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O gato e o professor

Homem de paixões fortes, coloca a sua indignação sempre, sem pestanejar.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

Atualizado às 08:38

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

O fato ocorreu em Natal, Rio Grande do Norte. Professor livre docente de Psicologia, amado pelos amigos, respeitado pelos inimigos. Homem de paixões fortes, coloca a sua indignação sempre, sem pestanejar, onde quer que esteja com um português impecável e um sotaque nordestino que musica cada frase com aquela harmonia e simpatia que só o nordestino tem.

Sua erudição é grande e sua sensibilidade com os alunos maior ainda. Sabia indicar para cada um o livro certo, na hora certa e do jeito certo. Para mim, entre muitos que indicou, um dia, sugeriu a leitura de um mangá japonês (Osamu Tesuka) sobre o Buda. Obra mais linda! Uma coleção de quatorze volumes em desenhos bem delineados em preto e branco e com uma profundidade enorme no tema da espiritualidade. As primeiras dez páginas do primeiro volume, não têm qualquer texto. São só desenhos. Imagens que contam a história de três animais que vão socorrer um velhinho: um urso, uma raposa e um coelho. O idoso está com fome à beira da fogueira e os três bichos saem em busca de comida para ele. A raposa arruma um pequeno cacho de frutas silvestres. O urso traz um peixe, e o coelho não encontra nada. Voltou triste sem nada para oferecer, mas com grande compaixão pelo idoso. O velho começa a fazer a fogueira para assar o peixe e o coelho, ao menos, traz uns gravetos para ajudar no fogo. No caminho ele tem uma ideia de como ajudar aquele ser humano a se alimentar. Ele espera o fogo crescer, queimando a madeira juntada e, de repente, em um salto abrupto se joga na fogueira oferecendo seu corpo para o humano se alimentar. O coelho se transforma em uma constelação. Estas imagens falaram mais do que mil palavras em meus estudos e ainda ressoam em minha alma até hoje.

Mas voltando a nossa história. Este professor era professor. E ponto. Difícil encontrar um professor na universidade que seja só professor. Coisa rara. Este era assim e por isso tinha tempo para se dedicar aos alunos e às centenas de trabalhos publicados. Bom, mas o salário era compatível com sua atividade. Infelizmente, no Brasil, esta classe não tem a remuneração que merece. Tinham que ser os mais remunerados pois são eles que formam os novos profissionais e principalmente, os novos seres humanos brasileiros.

O seu salário de professor era suficiente para a vida que levava. Não faltava, mas também não sobrava. Pai de seis filhos, com muitos compromissos com a família, o seu ordenado permitia todos terem uma vida digna, mas realmente o dinheiro era contado.

Neste início de ano ocorreu fato inusitado. Final de janeiro, todas as contas já pagas, olhou o saldo do banco e viu que iria sobrar um pouco. Até estranhou e conferiu se todas as contas estavam pagas mesmo. Holerite conferido, extrato de banco minuciosamente estudado, confirmou-se a boa notícia: este mês terminaria no azul.

Chegando em casa aliviado com a informação rara, encontra sua vizinha com o gato nos braços na frente do portão, sentada cabisbaixa na calçada e em prantos. O animal tinha acabado de ser atropelado. Ele ainda estava respirando ofegante, mas ela estava desesperada. Era funcionária doméstica, sem recursos não sabia nem para onde levar o gato. Tinha criado oito filhos, mas todos haviam ido para São Paulo, ganhar a vida. Morava sozinha, ou melhor, ela e o gato. Ele era sua única companhia. Ela saía para trabalhar de segunda à sábado das 7h da manhã e voltava às 7h da noite. Mas no último mês, por conta da pandemia, ficou desempregada. Seu patrão havia morrido, vítima do covid e ela estava sem trabalho. E com isso, ficou ainda mais apegada ao seu bichano. Nesta época estes seres trazem uma grande alegria, especialmente para quem mora sozinho. Era o caso dela, e agora, seu companheiro estava à beira da morte.

O professor, vendo aquela cena, ficou compassivo. Colocou sua vizinha no carro imediatamente com seu animal de estimação e o levou para o veterinário conhecido. Pelo estado do gato a coisa era feia mesmo. Não sabia se iria sobreviver.

Chegando lá foram logo atendidos e o diagnóstico tinha uma parte positiva e outra negativa: a positiva é que ele iria sobreviver, a negativa era que, para isso, precisaria de uma operação de emergência.

O leitor já deve imaginar qual era o custo da operação: justamente o valor que havia sobrado na conta do professor naquele mês. Este, como de costume em situações assim, não titubeou e disse: "Pode operar. É o que deve ser feito."

A vizinha que estava chorando de tristeza, aumentou o choro. Porém, a motivação mudou, era a alegria de ver seu gato salvo e ter a operação custeada por aquele amoroso ser. Não precisou fazer como o coelho do mangá, mas fez como a viúva do texto sagrado. Deu tudo o que tinha para resolver aquela situação, naquele momento. Não era muito - alguém pode pensar - mas era tudo. E por ser tudo, era muito.

E aquilo resolveu. O gato sarou e a vizinha, na sala de espera do veterinário, conversando com uma pessoa que também estava esperando a cirurgia do seu cão, conseguiu um novo emprego.

O professor terminou o mês com a conta igual a todos os outros meses, mas depositou mais uma bela história na conta corrente do Banco Mundial Carma S/A. 

 

Paulo Thomas Korte

Paulo Thomas Korte

Advogado no escritório Korte e Korte Sociedade de Advogados.

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