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A paridade de armas e o acesso ao laudo pericial no processo penal

Para que não haja nenhum espaço para dúvidas, é preciso que o Poder Público garanta o efetivo acesso da Justiça aos laudos periciais.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2021

Atualizado às 14:47

 (Imagem: Imagem Migalhas)

(Imagem: Imagem Migalhas)

O modelo processual adotado no Brasil sofre elevada influência dos direitos fundamentais. Trata-se de consequência do fenômeno da constitucionalização do Direito Penal e que em muito contribui para o aprofundamento da densidade normativa de princípios como o contraditório, a ampla defesa e o devido processo legal. É dizer: ao mesmo tempo em que o processo penal se preocupa com a busca da verdade real e a condenação dos culpados, ele também exige o respeito às garantias individuais dos cidadãos, entre as quais se encontra a paridade de armas entre acusador e acusado.

Do ponto de vista prático, entretanto, constata-se que ainda remanescem situações específicas nas quais a paridade de armas não tem sido plenamente resguardada, sobretudo em razão do desequilíbrio informacional entre os agentes estatais responsáveis pela persecução penal e os defensores do acusado. Exemplo relevante disso consiste no acesso à integralidade do produto da atividade dos peritos oficiais de natureza criminal: o laudo pericial.

O Código de Processo Penal estabelece que, quando a infração deixar vestígios, é indispensável o exame de corpo de delito, que deverá ser levado a efeito pelos peritos oficiais: perito criminal, perito médico legista e perito odontolegista, conforme estabelecido na Lei nº 12.030/09. Tais profissionais, responsáveis pelo emprego da ciência no processo penal, estão sujeitos a idênticos critérios de imparcialidade exigidos dos juízes. Isso se dá porque são eles os responsáveis por elucidar questões de mérito extrajurídicas de cunho técnico-científico, influenciando sensivelmente o processo penal e auxiliando a tomada de decisão do magistrado.

Note-se, assim, que os peritos oficiais possuem autonomia técnica, científica e funcional, também regrada pela mesma Lei, para desenvolverem suas atribuições independentemente dos interesses das partes. Além disso, por se sujeitarem à disciplina judiciária, suas manifestações são pautadas pela objetividade e tecnicidade. Cabe a eles o auxílio à Justiça, não se subordinando ao condutor da investigação.

A atividade de polícia científica, ademais, não está limitada aos casos de crime material. É certo que, para além dessa hipótese, a prova pericial pode ser decisiva, carreando para o processo penal conclusões científicas acerca do exame das evidências do delito. Trata-se de um instrumento em favor da Justiça, pois possibilita aclarar a materialidade, a autoria e a dinâmica de crimes da mais alta complexidade.

O laudo pericial, portanto, não é um instrumento exclusivo da investigação ou da acusação, mas de acesso a todas as partes do processo. Trata-se de prova científica imparcial, técnica, objetiva e equidistante das partes, cujo propósito é a elucidação da verdade real e a observância de direitos e garantias fundamentais.

Ao se observar os pormenores da prática, todavia, cabe inquietarmo-nos com a questão do acesso à integralidade do laudo pericial durante o inquérito policial em face dos direitos e garantias fundamentais capazes de assegurar a ampla defesa, o tratamento paritário conferido às partes envolvidas no processo, o equilíbrio de armas, a legalidade e a publicidade dos atos.

Embora sua produção e encaminhamento aos magistrados seja conclusão inafastável da interpretação dos princípios que regem o direito processual penal, a ausência de garantias legais robustas potencializa o risco de que, pelo menos em sede investigatória, tenha-se aplicação de seletividade na escolha ou descarte de quais laudos periciais irão compor ou não o inquérito e o que será disponibilizado para a defesa e para o julgador. Tal fato não deixa de ser um contrassenso, na medida em que a ausência do exame pericial é critério de nulidade processual e poderia até mesmo se amoldar como abuso de autoridade.

O laudo pericial que integra o inquérito não consiste em simples elemento de interesse a ser repetido na fase processual. Ao contrário, nos termos do que já decidiu o Ministro Roberto Barroso, a prova pericial produzida durante o inquérito é, em regra, irrepetível, podendo o magistrado fundar sua convicção nessa prova ainda que tenha sido produzida exclusivamente durante a investigação. Eventual seletividade em sua disponibilização pode sujeitar o processo penal, por consequência, a máculas, ferindo de morte a ampla defesa, a publicidade, o contraditório e, sobretudo, a paridade de armas entre as partes, desequilibrando, dessa maneira, a balança da justiça, que, induzida ao erro, poderá vir a condenar inocentes ou absolver culpados.

Aceitar a possibilidade de que possa ocorrer omissão de prova ou informações, cujo destino é o Poder Judiciário, é colocar em risco o ponto de equilíbrio inerente ao Estado Democrático de Direito. É essencial que a prova pericial, ainda que produzida em sede investigatória, não se sujeite a crivo de seletividade por parte do condutor da investigação, uma vez que esse não possui prerrogativa sobre decidir o que será de conhecimento ou não no processo penal. A observância desse dever não implica prejuízo às investigações, pois nada impede que tal disponibilização seja realizada apenas no momento em que não exista risco de se revelarem futuras diligências policiais. O que não pode ocorrer é deixar de se solicitar o exame pericial nos crimes que deixam vestígios ou, ainda, que ele seja realizado mas não venha a ser levado ao conhecimento de todos os operadores do Direito, em especial ao juiz.

O Estado, no exercício do jus puniendi, não deve confiar o conhecimento da existência de provas periciais unicamente ao juízo de valor no interesse da condução da investigação. Isso é dizer que o laudo pericial não é um instrumento da investigação ou da acusação, mas sim uma prova imparcial, técnica e objetiva. Tem como meta a elucidação da verdade real e a observância de direitos e garantias fundamentais. O acesso à integralidade não pode, dessa forma, ser condicionado à discricionariedade de qualquer agente, ainda que sua conclusão seja desfavorável à determinada hipótese criminal.

Por todas essas razões, para que não haja nenhum espaço para dúvidas, é preciso que o Poder Público garanta o efetivo acesso da Justiça aos laudos periciais. Em tempos de reforma do Código de Processo Penal atentar-se para a manutenção da obrigatoriedade da realização do exame pericial, e de sua consequente disponibilização, revela-se como medida plenamente oportuna e adequada. Ao garantir o acesso à integralidade dos resultados periciais a todos os operadores do Direito, previnem-se desequilíbrios, respeitando-se o contraditório e o devido processo legal para que se tenha o julgamento justo do processo penal.

Marcos Camargo

Marcos Camargo

Presidente da Associação Nacional dos Peritos Criminais Federais (APCF).

Levi Costa

Levi Costa

Diretor-executivo da Associação Nacional dos Peritos Criminais Federais (APCF).

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