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A inafastabilidade de jurisdição e o requerimento como requisito do interesse de agir

Discute-se a necessidade ou não de prévio requerimento administrativo, ou até mesmo do esgotamento da via administrativa, para que seja permitido o acesso ao judiciário nas relações com o Poder Público.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

Atualizado às 09:07

 (Imagem: Arte Migalhas.)

(Imagem: Arte Migalhas.)

Questão tormentosa que ainda possui bastante repercussão no cotidiano dos operadores do Direito repousa na ideia de que a inafastabilidade de jurisdição, preceito previsto no art. 5º, XXXV1,  da Constituição da República, seria uma norma apta a autorizar ao jurisdicionado o imediato acionamento do Poder Judiciário para analisar qualquer pleito oriundo de uma relação jurídico-administrativa, independentemente de prévio requerimento aos órgãos ou entidades públicas pertinentes à demanda.

O brasil adotou sistema administrativo inglês, denominado também como sistema de jurisdição única, o que significa que todos os litígios, inclusive os oriundos do regime jurídico administrativo, poderão ser julgados pelo Poder Judiciário. Não há se falar, aqui, em uma dualidade de jurisdições como no sistema francês, não havendo um contencioso administrativo que julgue com exclusividade e definitividade uma situação de interesse e de relação jurídica com o Poder Público.

Embora se trate de direito fundamental, o entendimento de que o acesso à Justiça é incondicionado resulta de uma apressada interpretação do dispositivo constitucional cuja doutrina há muito vem esclarecendo seus contornos, o que não se desconhece também ser objeto de análises acadêmicas e judiciais com conclusões diametralmente opostas.

Não se deve partir de uma ideia inabalável de que o acesso à Justiça para discussões atinentes à Administração seria sempre uma porta aberta que dispensaria prévia manifestação do Poder Público. Afinal, ocorrerão situações em que haverá um limbo decisório no âmbito administrativo, nem positivo nem negativo, em que deverá ser dada deferência à Administração para oportunizar que realize suas atividades típicas antes que se considere necessária a intervenção de um Poder em outro.

Em 2014, uma decisão do Supremo Tribunal Federal, com repercussão geral reconhecida (Recurso Extraordinário 631.240/MG), relançou luzes sobre o tema ao decidir que o requerimento de aposentadoria não poderia ser inaugurado junto ao Poder Judiciário sem que antes houvesse um pedido administrativo, e que fosse revelada alguma resistência pela Administração Pública, seja pela negativa do direito, seja pela mora injustificada do processamento do pedido. É a partir deste julgado que a discussão ora tratada parece ter voltado aos eixos.

Rememore-se o teor do art. 5o, XXXV, da Constituição/88:

A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.

Em uma primeira e literal leitura, é possível compreender que a norma estipula uma vedação ao legislador, que não poderá indicar por lei hipóteses e matérias não passíveis de apreciação pelo Judiciário.

Por outro lado, também se interpreta da norma que ao legislador não é permitido criar qualquer tipo de obstáculo ao próprio direito de ação, o que, embora não imponha impedimentos a determinados temas de cunho material, acaba por embaraçar o acesso à Justiça pela dificuldade do uso do instrumento processual.

Duas locuções-chave são extraídas do referido dispositivo constitucional: lesão a direito e ameaça a direito. Estas são as expressas situações em que a lei não pode afastar o acesso ao Judiciário, e é neste ponto que se vislumbra a ligação umbilical entre o preceito constitucional da inafastabilidade de jurisdição e a condição da ação2 conhecida como interesse de agir.

A ausência de demonstração do interesse de agir (ou de outra condição da ação - a legitimidade) resulta na impossibilidade de apreciação do mérito da causa pelo Judiciário, partindo-se da ideia de que se adotou em regra a teoria eclética da ação no Brasil, resultando, para essa teoria, em extinção do feito por sentença terminativa sempre que ausente qualquer das condições da ação. Tais condições são expressamente previstas em lei, como no art. 17 do CPC3.

Mas seriam tais requisitos constitucionais? Afinal, a lei estaria limitando o acesso ao judiciário em aparente contrariedade ao preceito constitucional da inafastabilidade de jurisdição que diz que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.

E a conclusão não pode ser outra, senão por sua constitucionalidade.

No citado julgado, o STF firmou a compreensão no sentido de que o direito de ação estampado no art. 5º, XXXV, da Constituição, é compatível com a submissão do demandante a certos requisitos de ordem processual, estabelecidos nas leis ordinárias, motivo pelo qual as condições da ação sempre tiveram acatamento nos Tribunais Superiores.

A tal conclusão se chegou porque a exigência da demonstração de que a obtenção do provimento judicial é providência adequada, útil e necessária - pressupostos que constituem o denominado "interesse de agir" exigido expressamente no art. 17 do CPC - tem sido considerada como requisito natural para o acesso ao Poder Judiciário, com fonte direta do próprio art. 5o, XXXV, da Constituição. Em outras palavras, embora aparentemente seja condicionante inaugurada por lei federal, o interesse de agir é extraído e revelado diretamente da interpretação do dispositivo constitucional, o que repele qualquer argumento no sentido da existência de limitação de acesso à Justiça pela lei.

Ao se ajuizar uma ação, busca-se a proteção de um interesse juridicamente violado. Diz-se, então, que o autor possui interesse de agir, de natureza instrumental, pois surge da necessidade de se obter por meio do processo a proteção ao interesse substancial ou material. Ou seja, surge o processo como único remédio capaz à aplicação do direito no caso concreto em que haja um prévio conflito. Torna-se necessária, então, a prestação jurisdicional quando o autor da demanda evidencia que houve fato violador do seu direito, sendo a jurisdição a indispensável forma de se obter a solução para o dissenso de forma definitiva. Aliado a isso, deve o resultado pretendido ser útil, por meio de instrumento processual adequado.

Aqui há espaço para o destaque de uma clássica e importante máxima. O exercício da jurisdição subjetiva exige uma lide, uma situação configurada por um conflito de interesses em que há uma pretensão resistida. Vale dizer: surge o interesse a partir de alguma resistência do cidadão em ver seu direito concretizado, ainda que o administrado não tenha praticado qualquer ato. Essa resistência pode ser (i) espontânea da Administração Pública, durante uma (a) preexistente relação em curso ou (b) de inexistente anterior relação, ou (ii) inaugurada somente após uma provocação do cidadão.

A análise dos direitos potestativos é o ponto central  do argumento quanto ao momento em que surge o interesse de agir na relação jurídico-administrativa.

É potestativo (ou formativo) o direito cujo exercício é capaz de influir na esfera jurídica de outrem, sem que este nada possa fazer a não ser se sujeitar. Não há uma correspondência com outro dever a ser prestado por quem se sujeitou, situação que é denominada como estado de sujeição, e que se difere, portanto, dos direitos subjetivos - justamente por não se contrapor a um dever como ocorre nestes. Em tais casos, não há se falar em violação ou ameaça antes mesmo que seja exercido contra quem de direito.

Para que se possa falar em uma obrigação de prestação pela Administração Pública em casos de direitos potestativos do administrado/cidadão, este, invariavelmente, necessita demonstrar o inequívoco interesse em exercê-los, momento em que o estado de sujeição se transmuda em dever. Somente a partir do requerimento surgiria o direito subjetivo, não se cogitando lesão ou ameaça antes disso.

Logo, em casos que o direito deva ser primeiramente exercido em face da Administração Pública, ausente qualquer dever desta e até mesmo prévio ato ameaçador ou lesivo a direito, não há se falar em interesse de agir e não deve ser admitida a provocação ao Poder Judiciário.

Por um lado, existem as mais variadas situações em que o administrado é surpreendido com um ato ou omissão do Poder Público que resulta em violação ou ameaça seu direito. Em tais casos estarão preenchidos os requisitos constitucionais para acesso imediato à Justiça já que o cidadão já sofreu um ônus em sua esfera jurídica. Já ocorrida a lesão ou ameaça, não há qualquer necessidade de um requerimento administrativo. Eventual pedido à Administração serviria apenas para provocá-la a uma reconsideração ou reanálise de seu pleito pelo mesmo agente realizador do ato ou por um superior, tendo em vista que um mero esclarecimento fático ou documental poderia oportunizar uma nova decisão em favor do cidadão, além de se evitar uma demorada e quase sempre custosa batalha judicial. Porém, mesmo antes de qualquer requerimento do cidadão ou resposta da Administração, já estariam configuradas a lesão ou ameaça ao direito e a pretensão resistida aptas a autorizar o imediato ingresso com um processo judicial.

Tais situações são as mais corriqueiras. Imagine-se um servidor que não receba seu salário no prazo normativamente determinado, ou que tenha sido removido de região de lotação em violação aos dispositivos legais São todas essas hipóteses em que a lesão ou ameaça a direito são flagrantes, seja por uma inação ou por ação do Poder Público, sendo dispensado qualquer peticionamento prévio à Administração Pública para que possa o cidadão provocar o judiciário.

Por outra via, inúmeras são as situações em que a Administração Pública necessita ser provocada para realizar um ato ou deixar de realizá-lo. Em tais hipóteses, especialmente atinentes a direitos potestativos do cidadão, não há como se considerar existente qualquer lesão ou ameaça a direito antes mesmo de que este seja exercido. São ocasiões em que o administrado possui um direito potencial e facultativo, mas que a Administração Pública não pode satisfazê-lo antes de ser provocada justamente porque não sabe quando e se o cidadão vai ou não dele querer usufruir. Não há direito subjetivo, mas estado de sujeição. Exemplo clássico é o pedido de gratificação legalmente prevista em razão da conclusão de um doutorado, que precisa ser requerido e averbado nos assentos.

 Em casos tais, antes do exercício do direito em um requerimento administrativo, por exemplo, não há como dizer ter havido qualquer pretensão resistida já que sequer oportunizou-se à Administração pública o deferimento ou não do pleito.

Interessante foi o enfoque dado pelo STF no caso dos benefícios previdenciários. São hipóteses em que, em regra, a Administração Pública aguarda um pedido pelo cidadão que deseja ver atendido um direito após demonstrar o preenchimento de requisitos legalmente previstos.

O STF, no julgamento do já citado Recurso Extraordinário 631.240/MG (DJe 10/11/14), Rel. Min. Roberto Barroso, em sede de repercussão geral, confirmando a posição já adotada pelo STJ, cristalizou o entendimento de que "a concessão de benefícios previdenciários depende de requerimento do interessado, não se caracterizando ameaça ou lesão a direito antes de sua apreciação e indeferimento pelo INSS, ou se excedido o prazo legal para sua análise". A análise do tema sob o viés dos direitos potestativos foi especialmente tratado no voto do ministro Teori Zavascki no mesmo julgamento.

Inúmeras são outras situações práticas que abarrotam o judiciário para que aprecie pleitos de tal natureza sem que haja qualquer resistência do Poder Público. Ora, é corolário da separação de poderes que cada um deles tenha sua independência e exerça, majoritariamente, as funções típicas a que foram vocacionados pela Constituição ou pela lei. Não cabe ao Poder Judiciário analisar situações de deferimento ou indeferimento de pleitos que são originalmente administrativos, no caso de direitos potestativos, por exemplo, sem que seja demonstrado que o Poder Público realizou ou deixou de realizar qualquer ato tendente a violar ou a ameaçar um direito. Haveria o risco de tornar o judiciário um mero carimbador de pleitos administrativos, ou em um "guichê de atendimento", expressão utilizada pelo Ministro Roberto Barroso no voto acima citado.

Partindo-se da ideia de que o Brasil se inspirou no sistema inglês de controle de atos administrativos, o que se prestigia neste texto é a necessidade, em alguns casos, de que haja um anterior pedido administrativo antes de que se possa dizer ter ou não surgido a lesão ou ameaça a direito, especialmente nos casos de direitos potestativos, em que há a necessidade de o administrado demonstrar o interesse em exercê-los. Caso a Administração Pública atenda ao pleito de imediato, terá cumprido seu papel e não haverá necessidade ou utilidade em se manejar uma demanda judicial. Porém, ainda que a partir do decurso de qualquer prazo normatizado ou uma desarrazoada mora em apreciar o requerimento, mesmo antes de qualquer negativa, surgirá a lesão ou ameaça a direito e, por consequência, o interesse de provocar o Poder Judiciário.

Um esclarecimento final é deveras importante. É comum a confusão entre requerimento administrativo e esgotamento da via administrativa. Em momento algum se defendeu o esgotamento da via administrativa, que se traduziria no aguardo de uma decisão final após um requerimento à Administração.

A inafastabilidade de jurisdição não permite o acesso direto ao Poder Judiciário de forma incondicionada no tocante às relações com o Poder Público, razão pela qual a exigência ou não de prévio requerimento administrativo para se fazer surgir o interesse de agir dependerá da análise das características do direito envolvido, especialmente se potestativo, bem como a situação em concreto.

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1- "A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito".

2- Não se desconhece o debate doutrinário quanto à permanência ou não das condições da ação no CPC de 2015.

3- Art. 17.  Para postular em juízo é necessário ter interesse e legitimidade.

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BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: Os Conceitos Fundamentais e a Construção do Novo Modelo. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.

BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2014.

MARINONI, Luiz Guilherme. Comentário ao artigo 5o, XXXV, In: CANOTILHO, J.J. Gomes; MENDES, Gilmar F.; SARLET, Ingo W.; STRECK, Lenio L. (Coords.). Comentários à Constituição do Brasil. 2ed. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2018.

NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil. 10a ed. Salvador: Juspodivm, 2018.

STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional. 5a ed. rev. atual. e ref. Rio de Janeiro: Forense, 2019.

Thomaz Carneiro Drumond

Thomaz Carneiro Drumond

Procurador do Estado do Acre. Bacharel em Direito pela UFMG. Pós-graduado em direito Administrativo, Tributário e Empresarial. Advogado Sócio de Drumond Leitão Torres Advogados. www.dlt.adv.br

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