedor em mora, a vinculação do objeto discutido no processo ao seu resultado e a determinação de litispendência.

Tamanha é a importância, que a ausência de citação é elevada a vício transrescisório, podendo ser arguida a qualquer tempo.

Acerca das modalidades de citação, o art. 246, inciso V do CPC/15 prevê a possibilidade da realização por meio eletrônico, na forma da lei. A lei 11.419/06 por sua vez, autoriza a realização da citação pelo meio eletrônico, desde que observadas as formas e cautelas elencadas no art. 5º da mesma lei, bem como que a íntegra dos autos esteja disponível ao citando. O referido artigo assevera que serão feitas por meio eletrônico, em portal próprio, aos que se cadastrarem junto ao Poder judiciário, cabendo aos respectivos órgãos disciplinarem a questão.

Há quem acredite que a lei de informatização, por ser do ano de 2006, já estaria ultrapassada. Argumenta-se que o cadastro prévio previsto na lei é obstáculo que não deveria subsistir, tendo em vista a quantidade de novas ferramentas que surgiram posteriormente (principalmente o WhatsApp) que poderiam ser utilizadas para dar celeridade e eficiência ao processo. No entanto, é necessária uma reflexão sobre a segurança necessária e os elementos de verificação quanto à ciência inequívoca do requerido, assim como a razão do prévio cadastro do jurisdicionado como requisito de validade.

O Conselho Nacional de Justiça - CNJ, agindo sob a égide das atribuições que lhe foram conferidas pelo CPC/15, no ano de 2017 aprovou a utilização do WhatsApp para intimações, e não citações, desde que realizado prévio cadastro e adesão voluntária pelo usuário. Hoje, a maioria dos tribunais utilizam a ferramenta para as comunicações. Aqui, de fato não se visualizam prejuízos, tendo em vista ser meio inegavelmente célere e existir uma declaração das partes acerca da veracidade dos dados e anuência prevista na lei, consagrando o princípio de instrumentalidade das formas trazido pelo art. 277 do CPC, do qual se extrai que são válidos os atos que alcançam sua finalidade essencial ainda que realizado de forma diversa da prevista em lei.

Já quanto ao ato citatório, por sua evidenciada importância e peculiaridades, é necessária atenção especial para sua realização, vez que a depender do vício, o ato é considerado inexistente.

O art. 242 do CPC dita que a citação será pessoal, ou seja, deve ser feita na pessoa do citando. À exceção disso, o Código traz de forma pormenorizada as pessoas que podem, por representação, receber o ato.

Quando um juízo emite citação por aplicativo de mensagem ou e-mail baseando-se em número de telefone ou dados fornecidos pelo autor, por sistema de pesquisa ou até mesmo informações retiradas da internet, não há como o simples recebimento ser considerado prova apta a estabelecer a verdade de que a pessoa citada de fato é quem se pretende citar.

Veja-se que por meio postal ou por mandado via oficial de justiça, ainda que um indivíduo se passando pelo réu ou por pessoa com poderes aptos, receba a citação, a assinatura colhida constitui prova que é juntada ao processo e poderá, caso ocorram prejuízos, ser refutada independentemente de transcurso no tempo, através de perícia grafotécnica.

Em consonância, a certificação digital utilizada nos sistemas próprios dos tribunais, é reconhecida como identidade eletrônica, vez que é emitida mediante comparecimento pessoal do usuário ou por outra forma que garanta nível de segurança equivalente. Possui força de carteira de identidade no mundo virtual, confiável e com autenticidade garantida por criptografia complexa.

Já a maioria dos aplicativos de mensagens e correios eletrônicos comercializados hoje, incluindo o App mais utilizado do mundo, não requer de seus usuários o preenchimento de dados mínimos que seriam essenciais para identificação fora da rede, como por exemplo RG e CPF ou até mesmo a biometria em qualquer de suas formas. Não há como conferir presunção de veracidade. Basicamente, fazendo um comparativo com o método dos correios adotado pelo CPC/15, é como uma Carta com Aviso de Recebimento que foi entregue a uma pessoa cujo nome não lhe foi perguntado e cuja assinatura não foi colhida, inviabilizando qualquer verificação de identidade e traduzindo-se como uma citação inexistente.

Até mesmo a obrigatoriedade trazida pela lei 12.965/14 (Marco Civil da Internet) para que as operadoras e mantenedoras desses aplicativos guardarem sob sigilo dados e registros dos usuários, é inócua.

Ainda nesta seara da comunicação eletrônica por aplicativos, ressalta-se o sentimento comum de que o ambiente é indiscutivelmente fraudulento. Os inúmeros golpes e fraudes aplicados especialmente no WhatsApp geram insegurança tanto para o emissor quanto para o cidadão destinatário, que pode ficar com receio e dúvidas quanto à veracidade do conteúdo.

É por tais motivos que o cadastro prévio realizado pelo usuário junto aos tribunais tem o condão de dirimir as complicações, ao menos em relação a identificação, porquanto expressa a manifestação do titular acerca da veracidade dos dados informados e anuência quanto ao método. É a forma mais tangível, até o momento, dessa verificação entre mundo real e mundo eletrônico.

No que diz respeito à ciência inequívoca acerca do ato, cada meio eletrônico possui uma forma própria de informar ao usuário a ocorrência ou não de recebimento/visualização, que nem sempre é verossímil. Quando o WhatsApp surgiu, era possível a todos os usuários verem os "dois traços azuis" e assim obter ciência de que a mensagem foi visualizada. Posteriormente, essa opção pôde ser desabilitada. De igual forma, os e-mails têm sua forma própria de habilitação da confirmação de leitura, o Facebook Messenger e assim como todo o universo de aplicativos que são criados constantemente.

Interpreta-se aqui que é a análise acerca da ciência inequívoca do réu, atrelada à verificação de prejuízos processuais, que estabelece a ocorrência da nulidade ou da validade do ato, pois tem o condão tanto de aplicação da forma, nos casos em que o ato é declarado nulo ou inexistente pela inobservância das formalidades legais, quanto para afastar a forma, como é o caso da Teoria da Ciência Inequívoca, construção jurisprudencial com base no princípio da instrumentalidade das formas.

É inviável ao Legislativo ou ao Judiciário tentarem acompanhar as atualizações e criarem normas muito específicas para utilização de determinado programa, até mesmo pela sazonalidade e vida útil de ferramentas eletrônicas. Em contrapartida, o processo é regido pela necessidade de segurança jurídica.

Por tais considerações, a concepção é de que as citações que não seguem a forma legal são inexistentes. Caso ocorra a apresentação da defesa ou outra manifestação do réu no processo após a realização do ato viciado validado pelo magistrado, o que durante os tempos de pandemia de fato ocorrem, entende-se que o correto é considerar, para todos os efeitos, o comparecimento espontâneo previsto no art. 239, § 1º do CPC.

Os tribunais têm investido na otimização de seus sistemas e criado soluções para o cadastramento, principalmente de empresas públicas e privadas conforme obrigatoriedade do CPC. Após a formalização do cadastro, todas as citações e intimações são direcionadas por meio eletrônico, privilegiando os princípios da efetividade, celeridade e, ainda, as formalidades legais.

Ainda há muito para se evoluir, principalmente no que tange à uniformização dos sistemas eletrônicos utilizados e centralização desses cadastros, criando-se uma base sólida, segura e cada vez mais ágil.

A facilidade da realização de uma citação pelo WhatsApp, e-mail, ou similar é tentadora. No entanto, com a prática de tal ato é flagrante o abandono de todas as demais garantias processuais em detrimento de uma única: a rapidez. E o ordenamento não admite a hierarquia entre princípios e garantias fundamentais.

Sobre o tema, vale a leitura da resolução 661/20 do STF que, não obstante tratar de âmbito interno do Tribunal, traz as considerações dos termos relevantes e expressa a necessidade de prova verificável e inquestionável, assim como o tão aqui mencionado cadastro prévio.

É notória a existência atualmente de diversas formas de tecnologia à disposição do judiciário capazes de gerar celeridade na prestação judicial sem, contudo, ocasionar ofensa ao princípio da ampla defesa e do contraditório, prejuízos processuais e insegurança aos jurisdicionados.

Por esses motivos, frise-se que a realização de citação por meios eletrônicos, é sim o caminho mais adequado e célere, devendo ser implementado com maior brevidade possível. Entretanto, é algo profundamente essencial para ser feito ao acaso.

Jaqueline de Melo Silva

Jaqueline de Melo Silva

Advogada. Pós-graduada em Direito Civil e Processual Civil. Controller Jurídica do escritório Santos Perego & Nunes da Cunha Advogados Associados.

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