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A extensão dos efeitos da falência e a desconsideração da personalidade jurídica

Alterações advindas do CPC/15 e da lei 14.112/20.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

Atualizado às 08:11

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

1. Rápida introdução. O decreto de falência e seus limites subjetivos. sinais de desconsideração da personalidade jurídica no Direito brasileiro. A extensão dos efeitos da falência

1.1 A decisão que decreta a falência, atenta a conceitos de direito material e processual e à literalidade da norma de regência, deveria, em princípio, gerar efeitos à falida apenas (pessoa jurídica), com exceção aos sócios (pessoas naturais) que, pela natureza da sociedade, respondem ilimitadamente e seriam, por conta isso, também atingidos.

Com efeito, o artigo 81 da lei 11.101/05, na linha do antigo decreto-lei 7.661/45, estabelece que "a decisão que decreta a falência da sociedade com sócios ilimitadamente responsáveis também acarreta a falência destes, que ficam sujeitos aos mesmos efeitos jurídicos produzidos em relação à sociedade falida e, por isso, deverão ser citados para apresentar contestação, se assim o desejarem". Vê-se que a literalidade da norma restringe a extensão da falência apenas aos sócios daquelas sociedades em que a responsabilidade dos mesmos é ilimitada.

Quanto às sociedades com responsabilidade limitada, o art. 82 da mesma lei prevê ação própria, a fim de apurar, com ampla fase cognitiva e probatória, a responsabilidade dos indigitados sócios. Assim é que diz a norma citada que "a responsabilidade pessoal dos sócios de responsabilidade limitada, dos controladores e dos administradores da sociedade falida, estabelecida nas respectivas leis, será apurada no próprio juízo da falência, independentemente da realização do ativo e da prova da sua insuficiência para cobrir o passivo, observado o procedimento ordinário previsto no Código de Processo Civil.".

Portanto, não se deveria conceber, nos termos da redação da norma legal, a responsabilização pessoal, de forma imediata e incidental no próprio processo falimentar, dos sócios nas sociedades de responsabilidade limitada. Da mesma forma, os dispositivos legais em comento, até por força da estabilização dos limites subjetivos da lide, deveriam impedir que, no mesmo processo falimentar, a decisão impositiva da falência atingisse terceiros estranhos à sociedade, ainda que esses fossem acusados de incorrer em fraude para socorrer a falida.

Acontece que a dinâmica da vida empresarial e dos negócios jurídicos - não é de hoje - revelou artimanhas e fraudes pelas quais sociedades falidas prosseguiam atuando normalmente, por meio de outras pessoas jurídicas e naturais, em atos de verdadeira blindagem patrimonial, ficando os credores a ver navios. Tal abusividade exigiu reação no mundo jurídico, a fim de relativizar-se a literalidade restritiva dos artigos legais agora evocados.

Aliás, anteriormente e em outras áreas do Direito, essa reação vinha sendo construída, tanto que o Código Tributário Nacional já estabelecia a responsabilidade de sócios, solidária ou pessoalmente (arts. 134/1351), e o Código de Defesa do Consumidor já previa a responsabilização de sócios e outras pessoas jurídicas (art. 282), por meio de desconsideração da personalidade jurídica da devedora, inclusive para quando essa incorresse em falência.

1.2 O fato é que, nessa toada, o Código Civil encampou a figura da desconsideração da personalidade jurídica, de forma expressa, regulando-a em seu artigo 50. A partir daí, como é cediço, o atingimento de bens de terceiros, nas situações previstas na lei, passou a ser uma realidade, ao ponto mesmo de, a despeito da ausência de regramento claro processual, admitir-se tal ampliação, incidentalmente, no bojo do próprio processo que corre contra o devedor original.

Com efeito, entabulou-se, de forma geral, o raciocínio de que essa invasão incidental do patrimônio de terceiro estranho à relação processual não violaria o devido processo legal, porquanto viável seria o diferimento da defesa para etapa posterior, seja por meio de embargos de terceiro ou outra ação autônoma, seja por meio mesmo do recurso cabível (seria interposto pelo terceiro prejudicado, também legitimado a recorrer). A jurisprudência, com o olhar voltado aos interesses do credor e à economia processual, vinha placitando tal entendimento, de forma pacificada3.

1.3 Foi nesse cenário que, a par da ação de responsabilização por ação autônoma aqui já aludida, passou a jurisprudência, especificamente quanto ao processo falimentar, a admitir a extensão dos efeitos da falência a qualquer sócio, independente dos limites de sua responsabilidade sob a ótica legal e contratual, assim como a terceiros (pessoas jurídicas e naturais).

Sim, não se tratava mais de responsabilizar o sócio que contribuiu à concretização da insolvência da falida. Trata-se aí de ampliação mesmo dos efeitos da falência àqueles que se prestavam, por meio de constituição de empresas aparentemente sadias, a continuar e/ou acobertar a normal atividades da falida, sem que houvesse o acertamento com os seus credores.

Não deixa de ser compreensível, numa primeira análise, essa ampliação, pois o Direito não pode, de fato, ficar preso à literalidade da norma específica defasada, devendo, ao revés, a interpretação sistemática do ordenamento legal, estimulada por princípios gerais, permitir que o devido processo legal resulte na eficaz aplicação do direito material. Por isso que a jurisprudência passou a admitir a extensão dos efeitos da falência a terceiros no próprio processo falimentar, independentemente de ação ou procedimento específico, já que a defesa, como sinalizado alhures, seria feita a posteriori. O importante - assim defendia-se - é vedar a falcatrua, ao ponto mesmo de abrir-se ensanchas a essa ampliação dos efeitos da falência já com imposição de imediata e abrupta indisponibilidade dos bens dos terceiros (aplicação analógica do art. 82 § 2º da lei 11.101/054).

Com efeito, nos idos do ano de 2000, já dizia o STJ, na seara falimentar, sobre o abuso de direito na criação de outra pessoa jurídica para, dissimuladamente, substituir a falida:

FALÊNCIA. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURIDICA. DUAS RAZÕES SOCIAIS, MAS UMA SÓ PESSOA JURÍDICA. QUEBRA DECRETADA DE AMBAS. INEXISTÊNCIA DE AFRONTA AO ART. - O Juiz pode julgar ineficaz a personificação societária, sempre que for usada com abuso de direito, para fraudar a lei ou prejudicar terceiros. - Consideradas as duas sociedades como sendo uma só pessoa jurídica, não se verifica a alegada contrariedade ao art. 460 do CPC. Recurso especial não conhecido. (REsp 63.652/SP, Rel. Min. Barros Monteiro, 4ª turma, DJ 21/8/00, p. 134).

Logo em seguida, reiterou a Corte esse seu posicionamento:

Processo civil. Recurso ordinário em mandado de segurança. Falência. Grupo de sociedades. Estrutura meramente formal. Administração sob unidade gerencial, laboral e patrimonial. Desconsideração da personalidade jurídica da falida. Extensão do decreto falencial a outra sociedade do grupo. Possibilidade. Terceiros alcançados pelos efeitos da falência. Legitimidade recursal.

- Pertencendo a falida a grupo de sociedades sob o mesmo controle e com estrutura meramente formal, o que ocorre quando as diversas pessoas jurídicas do grupo exercem suas atividades sob unidade gerencial, laboral e patrimonial, é legitima a desconsideração da personalidade jurídica da falida para que os efeitos do decreto falencial alcancem as demais sociedades do grupo.

- Impedir a desconsideração da personalidade jurídica nesta hipótese implicaria prestigiar a fraude à lei ou contra credores.

- A aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica dispensa a propositura de ação autônoma para tal. Verificados os pressupostos de sua incidência, poderá o Juiz, incidentemente no próprio processo de execução (singular ou coletiva), levantar o véu da personalidade jurídica para que o ato de expropriação atinja terceiros envolvidos, de forma a impedir a concretização de fraude à lei ou contra terceiros.

- Os terceiros alcançados pela desconsideração da personalidade jurídica da falida estão legitimados a interpor, perante o próprio juízo falimentar, os recursos tidos por cabíveis, visando a defesa de seus direitos.

(RMS 12.872/SP, rel. ministra Nancy Andrighi, 3ª turma, julgado em 24/6/02, DJ 16/12/02, p. 306)5

E, mesmo diante dos insistentes questionamentos acerca da ofensa ao devido processo legal, reafirmou a Corte seu entendimento:

PROCESSO CIVIL. FALÊNCIA. EXTENSÃO DE EFEITOS. POSSIBILIDADE. PESSOAS FÍSICAS. ADMINISTRADORES NÃO-SÓCIOS. GRUPO ECONÔMICO. DEMONSTRAÇÃO. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. CITAÇÃO PRÉVIA. DESNECESSIDADE. AÇÃO REVOCATÓRIA. DESNECESSIDADE.

1. Em situação na qual dois grupos econômicos, unidos em torno de um propósito comum, promovem uma cadeia de negócios formalmente lícitos mas com intuito substancial de desviar patrimônio de empresa em situação pré-falimentar, é necessário que o Poder Judiciário também inove sua atuação, no intuito de encontrar meios eficazes de reverter as manobras lesivas, punindo e responsabilizando os envolvidos.

2. É possível ao juízo antecipar a decisão de estender os efeitos de sociedade falida a empresas coligadas na hipótese em que, verificando claro conluio para prejudicar credores, há transferência de bens para desvio patrimonial. Inexiste nulidade no exercício diferido do direito de defesa nessas hipóteses.

 3. A extensão da falência a sociedades coligadas pode ser feita independentemente da instauração de processo autônomo. A verificação da existência de coligação entre sociedades pode ser feita com base em elementos fáticos que demonstrem a efetiva influência de um grupo societário nas decisões do outro, independentemente de se constatar a existência de participação no capital social.

4. O contador que presta serviços de administração à sociedade falida, assumindo a condição pessoal de administrador, pode ser submetido ao decreto de extensão da quebra, independentemente de ostentar a qualidade de sócio, notadamente nas hipóteses em que, estabelecido profissionalmente, presta tais serviços a diversas empresas, desenvolvendo atividade intelectual com elemento de empresa. 5. Recurso especial conhecido, mas não provido. (REsp 1.266.666/SP, rel. min. Nancy Andrighi, 3ª turma, DJe 25/8/11).

Em síntese, pode-se afirmar que a jurisprudência pátria, orientada pelo STJ, vem permitindo a extensão dos efeitos da falência a terceiros naquelas situações fraudulentas em que estes se envolvam, sem necessidade de ação ou incidente próprio. Considerando-se o contexto legal restritivo aqui estudado, pode-se afirmar, sem dúvidas, que se trata de autêntica criação jurisprudencial, embora construída com base em forte suporte principiológico.

Para ler o artigo completo clique aqui.

_________

1 Art. 134. Nos casos de impossibilidade de exigência do cumprimento da obrigação principal pelo contribuinte, respondem solidariamente com este nos atos em que intervierem ou pelas omissões de que forem responsáveis:

...

VII - os sócios, no caso de liquidação de sociedade de pessoas.

Parágrafo único. O disposto neste artigo só se aplica, em matéria de penalidades, às de caráter moratório.

Art. 135. São pessoalmente responsáveis pelos créditos correspondentes a obrigações tributárias resultantes de atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos:

I - as pessoas referidas no artigo anterior;

...

III - os diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de direito privado.

2 Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.

§ 1° (Vetado).

§ 2° As sociedades integrantes dos grupos societários e as sociedades controladas, são subsidiariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste código.

§ 3° As sociedades consorciadas são solidariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste código.

§ 4° As sociedades coligadas só responderão por culpa.

§ 5° Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.

3 Neste sentido, confira-se STJ:

AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. OMISSÃO. ART. 1.022, DO CPC. VIOLAÇÃO. NÃO OCORRÊNCIA. ART. 1.026 E 81 DO CPC. RECURSO PROTELATÓRIO. PRETENSÃO. PREQUESTIONAMENTO. SÚMULA N. 98/STJ. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. RECURSO. TERCEIRO. INTEMPESTIVIDADE. PARCIAL PROVIMENTO.

...

2. No Código de Processo Civil de 1973 vigia o entendimento nesta Corte Superior de que "A superação da pessoa jurídica afirma-se como um incidente processual e não como um processo incidente, razão pela qual pode ser deferida nos próprios autos, dispensando-se também a citação dos sócios, em desfavor de quem foi superada a pessoa jurídica, bastando a defesa apresentada a posteriori, mediante embargos, impugnação ao cumprimento de sentença ou exceção de pré-executividade" (REsp 1.096.604/DF, rel. ministro Luis Felipe Salomão, 4ª turma, julgado em 2/8/12, DJe 16/10/12).

3. "O terceiro prejudicado, embora investido de legitimidade recursal (CPC, art. 499), não dispõe, para recorrer, de prazo maior que o das partes. A igualdade processual entre as partes e o terceiro prejudicado, em matéria recursal, tem a finalidade relevante de impedir que, proferido o ato decisório, venha este, por tempo indeterminado - e com graves reflexos na estabilidade e segurança das relações jurídicas -, a permanecer indefinidamente sujeito a possibilidade de sofrer impugnação recursal" (AgRg-RE 167.787, rel. ministro Celso de Mello, 1ª turma, DJ 30/6/95).

...

(AgInt no AREsp 1.308.727/RJ, rel. ministra Maria Isabel Gallotti, 4ª turma, julgado em 12/2/19, DJe 19/2/19)

"A superação da pessoa jurídica afirma-se como um incidente processual, razão pela qual pode ser deferida nos próprios autos, dispensando-se também a citação dos sócios, em desfavor de quem foi superada a pessoa jurídica, bastando a defesa apresentada a posteriori, mediante embargos, impugnação ao cumprimento de sentença ou exceção de pré-executividade" (REsp 1.414.997/SP, rel. ministro Luis Felipe Salomão, 4ª turma, DJe de 26/10/15).

4 § 2º O juiz poderá, de ofício ou mediante requerimento das partes interessadas, ordenar a indisponibilidade de bens particulares dos réus, em quantidade compatível com o dano provocado, até o julgamento da ação de responsabilização.

5 No mesmo sentido:

FALÊNCIA. EXTENSÃO DOS SEUS EFEITOS ÀS EMPRESAS COLIGADAS. TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. POSSIBILIDADE REQUERIMENTO SÍNDICO. DESNECESSIDADE AÇÃO AUTÔNOMA. PRECEDENTES DA SEGUNDA SEÇÃO DESTA CORTE.

I - O síndico da massa falida, respaldado pela Lei de Falências e pela Lei n.º 6.024/74, pode pedir ao juiz, com base na teoria da desconsideração da personalidade jurídica, que estenda os efeitos da falência às sociedades do mesmo grupo, sempre que houver evidências de sua utilização com abuso de direito, para fraudar a lei ou prejudicar terceiros.

II A providência prescinde de ação autônoma. Verificados os pressupostos e afastada a personificação societária, os terceiros alcançados poderão interpor, perante o juízo falimentar, todos os recursos cabíveis na defesa de seus direitos e interesses.

Recurso especial provido.

(REsp 228.357/SP, rel. ministro Castro Filho, 3ª turma, julgado em 9/12/03, DJ 2/2/04, p. 332)

DIREITO COMERCIAL. FALÊNCIA. EMPRESAS COLIGADAS. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. AÇÃO AUTÔNOMA. DESNECESSIDADE.

1 - Pode o síndico da massa falida postular a desconsideração da personalidade jurídica de empresas coligadas à falida nos próprios autos da falência, prescindindo a providência de ação autônoma.

Iterativos precedentes.

2 - Recurso especial conhecido e provido.

(REsp 1.034.536/MG, rel. ministro Fernando Gonçalves, 4ª turma, julgado em 5/2/09, DJe 16/2/09)

Luiz Fernando Valladão Nogueira

VIP Luiz Fernando Valladão Nogueira

Advogado. Procurador do município de Belo Horizonte. Professor universitário em graduação e pós-graduação. Coordenador de pós-graduação em Direito Processual Civil. Advogado do escritório Valladão Sociedade de Advogados.

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