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Responsabilidade civil decorrente de eventos adversos pós-vacinação

A teoria do risco administrativo e a repartição dos encargos sociais podem justificar uma responsabilidade absoluta e inflexível do Estado?

sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

Atualizado às 11:58

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Desde 1998, o Ministério da Saúde, por meio da Secretaria de Vigilância em Saúde e do Departamento de Vigilância das Doenças Transmissíveis, publica o documento técnico intitulado "Manual de Vigilância Epidemiológica de Eventos Adversos Pós-Vacinação", que já conta com quatro edições (1998, 2007, 2014 e 2020¹).

O referido manual, de natureza estritamente técnica, tem como objetivo estruturar o Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica para os Eventos Adversos Pós-Vacinação (também conhecidos pela sigla "EAPV"), o que faz a partir de alguns objetivos ali expostos, dos quais destacamos os seguintes: (i) "normatizar o reconhecimento e a conduta de casos suspeitos de EAPV"; (ii) "identificar eventos novos e/ou raros"; (iii) "identificar possíveis falhas no transporte, no armazenamento, no manuseio ou na administração (erros de imunização, programáticos) que resultem em EAPV"; (iv) "estabelecer ou destacar, quando possível, a relação de causalidade com a vacina"; (v) "assessorar profissionais da assistência para avaliação, diagnóstico e conduta diante da suspeita de um EAPV"; (vi) "avaliar, de forma continuada, a relação risco/benefício quanto ao uso dos imunobiológicos"; e (vii) "contribuir para a manutenção da credibilidade do PNI junto aos profissionais de saúde e à população geral".

Embora não seja nossa intenção entrar em detalhes a respeito das classificações farmacológicas desses eventos - até porque nos falta a necessária capacidade técnica para isso, restrita aos profissionais da área - vale destacar que o referido documento técnico as define como "qualquer ocorrência médica indesejada após a vacinação", inclusive aquelas que não possuem "necessariamente, uma relação casual com o uso de uma vacina ou outro imunobiológico".

Além disso, classificam-se esses eventos em duas subclasses: os esperados, ou seja, comumente passíveis de acontecer no pós-vacinação, tais como febre, dor e edemas locais, convulsões febris, episódio hipotônico-hiporresponsivo, anafilaxia (este mais grave, embora raro); e os inesperados, normalmente não identificados anteriormente e/ou ligados a problemas decorrentes da qualidade do produto, contaminação de lotes e ao "teor indevido de endotoxina em certas vacinas", "que podem levar a reações febris e sintomatologia semelhante à sepse".

Diante de tantos EAPV's possíveis (esperados ou não e que podem ser consultados em detalhes no documento técnico do Ministério da Saúde), indaga-se: quais as consequências jurídicas de um evento adverso (especialmente os mais graves) na esfera de direito do cidadão que se submete à administração de uma vacina previamente autorizada pelo poder público? A responsabilidade civil do Estado será sempre absoluta ou será possível estendê-la também contra o fabricante? A responsabilidade entre seles será sempre solidária? É o que veremos, em linhas gerais, abaixo.

Com efeito, nem o marco legal do Programa Nacional de Imunizações (lei federal 6.259/75), nem o seu regulamento (decreto 78.231/76) tratam da responsabilidade civil decorrente de eventos adversos pós-vacinação. Todavia, é possível extrair dos normativos que caberá ao Ministério da Saúde definir quais as vacinações constantes do Programa Nacional de Imunizações terão caráter obrigatório (seja em âmbito nacional ou limitada a determinadas regiões, tudo conforme o comportamento epidemiológico das doenças indicar) e publicar, bienalmente, a atualização dessa lista.

Além disso, o artigo 28 do decreto 78.231/76 prevê expressamente a possibilidade de as Secretarias de Saúde dos Estados, do Distrito Federal e territórios tornarem obrigatório o uso de outros tipos de vacina pela população de suas áreas geográficas, desde que (i) obedeçam às normas aplicadas à matéria; (ii) obtenham a aprovação do Ministério da Saúde a respeito da conveniência da medida; e (iii) reúnam condições operacionais para a execução das ações.

De toda forma, como já dito acima, não há qualquer menção ao dever de indenizar, caso ocorram danos decorrentes do pós-vacinação, o que nos leva a refletir sobre algumas premissas necessárias para a justa solução de eventuais controvérsias que se estabeleçam. A primeira, a de que não há dúvidas quanto fato de que a execução, coordenação e abastecimento de programas de vacinação por parte do poder público envolve uma ampla e complexa rede de serviços a serem prestados no âmbito do SUS (vide, inclusive, o disposto no artigo 30, p. único, e no artigo 31 do decreto 78.231/76), o que sujeita a administração ao regime da responsabilidade civil objetiva estabelecido no artigo 37, § 6º, da Constituição da República. Além disso, a segunda premissa que se estabelece é a de que, embora submetidas ao regime das pessoas jurídicas de direito privado, a responsabilidade civil objetiva dos fabricantes (nacionais ou estrangeiros) das vacinas decorre diretamente do disposto nos artigos 12 e 14 da lei federal 8.078/90 (CDC).

De toda forma, vale o questionamento: seriam a responsabilidade civil objetiva do Estado (erigida sob teoria do risco administrativo e da repartição dos encargos sociais) e a responsabilidade civil objetiva dos fabricantes das vacinas e imunobiológicos (fundamentada na teoria do risco-proveito) pressupostos jurídicos suficientes para estabelecer uma rigorosa e inflexível responsabilidade solidária entre eles, para fins de reparação de eventuais danos decorrentes de reações adversas pós-vacinação? Ao nosso modesto ver, a resposta é negativa.

Com efeito, sabemos que essas modalidades de responsabilidade civil possuem excludentes análogas, especialmente no que diz respeito ao nexo de causalidade entre o dano e a conduta do agente causador. São eles: (i) a culpa ou fato exclusivo de terceiro estranho à relação jurídica; (ii) a culpa ou fato exclusivo da vítima (autolesão); e (iii) o caso fortuito ou força maior.

Voltando-nos, especificamente, para todo o complexo de serviços envolvendo a execução de um programa de imunização, o manual publicado pelo Ministério da Saúde aponta as seguintes relações de causalidade possíveis: (i) reação relacionada ao produto (em geral ou a um dos seus componentes) e/ou adjuvantes utilizados durante a produção; (ii) reação relacionada à qualidade das vacinas (alteração de qualidade, incluindo as embalagens e acessórios utilizados em sua administração); (iii) erro de imunização, por manuseio, prescrições e/ou administração inadequados; (iv) reação de ansiedade relacionada à imunização ou resposta desencadeada pelo estresse devido à vacinação; e (v) reações coincidentes (causados por outros motivos que não o produto da vacina).

Como se vê, os fatores relacionados aos eventos adversos podem ter ligação direta tanto com o imunobiológico propriamente dito (ou às fases de sua produção e entrega) quanto com a sua fase de administração. A nosso ver, é justamente esse o ponto nodal para a correta resolução de eventual controvérsia que se estabeleça: auferir, mediante a prova técnica competente, em que momento se deflagrou a causalidade provocadora do dano.

Embora, nesse momento, a questão esteja efervescida em razão de toda discussão envolvendo as vacinas para o combate à pandemia da COVID-19, destacamos que o STJ já enfrentou o tema algumas vezes e, ao que parece, a teoria do risco administrativo tem sido aplicada de forma indiscriminada e sem maiores discussões a respeito da origem do nexo de causalidade, o que tem levado o poder público, principalmente na pessoa da União Federal, a suportar a responsabilidade decorrente desses eventos adversos, sobretudo porque os Estados e Municípios costumam ser responsáveis apenas pela distribuição e aplicação dos imunobiológicos, "sem avaliação científica de reações possíveis" (REsp 1614592/PR, rel. Min. Regina Helena da Costa, j. 30/8/18).

É importante termos em conta, entretanto, que as demandas envolvendo reações adversas pós-vacinação quase sempre chegam ao Superior Tribunal de Justiça pela via do recurso especial, no bojo do qual a resolução da questão controvertida deve ser conduzida sob a luz do contexto fático-probatório delineado pelas instâncias ordinárias, o que, de uma certa forma, limita a atuação da Corte no que diz respeito ao nexo de causalidade estabelecido na origem.

De toda forma, resta demonstrada a importância da regular instrução das demandas envolvendo essa temática, posto que somente a competente prova técnica será capaz de evitar a oneração da fazenda pública e/ou dos próprios fabricantes em razão de danos que não guardam nexo de causalidade com as respectivas condutas de seus agentes.

Nesse momento extremamente delicado pelo qual o mundo passa, a nossa torcida é a de que o menor número possível de pessoas precisem recorrer ao Estado-Juiz em busca de reparações por eventuais danos suportados no pós-vacinação. Mas caso seja necessário, a nossa torcida também é a de que o Estado-Juiz esteja pronto, mediante a conjugação de todos os elementos técnicos incidentes na hipótese, para dar a melhor solução jurídica possível aos casos que se apresentarem, atribuindo a cada um dos envolvidos a sua efetiva responsabilidade e nos limites de sua responsabilidade. Isso é justiça.

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1- Disponível aqui.

 

Diego da Silva

Diego da Silva

Advogado, bacharel em direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, pós-graduado em direito processual civil pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, atualmente, ocupa o cargo de Coordenador do Contencioso Cível da Procuradoria Geral do Município de Duque de Caxias - RJ.

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