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Prisão de Daniel Silveira vs. Delcídio do Amaral: diferenças e consequências das fundamentações

Os ministros Teori Zavascki e Alexandre de Moraes decretaram, em diferentes ocasiões, a prisão de congressistas além da literalidade do artigo 53, §2° da Constituição.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

Atualizado às 16:06

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Após o breve artigo da semana passada publicado aqui no site Migalhas (Negativa de fiança não significa inafiançável: Prisão de Daniel Silveira), fui questionado sobre se o ministro Alexandre de Moraes estaria realmente inovando em sua decisão, tendo em vista a prisão do senador Delcídio do Amaral em 2011. Sem dúvida uma ótima questão, que entendo merecedora desta nova missiva.

Em ambos os casos tratava-se de um membro do congresso nacional. Em ambos os casos a cláusula de imunidade formal, presente no parágrafo 2° do artigo 53 da Constituição da República apresentava-se como "barreira a ser contornada" (algo que si só merece uma nova discussão relativa ao dever de máxima efetividade das normas Constitucionais, que não cabe neste breve ensaio). E, em ambos os casos, o artigo 324, inciso IV, do Código de Processo Penal foi invocado.

Vejamos, na decisão do então ministro Teori Zavascki (Ação Cautelar 4039) que, ao reconhecer que a garantia do art. 53, §2° "como garantia de natureza relativa", cita decisão da ministra Cármem Lúcia:

[...] Aplicar, portanto, isoladamente a regra do art. 53, §§ 2° e 3° da Constituição da República, sem se considerar o contexto institucional e o sistema constitucional em sua inteireza seria elevar-se acima da realidade à qual ela se dá a incidir e para a qual ela se dá a efetivar. O resultado de tal comportamento do intérprete e aplicador do direito constitucional conduziría ao oposto do que se tem nos princípios e nos fins do ordenamento jurídico.

[...]

Deve ser acentuado, entretanto, que

a) o princípio da imunidade parlamentar permanece integro e de aplicação obrigatória no sistema constitucional para garantir a autonomia das instituições e a garantia dos cidadãos que provêem os seus cargos pela eleição dos seus representantes. Cuida-se de princípio essencial para assegurar a normalidade do Estado de Direito;

b) a sua não incidência, na espécie, pelo menos na forma pretendida pelo Impetrante, deve-se a condição especial e excepcional, em que a sua aplicação gera a afronta a todos os princípios e regras constitucionais que se interligam para garantir a integridade e a unidade do sistema constitucional, quer porque acolher a regra, em sua singeleza, significa tornar um brasileiro insujeito a qualquer processamento judicial, faça o que fizer, quer porque dar aplicação direta e isolada à norma antes mencionada ao caso significa negar aplicação aos princípios fundantes do ordenamento;

c) o caso apresentado nos autos é situação anormal, excepcional e não cogitada, ao que parece, em qualquer circunstância pelo constituinte. Não se imagina que um órgão legislativo, atuando numa situação de absoluta normalidade institucional do País e num período de democracia praticada, possa ter 23 dos 24 de seus membros sujeitos a inquéritos e processos, levados adiante pelos órgãos policiais e pelo Ministério Público;

d) à excepcionalidade do quadro há de corresponder a excepcionalidade da forma de interpretar e aplicar os princípios e regras do sistema constitucional, não permitindo que para prestigiar uma regra - mais ainda, de exceção e de proibição e aplicada a pessoas para que atuem em benefício da sociedade - se transmute pelo seu isolamento de todas as outras do sistema e, assim, produza efeitos opostos aos quais se dá e para o que foi criada e compreendida no ordenamento.

O ministro Teori Zavascki, inclusive, menciona em sua decisão: "Em qualquer caso, a hipótese é de inafiançabilidade decorrente do disposto no art. 324, IV, do Código de Processo Penal."

A fundamentação do ministro pode ser entendida por dois vieses. O primeiro, seguindo os argumentos da Min. Carmem Lúcia, é pelo afastamento da garantia do artigo 53, §2°. Neste caso, cabe a pergunta de, sendo afastada a incidência deste dispositivo, se ainda assim a prisão deveria ser encaminhada para apreciação da casa legislativa. Ou se, visando dar o máximo de efetividade à constituição, o afastamento deve se dar apenas parcialmente, quanto às hipóteses permissivas, deve permanecer a análise pela casa. Tal discussão é particular importante perante à tendência de reconhecimento dos limites para a imunidade parlamentar. Afastada a imunidade, ainda assim a prisão deve ser analisada pela casa? Fica o convite aos nobres colegas e leitores que desejem explorar o tema, que acredito ser de grande relevância?

Outra possível interpretação, particularmente à luz da declaração pelo ministro sobre "a hipótese de inafiançabilidade", é que isso seria suficiente para satisfazer o requisito presente no art. 53, §2°. A decisão da AC 4039 ainda deixa confuso se se trata de prisão preventiva ou em flagrante, levando a uma possível interpretação de que foi pedida a prisão preventiva mas decretada a prisão em flagrante (fundamentada na permanência do crime de Associação Criminosa, Lei 12.850/13). Novamente, tal análise excede os limites do presente artigo, merecendo um estudo a parte.

Ainda que se trate da segunda hipótese - e o fato da prisão ter sido remetida para o legislativo analisar, em cumprimento do art. 53, §2°, nos leva a essa conclusão - a decisão é sutil mas importantemente diferente da fundamentação apresentada pelo ministro Alexandre de Moraes.

Conforme apresentado no artigo de ontem, o ministro Alexandre de Moraes manteve a interpretação do artigo 53, §2° intocada, literal e sem qualquer expansão. Outrossim, declarou que o art. 324, IV do Código de Processo Penal tornaria o crime inafiançável.

O alcance dos precedentes de ambas decisões é bastante distintos, apesar das consequências imediatas terem sido a mesma: a possibilidade da prisão em flagrante de um membro do congresso.

Em sua decisão, o ministro Teori Zavascki aplicou interpretação expansiva ao artigo 53, §2°, ao afirmar que a situação de inafiançabilidade, em um crime de natureza afiançável (sobre a diferença: LOPES JR., 2020, p. 757), seria suficiente para satisfazer o requisito constitucional. Os limites da decisão se confinam ao alcance do artigo 53.

Por outro lado, a decisão do ministro Alexandre de Moraes possui alcance muito mais amplo, pois se refere a uma interpretação não do dispositivo constitucional, mas sim daquele presente no Código de Processo Penal, tornando o artigo 312 como parâmetro para definição se um determinado crime é afiançável ou não. Ou seja, a situação de inafiançabilidade torna o crime, em si, inafiançável. O alcance é tamanho a ponto de poder, inclusive, como apontado anteriormente, tornar o crime de furto noturno inafiançável, corrompendo toda a lógica constitucional de que a regra é a liberdade, a regra é ser afiançável, e a prisão e a inafiançabilidade é a exceção.

Mais do que isso, a decisão do ministro Alexandre de Moraes cria, hermeneuticamente, uma autorização para que a decisão judicial mude a natureza do crime, mutando-o de afiançável para não afiançável. As consequências de tal precedente são imprevisíveis, exceto que podemos citar a obra de Eça de Queiros, com a lição trazida pela personagem Conselheiro Acácio: "as consequências vêm depois".

Sem qualquer julgamento de merecimento ou valor quando aos atingidos pela decisão, fica claro que se tratam de fundamentos totalmente distintos, com consequências distintas. Como afirma Dworkin (2007, p. 275), toda decisão é um processo constritivo, em que o magistrado participa da escrita de um romance em cadeia. Toda decisão, assim, tem consequências muito além dos imediatamente afetados. Não é difícil enxergar que, apesar de se tratarem de fundamentações distintas, a prisão do deputado é, ao menos em parte, uma consequência da decisão que prendeu o senador.

Quanto aos novos capítulos que serão trazidos em decorrência da decisão do ministro Alexandre de Moraes, teremos que aguardar. Porém, com o que se tem observado nas cortes do Brasil, não será uma espera tranquila.

Post Scriptum: me sinto na obrigação de reafirmar ao leitor de que não se trata de uma defesa de nenhum dos dois congressistas, situados em polos opostos do spectrum político. Não se trata nem mesmo de um julgamento sobre o mérito da necessidade de cerceamento cautelar para um, outro ou ambos. O presente artigo, assim como o anterior, são o produto de uma profunda preocupação, de um angústia sobre o fundamento das decisões. Não "o que", mas o "como" das decisões no Brasil. Parafraseando o Dr. Lenio Streck ao afirmar que sou candidato a sofre de LEER, a lesão por esforço epistêmico repetitivo, reafirmo: não basta uma decisão ser acidentalmente correta. O fundamento importa.-

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DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. Trad. Jefferson Luiz Camargo. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

LOPES JR. Aury. Direito Processual Penal. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2020.

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Rodrigo Pedroso Barbosa

Rodrigo Pedroso Barbosa

Mestre em Direito, especialista em Direito Penal e Processual Penal, autor e advogado criminalista.

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