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Difamação na era digital na visão da Corte Europeia de Justiça

Tanto a legislação comunitária europeia quanto o TJUE devem assegurar a harmonia dos julgados, economia processual e previsibilidade para que um mínimo de segurança seja proporcionado tanto às vítimas (autoras) quando às mídias cibernéticas.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2021

Atualizado às 07:58

No passado, a veiculação de artigos difamatórios por meio da mídia impressa, radiodifusão ou televisão gerava danos aos direitos da personalidade, em geral, exclusivamente num único e determinado território, de forma que somente casos nacionais excepcionais sofriam impacto internacional.

Todavia, o rápido desenvolvimento tecnológico e advento da Internet tornaram as informações acessíveis direta e livremente por qualquer pessoa em qualquer jurisdição, o que leva, por sua vez, ao aumento da vulnerabilidade das vítimas no que concerne à violação de seus direitos de personalidade.

O Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) tem julgado a questão da jurisdição e competência dos Tribunais Nacionais Europeus em matéria referente às disputas judiciais transnacionais baseadas em violação de direitos da personalidade desde o advento da Convenção de Bruxelas (1968), a qual foi posteriormente derrogada pelo  Regulamento de Bruxelas I (2001), e, mais recentemente, pelo Regulamento de Bruxelas Reformulado (2012). 

No caso Shevill, uma cidadã britânica domiciliada na Inglaterra, juntamente com a empresa Chequepoint SARL, Ixora Trading Inc. e Chequepoint International Limited iniciaram processos nos Tribunais Britânicos contra a Presse Alliance SA, uma empresa com estabelecimento registrado na França. Os autores da ação alegaram danos oriundos de artigos jornalísticos abusivos publicados pelo Jornal France-soir, que foi distribuído na França e em outros países europeus. O réu arguiu incompetência da Corte Inglesa, pois o jornal France-soir era distribuído primariamente na França, sendo que apenas algumas cópias foram distribuídas na Grã-Bretanha. Assim, os danos não teriam ocorrido na Grã-Bretanha, mas na França.

De acordo com o TJUE, o local da origem do dano é o local do estabelecimento do jornal editorial, pois foi neste território que o evento prejudicial ocorreu. Ademais, o TJUE estendeu as hipóteses de competência e determinou que a vítima também pode intentar uma demanda nos tribunais do local onde o artigo foi distribuído e onde ela teve sua reputação violada.

Contudo, muito embora o Tribunal do estabelecimento da editora e o do local do domicílio do réu tenham competência concorrente para conceder indenização por todo o prejuízo causado pelo ato difamatório, os Tribunais dos Estados onde os artigos foram distribuídos e onde a vítima é conhecida têm competência somente para reconhecer o dano causado dentro do território de cada Tribunal demandado. Esta restrição é conhecida como Princípio do Mosaico.

Esse precedente sujeita-se a críticas, pois permite que o requerente busque o foro de um País cuja lei material seja mais favorável ao seu pleito (forum shopping). Esta foi exatamente a questão suscitada em Shevill, caso em que os autores optaram por processar o réu nos Tribunais da Inglaterra - local onde o jornal foi distribuído gerando impacto negativo sobre a vítima - em vez do lugar do domicílio do réu ou do estabelecimento da editora (França), pois a lei substantiva inglesa era mais favorável às vítimas de difamação do que a lei francesa.

Todavia, devido ao Princípio do Mosaico, a decisão da Corte Inglesa restringiu-se a determinar os danos materializados exclusivamente no território britânico.

Mais recentemente, nos processos e-Date Advertising e Olivier Martinez, o TJUE decidiu que, além do critério geral baseado no domicílio do réu, os Tribunais do estabelecimento ou domicílio do editor ou do local em que a vítima tem o seu "centro de interesses" possuem competência para decidir sobre todos os danos decorrentes do ato difamatório. Ademais, os Tribunais do Estado em que o website é ou for acessível também possuem competência muito embora a decisão seja limitada aos danos ocorridos no território desses Tribunais.  

Ocorre que, se os artigos difamatórios forem publicados em mais de um Estado, e a vítima for conhecida e ter sua reputação violada em mais de um território, ela poderá intentar diversas ações com o mesmo objeto em jurisdições diversas, prejudicando, assim, a boa administração da justiça e a certeza jurídica.

A jurisprudência do TJUE não resolveu o risco de julgamentos conflitantes quanto aos pedidos de tutela antecipada, julgamento do mérito, à alocação da compensação pelos danos, além da excessiva oneração do réu em caso de propositura de diversas ações com o mesmo pedido e a mesma causa de pedir em mais de uma jurisdição.  

Desta forma, o direito comunitário europeu ainda ressente a ausência de um marco regulatório que defina a competência das cortes de cada membro da união europeia e o alcance de suas decisões em matéria de difamação cometida por meios  virtuais.

Tanto a legislação comunitária europeia quanto o TJUE devem assegurar a harmonia dos julgados, economia processual e previsibilidade para que um mínimo de segurança seja proporcionado tanto às vítimas (autoras) quando às mídias cibernéticas.


Luciana Lie Kuguimiya

Luciana Lie Kuguimiya

Graduada em Direito pela Universidade Mackenzie. Especialista em Direito Constitucional, Direito Internacional Civil e Comercial e Arbitragem Internacional. Sócia do escritório Godke Advogados.

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