MIGALHAS DE PESO

  1. Home >
  2. De Peso >
  3. Carta aberta ao Grupo de Trabalho/CNJ para aprimoramento da execução civil brasileira

Carta aberta ao Grupo de Trabalho/CNJ para aprimoramento da execução civil brasileira

Serve esta missiva para uma tentativa de contribuição para com os trabalhos do grupo, a fim de levantar alguns pontos que este professor julga pertinentes que sejam analisados se o que se pretende é a melhora do sistema processual de execução civil.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2021

Atualizado às 13:26

 (Imagem: Imagem Migalhas)

(Imagem: Imagem Migalhas)

Com grande júbilo, a comunidade jurídica e notadamente os processualistas civis receberam a notícia, no amiudar do difícil ano de 2020, da instituição, pelo Conselho Nacional de Justiça, de um Grupo de Trabalho "para diagnosticar, avaliar e apresentar medidas voltadas à modernização e à efetividade da atuação do Poder Judiciário nos processos de execução e cumprimento de sentença, excluídas as execuções fiscais". A constituição do grupo se deu por meio da Portaria-CNJ 272, de 4 de dezembro de 2020.

Destacados estudiosos do Direito Processual Civil, professores, advogados, magistrados, defensores públicos e tabeliães trabalharão sob a batuta do Ministro Marco Aurélio Bellizze, do Superior Tribunal de Justiça, para o hercúleo esforço de diagnosticar os problemas do processo executivo civil brasileiro e propor soluções no formato de "recomendações, provimentos, instruções, orientações e outros atos normativos destinados ao aperfeiçoamento das atividades dos órgãos do Poder Judiciário".

A iniciativa do CNJ de reunir um grupo de notáveis processualistas é louvável. É fundamental que os órgãos de gestão judiciária se abram para ouvir o que os demais setores da sociedade têm a dizer para que os seus serviços sejam otimizados e o sistema funcione sempre em modo de aperfeiçoamento.

Dito isso, serve esta missiva para uma tentativa de contribuição para com os trabalhos do grupo, a fim de levantar alguns pontos que este professor julga pertinentes que sejam analisados se o que se pretende é a melhora do sistema processual de execução civil.

O Relatório Justiça em Números 2020, ano-base-2019, editado e publicado pelo CNJ, revela dados preocupantes com relação ao processo executivo brasileiro. Vale relembrá-los: os processos de execução totalizam 55,8% do total de processos em trâmite.

Dentro desse universo, 70% dos processos executivos têm natureza fiscal, que são responsáveis pelas altas taxas de congestionamento. No próprio relatório o CNJ reconhece que, em boa parte dos casos, foram esgotados os meios previstos em lei para a localização de patrimônio em nome do devedor, sendo infrutíferas as tentativas.

Com relação ao tempo médio do processo, percebe-se que, na Justiça Comum, o grande problema está na execução. Enquanto que a fase de conhecimento em primeiro grau dura em média 1 ano e o procedimento em segundo grau, 10 meses, a execução judicial dura em média 2 anos e 5 meses. No campo da execução extrajudicial, alavancados os números pelo problema da execução fiscal, a situação é ainda mais aterradora: a média global de duração é de 7 anos e 9 meses. Excluídas as execuções ficais, o tempo cai, mas ainda é largo: 5 anos e 8 meses.

Apesar dos gargalos da execução ainda serem um problema, não se pode dizer que a legislação não avançou. Para ficar em exemplos de reformas operadas neste século, tem-se em 2002 a entrada em vigor da lei 10.444/02, com mudanças pontuais nas regras do processo executivo.

Já em 2005, a lei 11.232/05 promove mudanças mais impactantes no sistema processual, trazendo para o CPC/1973 a ideia de sincretismo processual, com vistas a garantir maior efetividade da tutela executiva.

Com o advento do CPC/2015 busca-se reorganizar a dinâmica das normas processuais, mantendo-se muito do que já vigia, mas com inserções de novos institutos importantes para otimizar a sistemática do processo civil.

Essas mudanças legislativas todas já indicam que os esforços no âmbito da norma processual foram empreendidos. Não se pode acusar os processualistas e nem mesmo o legislador de serem coniventes com o estado de coisas em que se encontra o processo executivo brasileiro.

Não que não possa haver novas reformas legislativas ou que não se possa pensar em soluções no âmbito dos textos legais para aprimorar o sistema. Deve haver ainda meios inovadores à disposição. Talvez mesmo a desjudicialização da execução, que se pretende a partir de dois Projetos de Lei que estão tramitando no Congresso Nacional, seja uma saída para desafogar o Judiciário e conferir maior efetividade à tutela executiva.

Entretanto, essa missiva tem a finalidade de levantar alguns questionamentos periféricos a essa discussão sobre a desjudicialização e provocar a reflexão sobre temas que fogem do âmbito do direito processual.

Pelo que se apresenta, cabe, antes de tudo, questionar se a mudança ou a edição de novos textos legais sobre direito processual seja a real necessidade e seja aquilo que vai, de fato, gerar uma otimização do processo executivo.

Cabe ainda firmar posição em sentido contrário a qualquer ideia que resulte em relativização das garantias processuais do jurisdicionado. Um exemplo claro está no que vem ocorrendo com a adoção de medidas executivas atípicas, autorizadas pelo CPC/2015, art. 139, IV, por meio de decisões judiciais que desrespeitam as garantias fundamentais do contraditório e da fundamentação das decisões judiciais, em nome de uma suposta efetividade da tutela executiva.

Diante dos números que se tem e que devem ser analisados em retrospectiva para que o caminho percorrido até aqui seja também considerado, é preciso verificar se no âmbito do direito material o regramento sobre as obrigações e sobre o patrimônio das pessoas tem dado condições de garantia de satisfação das obrigações assumidas/constituídas. Isso porque, antes do processo executivo, que deve ser considerado a ultima ratio para a efetivação das obrigações, é preciso pensar em construir meios garantidores dentro do âmbito do direito material. E nesse ponto cabe que a reflexão se dê pelos estudiosos do direito material.

Mas ainda assim os questionamentos não acabam, porque talvez seja necessário, antes de verificar sobre a necessidade de reformas no âmbito do direito material, analisar se o problema da inefetividade da tutela executiva é um problema jurídico.

E nesse ponto, sugere-se ao Grupo de Trabalho que busque ouvir economistas, historiadores, sociólogos, antropólogos e até mesmo psicólogos, pois é necessário verificar se há no Brasil uma cultura do inadimplemento. É comum que se ouça dizer sobre o "jeitinho brasileiro", sobre a famosa "lei de Gerson" e é preciso verificar se há, de fato, no âmbito social, esse tipo de cultura de desrespeito às obrigações, para então pensar-se em meios de reeducar a sociedade, se for o caso. A profícua academia brasileira no âmbito das Ciências Sociais certamente terá muito a contribuir.

Essa discussão deve considerar não só a cultura humana, mas também a cultura empresarial e dos agentes públicos.

Vale ressaltar: se há um problema dessa natureza, ele não será resolvido pelo Direito e sem travarmos uma discussão com profissionais de outras áreas, experts em comportamento humano e social, permaneceremos eternamente reféns da inefetividade da tutela executiva, pois continuaremos a tentar resolver com normas processuais um problema que talvez não esteja ao alcance delas.

E, por fim, além de travarmos essa discussão sobre a cultura brasileira no cumprimento das obrigações é preciso questionar, antes de qualquer medida de alteração do processo ou da gestão do Poder Judiciário na condução dos processos, se a dificuldade de tornar efetiva a tutela executiva não reflete um problema econômico.

Precisamos saber se há um problema econômico, se há uma crise econômica, se essa crise se perpetua, o que a gera, o que a alimenta, quais os seus impactos no âmbito das obrigações e das relações humanas e sociais... tudo isso precisa ser considerado.

E é com base nisso e no afã de contribuir para os debates que, humildemente, faço essas sugestões aos eminentes membros do Grupo de Trabalho, desejando a todos um ano produtivo e de boas ideias.

Renê Francisco Hellman

Renê Francisco Hellman

Professor do Departamento de Direito Processual da UEPG. Advogado.

AUTORES MIGALHAS

Busque pelo nome ou parte do nome do autor para encontrar publicações no Portal Migalhas.

Busca