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Antessala para o estado de defesa ou má configuração institucional?

Só podem ser corrigidos quando pensarmos as suas causas não do ponto de vista de quem, eventualmente, exerce o poder, mas sim a partir da configuração das nossas instituições.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

Atualizado às 10:26

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Instado a se manifestar sobre a conduta do Presidente da República na administração da crise sem precedentes, bem como sobre o clamor por medidas de persecução penal contra autoridades federais, inclusive em face do chefe do Poder Executivo, o Procurador Geral da República, em nota, proferiu manifestação, no mínimo, polêmica, considerando o seguinte trecho, em particular: "o estado de calamidade pública é a antessala do estado de defesa". Por se tratar de nota com conteúdo sintético, não fica bem clara a intenção do chefe do Ministério Público Federal. Todavia, há espaço para, no marco do Direito Constitucional vigente, contestar a respectiva declaração, no seguinte sentido: não há correspondência necessária entre estado de calamidade e estado de defesa, motivo pelo qual a expressão "antessala", provavelmente empregada no sentido de rito de passagem ou etapa prévia, é equivocada. Há vários argumentos que apontam para esta realidade. Cito quatro, que considero principais.

Primeiro. Nem toda calamidade pública aponta para necessidade de decretação de estado de defesa, ainda que seus efeitos na sociedade sejam massivos e graves. Prova disso é que já experimentamos, desde o início da vigência da Constituição de 1988, inúmeras situações que envolveram calamidades de grandes proporções, sem qualquer necessidade de decretação da medida excepcional prevista no art. 136 da Constituição. E o motivo, para tanto, é claro: ela é vocacionada para questões relacionadas à violação da ordem pública ou à paz social, circunstâncias, portanto, que apontam para grave instabilidade da ordem pública ou ataque frontal às instituições democráticas. Não serve, pois, como melhor remédio para a prevenção de calamidades decorrentes de doenças, até mesmo pelo perigoso efeito colateral que possui, salvo se, em cenário caótico, rumássemos para a desordem generalizada, o que até então não ocorreu. Não se cogitando desta questão, a expressão "antessala" soa exagerada, apta a conduzir à interpretação equivocada do estado de defesa.

Segundo. A principiologia consagrada pela Constituição de 1988 aponta para o fortalecimento da democracia e asseguramento de direitos fundamentais. Neste contexto, a invocação do estado de defesa, com as graves medidas coercitivas que lhe dão tom, deve ser vista como providência excepcional, voltada única e exclusivamente à inadiável necessidade de defesa do Estado e das instituições democráticas. A defesa da saúde e da vida, tarefas intimamente ligadas à essência da Constituição, não se identificam, necessariamente, com o referido instituto, motivo pelo qual a analogia não foi adequada, sobretudo quando se leva em conta que quem a proferiu tem exata noção da repercussão das suas palavras.

Terceiro. Na vigência do estado de defesa também são cogitáveis medidas coercitivas que em nada contribuiriam para a solução dos problemas, pelo contrário. Cite-se, como exemplo, restrições aos sigilos de correspondência e comunicações em geral, prisão por crime contra o Estado, além da proibição de aprovações de emendas à Constituição. Nas atuais circunstâncias, lançar mão de um instrumento que concentra demasiados poderes nas mãos do Presidente da República, não se mostra como medida aconselhável.

Quarto: a decretação do estado de defesa carece de um requisito constitucional intrínseco, que é a necessidade de ser invocado para restabelecer, em locais restritos e determinados, a ordem pública ou a paz social. A questão é que emergências sanitárias não convivem bem como o conceito de local restrito e determinado, já que os seus efeitos são sentidos em diferentes locais, de forma simultânea ou descontinuada. Fácil seria perceber que, ainda que por amor ao debate fosse cogitada, não resolveria a questão, que é de amplitude nacional.

Conclui-se, portanto, pela infelicidade e equívoco da analogia, que soa com tom de ameaça. Ademais, é prudente lembrar os preciosos ensinamentos de que, sem que se verifique a necessidade, regimes de exceção configuram puro golpe de estado, simples arbítrio, da mesma forma que sem atenção ao princípio da temporariedade, apto a definir o caráter transitório das medidas restritivas, não passarão de ditadura.1 Em tempos marcados por polarizações extremadas em vários lados do discurso político, é bom ter isso em mente.

O equívoco da manifestação abre ensejo para descortinar outra questão oportuna. Trata-se de aspecto que, do ponto de vista institucional, levanta maior preocupação do que a manifestação equivocada ora criticada. Refiro-me à sistemática de nomeação do Chefe do Ministério Público Federal, prevista na Constituição vigente. É inegável que a Constituição de 1988 trouxe consideráveis avanços, em particular no que diz respeito aos direitos fundamentais e ao Estado social, voltados para a manutenção de um ambiente democrático. Entretanto, por força de regras mal elaboradas no âmbito da organização dos Poderes, o texto constitucional acabou por dificultar, consideravelmente, o avanço institucional em diferentes áreas. Cito, apenas, uma que diz respeito à presente análise: a forma de nomeação do Procurador Geral da República.

Não pretendo, no presente, criticar a atuação do Chefe do Ministério Público Federal para além da que se limita à questão a que me propus debater. A minha análise se deve a uma crítica do sistema vigente, de modo que não mira escolhas pessoais, mas sim os riscos de atuação disfuncional, seja quem for o nomeado. Direto ao ponto. A Constituição Federal, no seu art. 84, XIV, confere ao Presidente da República competência privativa para indicar o nome da autoridade que exercerá a função de chefe do Ministério Público Federal, para mandato de dois anos, com atribuições importantíssimas para a manutenção do Estado de Direito, dentre as quais a de oferecimento de denúncia criminal contra a própria autoridade que o indicou. A situação agrava-se a partir do momento que a Constituição confere à autoridade nomeante a prerrogativa de recondução do indicado, para mais um mandato.

Em termos bem claros. A regra constitucional vigente confere ao chefe do Poder Executivo a prerrogativa de escolher quem irá investigá-lo, se irá investigá-lo e mais: se irá reconduzir ao cargo esta autoridade. É evidente que estamos diante de um modelo que se afasta da racionalidade, pois cria laços que tendem a gerar uma relação de proximidade que não se coaduna com a independência que a função - que é de Estado e não de governo - exige. Calha lembrar que a partir o instante que a Constituição de 1988 prevê que uma única autoridade, denominada de Presidente da República, cumula as funções de chefia de Estado, de Governo e da Administração, equívocos como este são uma consequência natural.

Assim, por mais que a analogia empregada pelo chefe do Ministério Público Federal cause preocupação, ela me fez lembrar que mais grave ainda é o fato de convivermos com uma regra que não faz nenhum sentido em uma democracia autêntica, por facilitar uma relação de dependência funcional, totalmente contrária ao espírito da função ministerial. Já passou a hora de percebermos que, em verdade, são as más decisões constitucionais que se afirmam como antessala de muitos problemas que enfrentamos. Como tais, só podem ser corrigidos quando pensarmos as suas causas não do ponto de vista de quem, eventualmente, exerce o poder, mas sim a partir da configuração das nossas instituições.

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1- SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 25 ed. São Paulo: Malheiros, p. 762.

 

Marcelo Schenk Duque

Marcelo Schenk Duque

Doutor em Direito do Estado pela UFRGS/ed. Ruprecht-Karls-Universität Heidelberg, Alemanha. Professor do programa de pós-graduação stricto sensu da Faculdade de Direito da UFRGS; Pesquisador do Centro de Estudos Europeus e Alemães (CDEA). Professor da Escola da Magistratura Federal do Estado do Rio Grande do Sul - ESMAFE/RS, onde exerce a coordenação da matéria de direito constitucional; Professor de diversos cursos de Pós-graduação lato sensu da UFRGS, PUC/RS, FESDEPRS, FMP, dentre outros. Professor da Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre. Professor da Escola Superior de Advocacia da OAB/RS. Membro da Associação Luso-Alemã de Juristas: DLJV - Deutsch-Lusitanische Juristenvereinigung.

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